segunda-feira, 4 de janeiro de 2016

CALDAS BRANDÃO - UM PEQUENO CONTO DO DESTINO - CAPÍTULO 1

Recife - 1911

Os saltos de madeira emitiam um ruído oco sobre o chão lamacento, por causa da chuva da madrugada. Gotículas saltavam por todos os lados e salpicavam de pingos marrons a barra de sua saia. Comerciantes abriam as portas dos armazéns e feirantes expunham seus víveres em quitandas sobre a calçada, esperando os fiéis compradores. Em pouco tempo o local estaria abarrotado de gente. Mulheres em busca de uma pechinha e empregados, com cestos sobre a cabeça, enviados por seus patrões para conseguirem frutas e verduras mais frescas e carnes vermelhas, ainda cheirando a sangue fresco.

Os pés de Maria Gentil doíam. Estava desacostumada a usar aqueles sapatos, mas por desejar causar uma boa impressão, decidiu-se por carregá-los.

Apressou o passo quando chegou à rua onde os vestígios das mudanças aceleradas e atravancadas a deixavam irritada. A era das demolições e reconfigurações parecia não ter mais fim, ouvia-se, até, que estava apenas em seu começo. Era o começo do fim. Tudo seria rearranjado. O velho substituído pelo novo, pois o propósito era avançar, se para o bem ou para o mal, só o oráculo do futuro é quem poderia dizer. Ela seguiu pela Rua Bom Jesus e passou diante do Banco, que escondia em suas bases, fragmentos de uma cultura e fé execradas, como sua mãe costumava sussurrar aos seus ouvidos, entre as quatro paredes do quarto onde viviam, para que ninguém soubesse, sequer imaginasse, que elas, também, eram restos, que haviam sobrevivido teimosamente na superfície da vida através do tempo. As histórias ficavam amalgamadas no cerne da alma, mas se constituíam em um segredo a ser guardado e mentido no mundo dos homens. Um longo silêncio debaixo de pedras, que talvez, um dia, clamassem.

Suas vidas continuaram. Um reino decadente, diante do que um dia haviam sido e da promessa irrealizável do que poderiam voltar a ser. A mãe, viúva, com quatro filhos para criar só, vivera entre a lealdade a história de seus antepassados e a amargura, mas morrera de olhos abertos, enxergando um tempo de glória que nunca viveu, apenas ouvira falar, e que fez parte de suas fantasias de criança. Todos os dias, confrontada pela realidade da pobreza, à espera de dias melhores que nunca bateram a sua porta, chegou a confidenciar à filha, que talvez, o sangue deles afinasse ao longo dos anos, e, quem sabe, ela seria mais feliz. Deveria apenas calar.

O sol já ia alto, despistando o dia da atmosfera chuvosa, que havia tomado a noite anterior. Ela atravessou o largo do Corpo Santo com pressa, constatando num relance, o fim que se avizinhava, com a força inexorável de um juízo final.  O mundo ao seu redor desabava diante da ferocidade do progresso. Os pequenos seres que dele faziam parte, indefesos e assombrados diante do cenário apocalíptico que os abatia, corriam em busca de outro abrigo, como ratos, que acabam de ter seu valhacouto descoberto. Ela, também, corria em busca de amparo, antes que acabasse enterrada ali, debaixo dos escombros da desesperança, sem que houvesse bocas para contar sua história.

Seu salto ficou preso entre dois paralelepípedos de pedra portuguesa fixadas toscamente no passeio. Seu pé deslizou para fora do sapato e ela pisou no chão com a meia branca e fina, — a sua melhor —, deixando sua base úmida e marrom. Uma exclamação exasperada escapou de seus lábios.

Voltou dois passos para recolocar o pé no calçado, quando percebeu o brilho fosco, debaixo da água lamacenta e mal cheirosa. Removeu a luva e contendo o asco, enfiou os dedos através do líquido frio, trazendo consigo uma moeda de bronze. 40 réis. Os dizeres em filigranas rodeavam o número, num conselho, para quem tinha a geleia da cabeça laureada com esperteza: a economia faz a prosperidade. Sorriu agradecida para a sorte. Colocou o donativo na bolsinha e seguiu em frente, mais animada, mas não distraída. Queria impressionar pela pontualidade, por isso, saíra bem mais cedo de casa. Precisava ainda pegar o bonde, e as mulas não estavam mais a andar lépidas, como se também pressentissem que estavam a caminhar em direção a seu fim. A efemeridade coalhava o ar.

Fixou os olhos ao longe, em busca do movimento dos bondes, quando, inesperadamente, sentiu um puxão violento em seu braço, e seu chapéu caiu. ‘Aonde vai com tanta pressa, boneca?’

Seu coração disparou e a boca secou. Ainda que soubesse que aquele lugar era habitado por todo o tipo de gente, e ela estivesse andando sozinha, — vulnerável a todo o tipo de atenção desagradável —, em todas as suas idas e vindas, jamais fora abordada daquela forma por ninguém, ainda que percebesse alguns olhares de malícia vez ou outra.

O homem vestido em um terno escuro, não era qualquer. Embora estivesse com a barba por fazer e hálito alcoólico, suas roupas eram bem cortadas. Duvidava que fosse um boêmio, já que esses voltavam para casa ao raiar da luz da matina. Era na verdade um gatuno oportunista em busca de presas fáceis. E ela estava na vez.

Seu olhar feroz a arrepiou.

— Deixe-me! — ela puxou o braço, levada pelo sentimento de pavor e abaixou rapidamente para pegar seu chapéu.

Mas ao invés de se sentir acuado pelas pessoas que voltavam-se para eles com curiosidade, aproveitou o movimento que ela fez para recolocar o chapéu e puxou a bolsinha de tecido que segurava.

—Não! — gritou ela.

Ele a abriu, removeu todas as moedas, inclusive a que ela acabara de achar, desmanchou a dobra de um papel, que estava entre os parcos pertences encerrados na bolsinha, e leu atrevidamente seu conteúdo, — o endereço rabiscado do destino de Maria. Amassou-o desdenhoso e jogou longe.

Com o coração desfalecido, ela correu em busca do papel amassado e o resgatou com mãos trêmulas.

Ressentido pelo atrevimento dela em dar-lhe as costas, agarrou-apelo braço e arrastou-a, empurrando-a violentamente contra uma parede. O medo e o choque a impediram de falar. Seus olhos se arregalaram diante do rosto retorcido pela maldade.

— Não deves sair por aí, sozinha! — cuspiu contra seu rosto enquanto o segurava com mãos sujas e rudes.

Ela reagiu, empurrando-o com toda sua força e escapou dele. Mas como que para afrontá-la, perseguiu-a, beliscou sua nádega e deu uma gargalhada zombeteira.

Maria correu com o coração na mão. Os sapatos horríveis a maltratavam e por pouco ela não os deixou no meio do caminho. Ainda podia ouvir atrás de si o ranço maldoso de sua risada. Só parou quando chegou diante do arco arquitetônico amarelado que fazia fronteira com a longa escadaria da igreja. Olhou para trás ofegante e percebeu que estava segura.

Sua mão direita segurava a bolsinha vazia e a esquerda apertava furiosamente o papel amassado. Imaginou que sua aparência estaria deplorável. Todos os fios de cabelo que ela havia cuidadosamente arranjado, desalinhados. E se sua face espelhava o que estava em seu interior, as pessoas poderiam enxergar o assombro.

Quando finalmente seu coração não mais pulsava em sua garganta, ela enxugou a face com o lenço perfumado com lavanda, que para sua sorte havia deixado no bolso da saia verde musgo e as mãos grosseiras não haviam tocado. Respirou profundamente a fragrância, para que ela invadisse seus sentidos. Um soluço quis escapar de seus lábios, mas ela o abafou. Não era o momento para sentir pena de si mesma.


Tentou arrumar os cabelos como pôde e marchou como um soldado diante da guerra iminente e inevitável, sabendo que nada mais o espera adiante, a não ser, a morte. O bonde vinha lentamente. Ela o parou, entrou e não pagou. O guia, com seu bigode escuro de pontas viradas para cima e chapéu da Pernambuco Street Railway ficou olhando para ela inquisidoramente, esperando pelo tilintar das moedas. Ela baixou os olhos, deixando metade da face encoberta pelo chapeuzinho ornamentado com minúsculas flores, lilás e rosa, como se assim pudesse ficar invisível. Ele fez um muxoxo com a boca e enrugou a testa. Murmurou palavras ininteligíveis consigo mesmo e seguiu adiante com a direção. 


CALDAS BRANDÃO - CAPÍTULO 2

Ao descer do bonde, ficou parada na calçada por um instante, orientando-se no bairro, buscando os sinais que indicariam em qual direção deveria ir. Os pés doloridos e calejados tentavam-na a remover os sapatos e massagear os pés, mas se o fizesse não os colocaria mais. Encontrou seu ponto de referência e continuou em sua missão, até que parou diante do palacete em estilo neoclássico da Madalena, onde um grande portão de ferro separava os transeuntes de seu pórtico. Um sino estava pendurado na entrada, inalcançável para alguém de pequenas proporções, como se para selecionar pela altura quem poderia incomodar os habitantes daquele lugar. Ela deu um pequeno salto e alcançou o badalo, fazendo o bronze soar.

Viu quando uma cabeça a espiou da lateral da casa. Com passos curtos, cabelos cuidadosamente arrumados e presos em uma fita negra, um anão vestido com atilamento dirigiu-se a ela. Olhou-a com altivez e frieza calculada. Não disse uma palavra, fazendo pouco caso de sua pessoa, como se não merecesse que ele lhe dirigisse a palavra.

—Fui enviada pela Sra. Eudóxia Soares de Alcântara e pela Madre do Convento Santo Ignácio. Fui recomendada para a posição de camareira — falou com firmeza na voz. Esperava que o nome que acabara de mencionar tivesse soado respeitável o suficiente e que ele o reconhecesse.

Meio contrafeito, ele abriu o portão e levou-a até os fundos, de onde entraram na cozinha.

—Espere aqui! — ordenou pomposo com sua voz anasalada, abandonando-a com sua ansiedade.

Ela permaneceu em pé no canto da cozinha, apertando a bolsinha de cetim rosa. Avaliou admirada as torneiras douradas, o grande balcão de mármore branco, pedra que ela achava mais apropriada para um cemitério, e a mesa de madeira de lei lustrosa e escura. Uma janela grande abria-se para o jardim dos fundos de onde podia ser visto um caramanchão rodeado de rosas amarelas e vermelhas. Cada elemento, cuidadosamente criado para aquela casa, inspirava conforto desmedido. Luxo. E ela ainda estava na cozinha.

O mordomo voltou, e do alto de sua arrogância emprestada, pediu que o seguisse a outro cômodo, com decoração rococó, onde uma mulher estava sentada em uma poltrona Luiz XV, próxima à janela.

A luz rarefeita do sol iluminava a figura encorpada e de seios fartos. A cabeça pequena e bem feita parecia que havia sido colocada naquele corpo por engano, enterrada nele, sem pescoço visível. Os cabelos finos e loiros estavam puxados em um coque distinto, evidenciando a rigidez dos traços de seu rosto, emoldurados pela renda alta que se erguia da blusa bege. A pele branca era quase translúcida, deixando entrever pequenos vasos avermelhados nas asas laterais de seu nariz, pontudo e aristocrático.

Ela não levantou os olhos da xícara de porcelana, que levava aos lábios. Bebericou o líquido fumegante lentamente. E no silêncio, quase sepulcral daquele instante, Maria Gentil ficou observando aquele quadro sofisticado, pintado em aquarelas cujas cores não tocavam seu mundo. A mulher de atitudes monárquicas agia como se ela não estivesse ali, ou fosse insignificante demais para que lhe prestasse atenção. Estava solitária e exilada daquele momento, apenas assistindo de fora todos os detalhes que se desenrolava diante dela, sem ela.

Ficou esperando que a personagem daquele quadro, por fim se desse conta de sua presença e a convidasse para dele fazer parte. Aguardando em silêncio, com a respiração suspensa, pela palavra que poderia mudar seu destino.

Quando, finalmente ela fez uma pausa em seu ritual do chá, virou o rosto e fitou Maria. Os olhos escuros e pequenos a atingiram em cheio. Havia enfado e desprezo neles.

Maria sentiu-se desconfortável diante do exame. Apertou sua bolsinha com nervosismo, como se fosse sua tábua de salvação. Embora houvesse chegado ali com grandes esperanças, começava a duvidar da possibilidade de ficar com a posição.

—Você é muito jovem, — a voz aguda, quase esganiçada ecoou na sala. —Tem mesmo experiência como camareira?

—Sim, senhora. Trabalhei com a família Van Deelens por oito meses, mas eles voltaram à Holanda e não pude acompanhá-los devido à saúde frágil de minha mãe que...

A mulher levantou a mão num gesto autoritário, interrompendo o resto de sua explicação, deixando claro, que não estava ali para ouvir desabafos. Pegou a xícara e recomeçou seu ritual, como se apenas o som da voz da moça tivesse exaurido suas forças. Maria ficou a imaginar quanto tempo mais deveria esperar para que se dirigisse a ela novamente. Dessa vez, a xícara ainda estava diante dos lábios da mulher quando ela falou.

—Irmã Gretchen recomendou-me você. Disse-me que é disciplinada, e que acima de tudo, não é dada a mexericos e conhece seu lugar, ainda que eu esperasse alguém com o dobro de sua idade. O senhor meu marido foi nomeado Conselheiro da cidade de Filgueiras, e logo partiremos. Se não pode nos acompanhar por causa da saúde frágil de sua mãe, acredito que não nos serve. Portanto pode se retirar.

Pousou a xícara no aparador e tocou um sininho para que o mordomo viesse reconduzi-la à rua.

Maria, embora intimidada pelas palavras e atitude esnobes da mulher foi rápida ‘Senhora, posso acompanhá-la. Minha mãe faleceu e preciso do emprego. ’
O mordomo num instante estava à porta, mas foi dispensado por um gesto impaciente da mulher.

—Quero alguém que cuide das minhas necessidades e das de minha filha.

Mal terminou de falar e uma moça fidalga, de beleza irretocável entrou na sala.

O semblante da mulher mudou. Se era possível que aquela face soturna se iluminasse, foi exatamente isso que aconteceu.

—Adelaide, querida! Que bom que chegou para me ajudar nessa tarefa desgastante de escolher novos serviçais.

A moça, uma polegada mais alta que Maria, começou a avaliá-la com minucioso desdém. A pele clara como a da mãe, era viçosa, e tinha o brilho de uma pérola. Os cabelos negros, longos e fartos estavam presos em ambas as laterais por preciosas e lerdas presilhas de tartarugas. Segurava nas mãos um pequeno chapéu com detalhes em cetim azul. O pescoço longo — e que faltava à mãe — fazia com que Maria pensasse em um cisne, como os das gravuras de livros que lia. Os olhos eram escuros e amendoados. Toda a sua aparência era a de uma princesa de contos de fada, no mundo real. E as palavras que vieram depois acabaram por confirmar sua magnificência, tão alheia ao mundo mesquinho dos homens.

—Duvido que ela saiba desempenhar as tarefas, mamãe. Não estou disposta a aturar serviçais preguiçosas e inábeis. Vamos esperar pela que serviu a família holandesa.

—Ora, querida! E não é esta mesmo, que nos foi recomendada por Irmã Gretchen? Fico até a duvidar.

—Senhora, posso garantir que trabalho com dedicação. — atreveu-se a emitir um som.
Adelaide ficou irritada com o atrevimento e intromissão no diálogo que transcorria entre ela e sua mãe.

—A senhora é quem decide, mamãe. Mas não aceito ajuda de segunda qualidade. E assim dizendo, deixou a sala sem se despedir da mãe ou lançar um segundo olhar a Maria.

—Permaneceremos por mais alguns dias em Recife, você nos servirá e decidiremos se é capaz de nos satisfazer. Esses estrangeiros, além de serem pouco exigentes, não sabem avaliar como se deve. Veremos se realmente é dedicada.

Os oito meses, durante os quais servira a família holandesa, foi para Maria, um despertar em um mundo onde só conhecera nos livros. Seus ouvidos foram abertos para o idioma gutural. Seu paladar se acostumou a novos sabores onde o doce se misturava ao salgado. A fragrância de Chipre do velho mundo despertou sua imaginação.

Seus patrões eram ricos e cultivavam a arte e literatura em seus salões, mas a despeito de sua vantagem social, não eram desagradáveis. Não a elogiavam, e tampouco a desprezavam. A senhora da casa havia desejado levar Maria com ela para a Europa, mas o sentimento de obrigação para com a mãe doente havia falado mais alto. Seus irmãos pouco ajudavam e a irmã já casada havia se recusado a auxiliá-la.

Quando a família partiu, Maria viu o conto de fadas do qual fizera parte por apenas um instante se esvair. Após quatro meses a mãe faleceu. Maria foi viver de favor na casa da irmã que vivia a insistir que devia casar-se, pois não poderia alimentar mais uma boca por muito tempo. Encontrou para ela um pretendente. Era um ferreiro rude, meio surdo e que estava disposto a aliviar os ombros da irmã da responsabilidade. Sem falar que, para ele, seria extremamente difícil encontrar uma moça com sua aparência e que o quisesse que não fosse por grande necessidade. Os cabelos escuros de Maria destacavam sua pele de porcelana. E misteriosamente, apesar do berço simples era polida e culta. Um troféu para exibir.

Maria começava a ficar sem saída, a irmã a constrangia o tempo todo, ainda que ela a servisse sem reclamar. Ao descobrir-se grávida, passou a precisar mais de Maria, mas deu um ultimato. ‘Quando o bebê nascer terá que seguir seu rumo. ’

Maria procurou Irmã Gretchen no Convento Santo Ignácio e pediu-lhe auxílio. Por anos sua mãe servira na igreja e levava Maria para ajudá-la. Fora Irmã Gretchen quem a havia introduzido na casa dos holandeses anos antes. ‘Irmã, preciso de trabalho’, a voz trêmula sussurrou diante das lápides com nomes de famílias nobres e de religiosos, que empilhavam-se ao longo da parede monástica até o teto.

—Calma, Maria. Tenha fé! Vou procurar uma família para você — disse a idosa com as mãos escondidas debaixo do hábito escuro. — Já tenho uma em mente. Apenas tenha paciência.


Maria deixou o convento mais aliviada, porém, apenas três meses depois, foi que Maria Gentil acabou entre os ramos da nobre família do Conselheiro Caldas Brandão. 


CALDAS BRANDÃO - CAPÍTULO 3

A viagem de trem para a nova cidade onde o Conselheiro se instalaria para desempenhar sua função não foi desagradável, ainda que sua patroa não conseguisse parar de bufar um segundo por causa do calor e da monotonia. Agitava seu leque polonês diante da face ruborizada e revirava os olhos, como se fosse ter um colapso a qualquer instante. Adelaide mantinha os olhos fechados por causa de sua enxaqueca, e de vez em quando, aspirava seus sais que pouco operavam em sua indisposição. O Conselheiro, homem de baixa estatura, taciturno e calado, lançou à Maria apenas um olhar, através das lentes de seu pince-nez, e depois cochilou com as costas eretas, cartola sobre a cabeça e mãos apoiadas sobre a bengala florete. Nem mesmo seus bigodes brancos tremiam, quando ele suspirava em seu calmo sono.

Quando o apito do trem soou anunciando sua chegada à plataforma, Adelaide se contorceu, e Dona Ana suspirou em aflição. O Conselheiro por sua vez, abriu os olhos tranquilamente e esperou até que Onofre Portaglia, o anão, viesse ajudá-lo com seus poucos pertences de mão.

Chacoalharam durante mais uma hora, dentro de uma carruagem que os levou por uma estrada sinuosa e esburacada para a pequena cidade de Filgueiras. A cada sopapo da carruagem, eles eram lançados um sobre os outros e Dona Ana agitava-se mais, murmurando e reclamando diante do marido fleumático.

Ao olhar, através da janela, Maria Gentil enxergou em um campo à beira da estrada um homem a derrubar árvores. Colocava o machado à raiz e desferia golpes violentos contra a madeira. Um rastro de tocos enfileirava-se atrás dele. A cidade aproximava-se. Não parecia muito promissora. Apesar de possuir um casario colorido e atraente, com um comercio central fervilhante, era pequena e poeirenta.

A carruagem atravessou a cidade sob os olhos curiosos dos moradores. E quando parou diante de uma casa muito parecida com a dos Caldas Brandão no Recife, mas em proporções bem menores, teve a impressão — com o empréstimo da hipérbole —, que o cenário era bastante semelhante com aquele que se dera com a chegada da família real ao Brasil. Uma banda tocava, para tormento de Adelaide, que ameaçava vomitar. Um grupo de homens usando chapéus-panamás e bengalas estava acompanhado de suas senhoras com chapéus de penas na cabeça à moda parisiense e saias longas tubulares. Abanavam-se esbaforidas e impacientes devido ao calor sufocante, enquanto esperavam para prestigiar o novo Conselheiro.

Angustiada pelo desconforto, Adelaide recolheu-se a casa com o auxílio de Maria Gentil. Mas Dona Ana obrigou-se a permanecer ao lado do Conselheiro.

Após um longo e torturante jogo de cena, para conhecimento e agrado dos figurões da cidade, a família retirou-se. Dona Ana estava atordoada por sua função de matrona da sociedade. Aquelas atividades lhe eram terrivelmente desgastantes, mas tinha que encará-las com a dignidade devida a posição proeminente do marido. Sempre que chegava de uma dessas cerimônias ou celebrações, ela removia o vestido e ficava apenas com suas combinações francesas. Sentava-se próximo à janela, colocava as perninhas roliças em cima de um banquinho, e Maria tinha que abaná-la, como um escravo asiático fazia com seus senhores, até que suas faces rosada e suadas voltassem à cor normal e ela adormecesse. Servir Adelaide era bem mais fácil, ela só se tornava realmente intratável quando Augusto Barros, um bem-nascido sem talento de família importante da cidade vinha cortejá-la.

—Ai, sua ignorante! — reclamava Adelaide todas as vezes que Maria apertava os cordões de seu corpete por sua própria insistência, para destacar ainda mais a cintura mais vespiana da cidade.

—Me desculpe, senhora.

Adelaide ignorou seu pedido.

—Dê-me a escova — ordenou ela. Maria acabara de escovar e arrumar seus cabelos, mas a jovem patroa pegou o espelho de prata incrustado com ametistas, contemplou sua imagem e passou a escova nos cachos que haviam sido elaborados com cuidado.

—Precisa melhorar suas habilidades se quer mesmo ficar com este trabalho. Não está cuidando de qualquer cabelo — suspirou exasperada. —Infelizmente, não peguei o tempo das negras, que realizavam seu trabalho com mais afinco. Vovó e mamãe tiveram mais sorte que eu. Aquela princesa nos prestou um desfavor!

—Vou melhorar, senhora.

—Pegue meu vestido!

Maria ajudou-a com o vestido rosa pastel com excesso de rendas e babados comprado na modista francesa da Rua Imperatriz. A despeito de sua bela aparência, seu gosto por moda, voz e atitudes eram infantis. Adelaide era um bibelô, cujas vontades eram todas satisfeitas.

Após ajeitar o chapéu sobre seus cabelos, e pegar as luvas que ela colocou com má vontade, Adelaide deixou o quarto com a cara azeda, mas colocou um sorriso doce nos lábios ao encontrar o Sr. Augusto Barros que a esperava na sala principal. O jovem demonstrava muito gosto em galanteá-la e as famílias já começavam a fazer planos para os dois e possivelmente dentro de alguns meses estariam casados.

O tempo transcorria como sempre em Filgueiras: enfastiante.

O anão Onofre era, na opinião de Maria, um prepotente, e tratava suas funções de mordomo como se estivesse desempenhando um cargo público. Vestia-se todos os dias como se fosse atuar em um espetáculo de criação de própria autoria, e neste, ele, Onofre e não o Conselheiro era o ator principal. Vivia a esquivar-se dele para não bater de frente com sua petulância. Certa vez, aproveitando-se de um raro tempo livre para si mesma, Maria sentou-se à mesa na cozinha para tomar café, quando ele surgiu.

—Porque está tomando chá na porcelana da casa? Já deveria conhecer seu lugar.

—Estou tomando café — confrontando-o com a resposta correta ao comentário errado.

—Não importa se é chá ou café — apontou com seu dedinho para um jogo de xícaras de vidro branco e barato que estava em uma prateleira acima da cabeça de Maria, — aquelas são as xícaras de seu uso.

Ela passou a nutrir um desprezo mudo por ele, e se digladiavam com olhares pouco lisonjeiros.

Certa manhã, do mês de março, como todo dia que começa ensolarado e embalado pelo canto dos pássaros prenuncia boas horas, aquele começou. Os empregados acordaram cedo para realizar suas tarefas, o Conselheiro tomou seu café da manhã e saiu de casa, enquanto, que as senhoras, ainda repousavam para descansarem o corpo, eternamente fatigado. 

Para estranheza dos que presenciaram o evento, uma nuvem escura, repentinamente encobriu a terra, tornando o dia em noite. Foi um fenômeno passageiro, mas de tão marcante, confundiu o galo, que cantou novamente no começo do novo dia, produzido artificialmente por aquele efeito anormal. O anão olhou pela janela, para ver do que se tratava. Uma das empregadas parou de varrer o quintal e olhou para cima, jurando depois de muitos ocorridos já passados, supostamente desencadeados por este, que havia enxergado um ser escuro a voar sobre a cidade. Maria passava alguns vestidos e parou, ao perceber que a luz do sol fora, de repente, apagada.

Aqueles minutos de misteriosa causa, observado pelos habitantes de Filgueiras, marcariam para sempre a mente dos supersticiosos como o começo do que veio depois.

O primeiro choro foi o de uma criança. A filha do dono da barbearia. E depois foram outras crianças, e daí, um adulto após o outro. Correu o boato que era a bubônica, e não sobraria nenhum vivo. O prefeito reuniu a comunidade para desmentir o rumor maldoso. O Conselheiro foi chamado para ajudar a apaziguar e informar os incautos. ‘Quem já se viu tamanha estupidez ser dita?  Não há peste em nossos dias. ’ Mas depois, veio a dúvida sobre suas palavras, e então a certeza de que ele estava mesmo errado. 



CALDAS BRANDÃO - CAPÍTULO 4

Era devastadora a face daquela peste, sem nome, a princípio, mas depois o único médico da cidade o descobriu: varíola. E informou fatalista: sozinho, não sou páreo para ela. O prefeito deveria buscar outros da capital. Homens corajosos e de boa vontade, pois aquela enfermidade era cruel. E o fogo seria sua mão direita. Roupas e pertences seriam incinerados para destruir os elementos que estavam combinados ao ar para criar aquele monstro invisível causador de tantos males. Quando veio a primeira baixa o médico quis também queimar o corpo ao que os familiares e padre da cidade se opuseram. ‘Estás a exagerar!’

Quando o número de enfermos começou a aumentar assustadoramente, o medo começou a insurgir, e uma parte da população temerosa queria queimar, inclusive, as casas dos enfermos. Um pandemônio se instalou em Filgueiras, e não haviam autoridades suficientes para impedir a sanha da população. Quando o dono de uma casa onde havia um enfermo atirou em um partidário dos incendiários, acreditou-se que um pequeno levante se instalaria na cidade.

O Conselheiro foi chamado a casa do prefeito, onde os líderes da cidade haviam se reunido e eles decidiram por colocar todos os doentes de quarentena em uma fazenda vazia, fora dos limites da cidade.

Assim que o Conselheiro chegou em casa naquela noite, comentou com sua mulher e filha à respeito da decisão que havia sido tomada. Jantaram e ele logo foi descansar, pois sentia uma leve indisposição. No meio da noite, Maria acordou com gritos, e ao alcançar o corredor viu Dona Ana e Adelaide em desespero. Portaglia saiu do quarto principal segurando uma vela, e lançou um olhar grave à Maria. Um frio percorreu sua espinha. Depois, olhando para Dona Ana, fez um gesto de comiseração por seu marido, que encontrava-se enfermo, provavelmente da doença que assolava a cidade. A mulher desmaiou e Maria correu para socorrê-la. Adelaide se esquivou com olhos assustados e trancou-se em seu quarto.

Maria e Portaglia conseguiram arrastar a mulher desmaiada para o único quarto vazio que havia na casa.

—O Conselheiro deverá ser levado para quarentena, o mais rápido possível, ou todos acabaremos doentes, disse Portaglia à Maria.

Dona Ana imediatamente voltou de sua inconsciência ao ouvir aquelas palavras.

—Meu marido não vai a lugar nenhum. Ele será cuidado aqui mesmo. Mandaremos vir um médico da capital para ele.

—Senhora, eu entendo sua lealdade, mas essa é uma recomendação do conselho da cidade. O próprio Conselheiro apoiou tal ideia. A senhora pode acabar contaminada. E os médicos da capital virão, mas ainda não sabe-se quando.

Ela o olhou em horror.

—Vá chamar o médico, agora! – ordenou histérica.

O médico da cidade chegou à casa dos Caldas Brandão terrivelmente exasperado. Portaglia havia insistido que ele convencesse a senhora da casa a fazer o que era certo. Mas a despeito de todas as argumentações de que a enfermidade poderia ser fatal, Dona Ana não foi persuadida: Maria, Portaglia e os outros empregados cuidariam do Conselheiro. Para isso eram sustentados. Ela e Adelaide ficariam em um quarto separado do dele. O médico riu sarcástico da decisão da mulher. ‘Essa enfermidade não respeita paredes, mas faça como quiser. ’ Antes de deixar o palacete, explicou a Portaglia e Maria que jamais deveriam entrar no quarto sem cobrir seus rostos, nem falar próximo ao doente. ‘E jamais toquem no fluido doentio que sai dos caroços de seu corpo. ’

—Que caroços? – perguntou Portaglia.

—Você vai ver.

Antes de sair, o médico lembrou-se de mais uma recomendação.

—Queimem! Queimem todas as roupas que sair do corpo dele e que forem contaminadas pelo fluido das bolhas. Essa doença não se afasta com água, apenas com fogo.

No outro dia, ao saber do que se passava na casa, os outros empregados desertaram. Portaglia ciente do perigo que corria, começou a evitar os cômodos da casa, mas Maria penalizada pelo abandono que o Conselheiro sofria e acostumada a cuidar de enfermos, cobriu o rosto e cautelosamente entrou no quarto, temerosa do que ia encontrar.

O homem estava de olhos fechados. Ao aproximar-se, Maria assustou-se com o que viu. Manchas vermelhas haviam tomado seu corpo e algumas bolhas estavam espalhadas por sua face. Pressentindo sua presença, ele abriu os olhos.

—Água, — foi tudo o que disse.

Maria encheu um copo que estava na cabeceira da cama com água e ajudou-o a ingerir o líquido. Depois, ele novamente fechou os olhos. Ela deixou o quarto preocupada. Com ele e também com ela.

—Vamos todos morrer, se ficarmos aqui.

Ouviu Portaglia, que estava encostado à parede do lado de fora do quarto.

—O que sugere? Que o abandonemos?

—Sugiro que nos salvemos! Ele era para ter sido levado a quarentena com os outros, não vê?

Um grito que mais parecia um uivo foi ouvido, vindo do jardim da casa.

 Ao correrem até lá, encontraram Adelaide horrorizada. Dona Ana estava desfalecida.

—Ela está doente!

Ao tocarem a mulher inconsciente, sentiram sua pele arder em febre. Colocaram-na junto ao marido, numa tentativa de reduzir os espaços da enfermidade. Mas foi um esforço inútil. Logo Adelaide juntou-se ao casal. A visão da enfermidade em sua forma mais crua deixou a moça desesperada. E Maria não sabia se a razão era a proximidade com a morte ou a inevitável perda de sua beleza. ‘As francesas podem curar minha pele, vou visitá-las’, dizia alienada pela febre e dor. Dona Ana implorou e Maria trouxe o padre para rezar pela recuperação da família. Mas ele não passou pelos umbrais da casa, recitou suas rezas do lado de fora, respingou água benta no pórtico e deixou rapidamente a mansão dos Caldas Brandão.

—Vou acabar queimando todos os lençóis da casa e não nos sobrarão mais nada. Procure uma bananeira. Me traga suas folhas Portaglia — pediu Maria.

—Somos os próximos, sabia? Quem vai cuidar de nós? — era a única coisa na qual ele podia racionalizar.

—Quem vai cuidar de mim, você quer dizer, não é? – Maria o enfrentou pela primeira vez, ‘pois eu sou a única a entrar naquela quarto’.

Ele deu de ombros. — ‘Porque quer. Se fossemos nós dois os doentes, eles já nos teriam jogado na quarentena, e ouvi falar, que todos os que lá entram, morrem ao quinto dia’.

O cheiro de fumaça enchia o ar da cidade. As pessoas haviam abandonado as ruas por medo dos miasmas. Portaglia carregou as folhas de bananeiras para a casa dos Caldas Brandão, ainda sem entender o que Maria faria com aquilo. E quando ela o pediu para ajudá-la a forrar as camas dos enfermos com elas, ele se esquivou em fúria. ‘O quê? Tá louca? Eu não entro lá de jeito nenhum.’

—Você vai me ajudar!

O tom de Maria foi tão autoritário que o anão cedeu, cobrindo o rosto com o tecido branco e limpo que ela o entregou para aproximar-se dos doentes. Ao ver a família enferma, por pouco não correu. As pústulas cobriam toda a pele dos patrões. Duvidou que sobrevivessem. A verdade era que, o Conselheiro já estava próximo dos portais do paraíso. Caroços recobriam as mucosas de seu nariz dificultando sua respiração. Se durasse mais um dia, era muito. Dona Ana logo o seguiria, pois era mulher frágil de corpo e espírito. Apenas Adelaide resistia um pouco mais, e em seus delírios era tratada, não pelas mãos de Maria, mas pelas das francesas, que restituíam à sua pele a perfeição. Maria, que cobrira os espelhos do quarto, confirmava a crença da moribunda.

Portaglia deixou o quarto horrorizado diante do que viu, e sumiu da casa, só reaparecendo dois dias depois, para ajudar Maria a arranjar o enterro do casal. Ela estava quase à beira de um colapso nervoso.

—Estou com dois cadáveres desde ontem aqui. Não posso fazer tudo sozinha, seu desalmado.

Ele olhou-a frio e deu-lhe às costas. Os ritos fúnebres foram rapidamente realizados, como era exigido pelas conjunturas nas quais viviam, e tiveram apenas o padre, o prefeito e o anão presentes. Mal terminada a cerimônia, o prefeito enviou uma carta à capital para que providenciassem a vinda de outro Conselheiro.

À noite, para esquivar-se um pouco daquele cenário de horror no qual vivia, confinada a casa ou junto à Adelaide, que morria e revivia, Maria encaminhou-se até a janela da sala e abriu-a na intenção de avistar a lua, ou qualquer indício da natureza que fosse favorável a vida. Em vez disso, avistou ao longe as labaredas se elevarem, dando um aspecto alaranjado aos termos da cidade. O fogo tentava combater as emanações da enfermidade. A fumaça escura e viciosa subia aos céus, tornando-os, ainda mais, sombrios, e o som de choro e lamento enchia o ar junto com os miasmas da varíola. Um sentimento funesto tocou-lhe a alma.

Ao perceber que as ruas eram tão opressivas quanto o interior da casa, começou a fechar a janela, mas interrompeu a ação, quando um movimento diante do portão chamou-lhe atenção. Uma sombra alta e escura caminhava lentamente de um lado para o outro. A curiosidade moveu seus pés. Ela deixou a luz alaranjada do lampião para trás e misturou-se as sombras da noite. Seus passos atravessaram a alameda frontal da casa e alcançaram as grades de ferro, contra as quais ela pressionou a face na tentativa de enxergar o que era aquilo que flutuava, lá e cá.

Foi então que sentiu seu braço ser cutucado, e ao tentar puxá-lo, seu pulso foi agarrado pela mão de ferro de um grande pássaro. Se a enfermidade deformadora e pútrida com seu terror não tivesse consumido sua retina, ela duvidaria daquela visão. Mas seus olhos haviam sofrido uma tão grande metamorfose, acostumando-se a feiura daqueles tempos de horror em que viviam, que por mais perturbadora que fosse a figura, sabia que era verdadeira. Ela pertencia aquele mundo que a rodeava. A morte havia encarnado na forma de um pássaro negro, gigante e ameaçador e estava ali para buscá-la.

O odor de rosas e cânfora espalhou-se pelo ar, acordando seu instinto de sobrevivência e levando-a a puxar o braço de entre as grades do portão e soltar-se da violência recurva que agarrava sua carne. Os olhos vítreos se fixaram nela e por um instante acreditou que o pássaro arrancaria os dela com seu bico negro e lustroso, mas de repente, ele a libertou. Ela caiu de costas e assim permaneceu, em assombro, enquanto ele se afastava. Talvez, pensou ela, não fosse seu dia. A morte a deixou viver.
Ela se levantou, correu para dentro da casa e bateu a porta atrás de si, deslizando até o chão sem forças.

Uma vela acesa veio em sua direção. Onofre Portaglia parou diante dela. A luz bruxuleante iluminava seus olhos azuis arrogantes, mas desta vez havia neles, um brilho enigmático, esquadrinhador, e como tudo o mais que a envolvia, ela o considerou bizarro.

—O que há com você? — perguntou com sua habitual irritabilidade e dada a sua insensibilidade, duvidou que se importasse.

Ela levou a mão trêmula ao rosto. ‘Eu vi a morte’, Portaglia ouviu-a sussurrar aterrorizada. Uma sucessão de palavras escapou aos borbotões de sua boca.

—A morte está nas ruas. Tentou me arrebatar para a sepultura. Um pássaro negro, gigante e impiedoso.

As frases desconexas saíam de seus lábios aterrorizados e seus olhos ainda estavam hipnotizados pela figura bizarra. Ao ver que o descontrole se apossava dela, ele desferiu um frio, ‘controle-se, Maria.’

—Você viu apenas os médicos da peste, os homens pássaros. Chegaram essa manhã, enviados pelo governo. Agem como se fossem nossos salvadores com suas canas mágicas para virar moribundos. Mas eles não podem nada. A tragédia que se abateu sobre nós, só nos deixará depois que tiver cumprido sua missão.

—Homens pássaros?

Ele deixou-a sem fornecer outras informações. Era típico dele, falar apenas o necessário e quando era de seu interesse.

Sentia-se alquebrada. Reuniu forças e levantou-se do chão. Tomou um chá para acalmar-lhe os nervos. Encheu uma garrafa com água fresca e foi até ao quarto dos Caldas Brandão para substituir a que estava lá desde o dia anterior. O quarto estava silencioso. Adelaide estava quieta e de olhos fechados.

Maria sentou-se na poltrona ao lado e adormeceu, vencida pelo cansaço e temor, mas, apenas um instante, pois acordou com os murmúrios da moça, que chamava pela mãe. Maria foi até o leito, afastou o cortinado de gaze branca e viu a moça agonizar. Sua respiração era rápida e superficial, ela buscava o ar, mas ao invés de ele entrar, saia de seus pulmões, a ela arfava como se estivesse sendo desinflada. A vida escapava de seus lábios entreabertos, deixando a casca doente em busca de liberdade. Mas a vontade férrea de Adelaide ainda tentava impedi-la de deixá-la.

Era quase impossível para ela abrir os olhos, pois as vesículas impediam os movimentos de suas pálpebras, mas Maria sabia que ela a tinha visto, pois numa tentativa sobre-humana, estendeu para ela a mão, em um pedido de socorro. O gesto foi fugaz. A mão caiu pesada sobre o leito. E Adelaide capitulou para a varíola.

Maria tinha sua respiração suspensa, o ar preso em seu peito. Correu até a janela, abriu-a e arrancou o lenço do rosto. Respirou fundo e depois deixou o quarto contaminado com a morte.

—Portaglia, temos que providenciar o enterro de Adelaide.

Ele levantou os olhos para ela.

—E depois?

—Depois o quê?

—Para onde vamos?

—O que tem isso agora? Vemos isso depois.

—O novo Conselheiro vai chegar.

—Sei.

—Não temos dinheiro, nem para onde ir nessa terra de trevas.

Maria suspirou. Por que ele a importunava com aquele assunto num momento tão inoportuno? Já não bastava o peso que tivera que carregar até ali? Ela deu as costas para ele e voltou para dentro da casa. A função dela era velar pelos doentes, o dele enterrar os mortos. Ela já havia cumprido sua missão.

Entrou no quarto segurando um pano contra o rosto e começou a pensar no que faria depois. Portaglia entrou e olhou para o corpo de Adelaide.  Desviou o olhar transtornado, e encarou a face pálida de Maria.

—Eu falei ao padre que você estava doente.

Maria enrugou a testa.

—Deus me livre de uma coisas dessas.

—Eu disse que você estava morrendo.

O estômago dela embrulhou.

—E que Adelaide, estava melhor... ele ficou feliz... por ela, digo. E triste por você.

Os olhos de Maria se arregalaram.

—Por que você faria tal coisa?

—Será que eu tenho que explicar tudo para você? – perguntou irritado. —Não vê nossa condição?

—Você é sinistro. — o olhar de Maria finalmente compreendendo a trama dele. – Acha que vou cooperar com seu crime?

—Crime? Crime é sermos lançados a rua, sem sermos retribuídos por nossos esforços. O que vai fazer de sua vida? Agora é a nossa hora, Maria. Não vê?

Os olhinhos maquiavélicos brilhavam. Sua voz soava como se estivesse fazendo uma revelação messiânica. Mas ela não conseguia admitir com o gênio que possuía as palavras dele. E sua primeira reação foi de negação. ‘Quem ele pensava que ela era?’
Adelaide estava ali entre eles, deitada na cama de dossel, coberta por folhas de bananeira. A febre a tinha deixado e ela era agora uma estátua, clássica e fria, cuja pele formosa fora maculada pela varíola. Não tinha nem mesmo a decência de respeitar o cadáver ao fazer-lhe tão indecorosa proposta! Que os ouvidos de sua alma não os ouvissem! O que ele desejava? Que a ira de Deus se voltasse contra eles e fossem os próximos da fila a receber aquela doença horrorosa?

—Quem sabe não é este o momento de teu destino ser corrigido? Para onde você vai daqui? Servir outra Adelaide rude, e ter um fim triste, como o de todos os virtuosos? É sua chance de ter um nome, que não seja gentil. Pare de aceitar estoicamente as privações da vida.

—Pare de me tentar!

—Para as mãos de quem vai toda essa fortuna, já pensou nisso? Os parentes são tão distantes que jamais serão encontrados. O governo vai se locupletar com o que já tem demais.

A vela que estava no criado-mudo ao lado da cama de Adelaide, tremulou e apagou, deixando-os rodeados por uma atmosfera mais tenebrosa ainda.

—Está vendo? Ela ouviu! Deus nos livre de tamanha blasfêmia!

—Ela está morta, Maria! Não precisa mais do dinheiro, ou do nome, onde está.

A voz dele vindo das sombras deixou-a mais assustada do que já estava. Acreditou que o anão estava possuído. Que Deus a livrasse de dar ouvidos a ele, correu do quarto e foi em busca de outra luz. Ele foi em seu encalço. ‘Não há tempo para isso. Escuta, Maria! Amanhã estarão aqui para levar o corpo! E depois virão nos expulsar. O outro Conselheiro e sua família, com seus serviçais, chegarão. Não há lugar para nós. ’

A vozinha persistente e cheia de maquinações não calava, e sabia que poderia vencer a vontade da mulher já tão solapada pela escuridão. O futuro para ele era incerto, e para ela mais ainda.

—Você percebe o que quer que eu faça? Usurpe uma identidade, uma família, uma herança!

—Os mortos não precisam de nada disso. Não vê que estamos em um tempo que trouxe terror repentino, mas que nos poupou? Ele nos está sendo propício. Mas vai passar. E você vai ter um longo tempo de arrependimento pela oportunidade perdida.
Num gesto dramático ele puxou a cortina da janela do corredor sobre seu rosto.

—Vê? Cubra seu rosto! Esconda-o. As pessoas vão entender. A antes formosa Adelaide não deseja ter seu rosto cheio de marcas visto. E, depois, vocês não eram tão distintas assim, apenas a riqueza dela colocava um abismo entre vocês.


Ela o olhou longamente, refletindo sobre suas palavras. ‘Não temos tempo’, ele sussurrou.