sábado, 1 de agosto de 2015

CLARA E BENJAMIN - CAPÍTULO 11 ( A CASA )

1970

Parte 1

Ela sentou-se sobre o batente da janela do quarto, estendeu uma das pernas para tentar alcançar o galho da árvore que estava próxima, mas não conseguiu. Suspirou exasperada. Nunca subira em árvores quando criança e agora percebera o quanto aquela habilidade lhe fazia falta. Porém o que sempre a impedira de ser uma exímia escaladora de árvores, foi seu medo de alturas, que aliás, nunca havia sido superado.
Olhou para baixo e se perguntou quantos ossos quebraria se caísse do primeiro andar. E pior, não acordaria só seu pai e avó, mas toda a vizinhança e colocaria tudo perder.


Só tinha uma forma, teria que se jogar até o galho, e fosse o que Deus quisesse. Respirou fundo. Contou mentalmente até três e pulou. Pareceu uma eternidade até ela sentir a superfície do galho. Firmou-se com segurança, mas ficou pendurada sem conseguir impulsionar as pernas para cima. A superfície rugosa da árvore começou a machucar suas mãos.  A possibilidade de ela cair dali, já não era tão improvável.


Ouviu um ruído como o de bater de asas bem próximo à ela. Conseguiu virar a cabeça apenas o bastante para perceber que morcegos voavam de um lado para o outro e pousavam em um galho perto do que ela estava pendurada. Foi o suficiente para encorajá-la. Balançou o corpo para frente e para trás, como se a equilibrista dentro dela tivesse despertado e jogou as pernas longas sobre o galho onde estava pendurada. Com uma força que não imaginava possuir sentou-se sobre ele como uma amazona. Devagar foi se aproximando do caule central e colocou o pé sobre uma reentrância da árvore de onde pode alcançar um caminho mais fácil e seguro até o solo.


Tocou o chão e acreditou ter enfrentado seu pior obstáculo, quando virou-se em direção ao portão alto diante de sua casa e estremeceu ao ver a mulher de cabelos encanecidos puxados em um coque rígido e vestida em um roupão negro olhando friamente para ela.


Ela levou a mão ao peito devido ao susto.



—Você enlouqueceu, Clara?

—Me assustou! — sussurrou a moça para ela. —Parece mais uma alma penada.


—Seu pai vai matar você!


Clara levou um dedo aos lábios em sinal de silêncio.


—E sua avó? O que ela vai dizer?


A moça apenas beijou-a na testa e se esgueirou pelas sombras da noite em direção ao portão. Só não esperava pelo cadeado enorme que encontrou. Estava acostumada a deixar a mansão de carro e era o motorista quem sempre abria o portão. Não levou em conta aquele detalhe. Como fora amadora em seu plano. De relance, ela o viu através da grade, do outro lado da rua escura. Firmou o olhar e percebeu que ele corria em sua direção.


—Está trancado!


—O muro. Pula!


—O que? Olha a altura! Não consigo!

—Oh, não!


Ela viu a expressão de Benjamin mudar ao olhar por sobre seu ombro. Então, com uma rapidez que a surpreendeu, ele jogou-se sobre a parede do muro, agarrando-se as bordas e começou a escalá-lo. Clara olhou para trás e percebeu uma sombra vindo rapidamente em sua direção. Teria seu pai acordado?


O namorado pousou a seu lado e abaixou-se rente à parede.


—Vem, sobe nas minhas costas. Rápido!

—Ele vai matar você! — disse ela apavorada.


—Rápido!


Quando ela começou a obedecê-lo, identificou a sombra que se aproximava. Obedina.


A mulher olhou para os dois de forma grave e retirou a chave de seu bolso.

—Sei que vou arrepender-me para o resto da vida pelo que estou fazendo.

Colocou a chave no cadeado e o abriu.

Eles atravessaram e Clara olhou para ela grata. Obedina encarou o rapaz magro e alto, de cabelos lisos, castanhos e longos demais para que pudesse apreciar seu corte. Uma franja que a aborrecia e ele jogava displicentemente para o lado, insistia em quase sempre cobrir seus olhos esverdeados. Tinha um rosto terno, quase infantil.

A primeira vez que pousou os olhos nele ficou imaginando que feitiço ele havia colocado nela. Não era exatamente um rapaz bonito.  Quis odiá-lo assim como o pai e avó dela odiavam. Ele causara problemas inimagináveis naquela família. Mas por algum motivo, não conseguia. De tanto Clara falar dele, de como ‘era amável com ela, de sua força de caráter, bondade’ passou a vê-lo através de seus olhos e o amor que ela tinha por ele, meio que se infiltrou no coração da governanta da casa.

Uma vez pode comprovar que o que ela dizia era verdade. Clara havia saído para encontrá-lo e neste instante seu pai chegou e o viu.  O relacionamento ainda era incipiente. Ao tentar impedi-la com sua costumeira tirania, Benjamin interveio. Nunca vira ninguém enfrentar o Dr. Otho em toda sua vida. Era um homem poderoso. Obedina conhecia alguns dos segredos obscuros que o rodeavam, ele não era homem de poupar ninguém. Nem de perder o que lhe pertencia.

A filha era preciosa demais para ele, não no sentido afetivo. Era uma peça que usaria para forjar uma aliança com outra família tão poderosa quanto a dele. Ela não tinha como escapar do destino que o pai havia traçado para ela, até que conheceu Benjamin na Universidade, então passou a vislumbrar outra vida.   

Ela mudou. Os olhos brilhavam. Quando a avó falava com ela em seu costumeiro tom reprovador, a neta não a olhava mais com sua costumeira submissão. Não corria para obedecer suas vontades. Clara não era de se rebelar aos gritos ou com violência, isso não estava em sua alma serena. Antes, fazia-se de surda, algumas vezes de muda. Levantava-se e esquivava-se da presença da avó e para espanto de todos começou a fazer comentários sarcásticos.  

Obedina não foi a única a perceber a resistência, o pai de Clara também o percebeu. E um dia, quando Clara realizou uma demonstração de sua nova personalidade durante o jantar, Dr. Otho saiu de seu assento, foi até ela, ordenou que se levantasse e então estapeou-lhe o rosto.

A palmada ecoou na sala de jantar e de tão forte a fez cair sentada sobre a cadeira.

Odedina estremeceu. Edwina continuou a comer como se nada tivesse acontecido.

Ele nunca havia batido nela antes. Sua estratégia era mais um olhar frio e mortal, palavras autoritárias, e o poder esmagador que emanava dele e oprimia só de se estar no mesmo ambiente. Havia mantido o espírito calmo e pouco questionador da filha sob sua influência despótica e arbitrária sem nunca levantar a mão. Ele a fazia desaparecer apenas com um olhar. Ela o temia. Mas quem não o temia? Até que sutis mudanças começaram a ocorrer em seu comportamento.

Clara levou a mão ao rosto. Obedina viu as lágrimas descerem de seu rosto e soluços saírem de seus lábios. Seu pai voltou a cabeceira e retomou seu jantar. Quando Clara levantou-se para deixar a mesa ele rosnou.

—Sente-se! Quem lhe deu permissão para sair.

Ela permaneceu até o fim da refeição, sem mais tocar na comida.

Mas todos se enganaram ao pensar que Clara retornaria ao seu costumeiro comportamento servil. A intimidação não funcionou. Ela estava mudada para sempre. E uma guerra começou na mansão do poderoso Otho Braun.

Obedina viu o casal correr através da escuridão da noite e entrar no fusca branco de Benjamin.

‘Que Deus guardasse aquelas pobres crianças e tivesse piedade dela se seu patrão descobrisse o que havia feito.’

Rodeou a mansão e entrou pela porta dos fundos. Pegou a molho de chaves que o motorista havia deixado na cozinha e colocou de volta a que havia tirado sorrateiramente.

                                                            ****

—Obedina, já preparou o café de Clara? — perguntou Edwina autoritária.

—Sim, senhora.

—Venha logo. Otho logo vai descer e preciso falar com ele antes de sair.

Ambas subiram as escadas e ainda no corredor Edwina retirou uma chave do bolso. Ao abrir a porta a mulher viu a cama arrumada e nem um sinal da neta. A janela estava aberta e a brisa da manhã soprava suavemente, fazendo tremular a cortina branca. Com apreensão abriu a porta do lavabo para ver se a encontrava. Ao constatar o sumiço da neta, fuzilou Obedina com seu olhar.

—Onde ela está? — interrogou sem delongas a governanta, que tentou esconder o medo que se derramava de seus olhos.

—Como eu poderia saber?

—Pensa que eu não a vejo de conchavos com Clara?

A outra respirou fundo tentando encontrar a frieza que precisava.

—É verdade que cuido das necessidades dela e dessa casa, pois a senhora mesma me contratou com este propósito, por isso sempre me vê a conversar com a menina. Mas com todo o respeito, Dona Edwina, desde que a senhora começou a... — limpou a garganta para não dizer nenhuma palavra que a insuflasse mais —, mantê-la no quarto, só a vejo e falo com ela quando a senhora abre a porta. Não tenho a chave.

Edwina trespassou-a com o olhar e disse ameaçadoramente: ‘É bom que não tenha nada a ver com isso, mesmo.’ Passou por ela e foi em busca do filho.

Obedina foi até a janela aberta e olhou a árvore a mais ou menos um metro de distância. Se o pai de Clara acreditasse que ela havia recebido seu auxílio, estaria em grandes apuros.

                                                               ****

—Ela fugiu com aquele hippie de raça ruim? Como eles ousam me desafiar?

Esmagou um cálice que estava em suas mãos, e não se importou quando sangue escorreu de entre seus dedos.

—Obedina! Como ela não impediu?

—Ela afirmou que não sabia... na verdade quem estava com a chave do quarto era eu. Ela saiu pela janela.

O homem a olhou incrédulo.

Não acreditava que permitir à filha frequentar a Universidade fosse desencadear tantos dissabores a ele. Devia tê-la enviado a alguma Universidade fora do Brasil, perto do pretendente que tinha para ela, ou melhor seria, se não tivesse lhe permitido nem um outro grau de educação.  Desta forma não teria conhecido aquele judeu comunista.

— Quero Melissa aqui, agora!

Melissa era a única ‘amiga’ que permitiam a Clara. Sua procedência era um mistério. Como havia chegado ao círculo daquela família fechada era incompreensível para Obedina. Tinha a mesma idade de Clara, mas o que esta tinha de ‘verde’ a outra tinha de experiente. Era casada, e seu marido era um homem respeitável e correto. Bastante contido, era verdade, mas podia-se enxergar bondade em suas atitudes. Seu perfil não se encaixava no grupo que frequentava aquela casa. Ele tinha um pequeno empreendimento, relativamente próspero e que prometia avançar com o tempo, mas em uma velocidade e dimensão do tamanho de sua ambição que era bem pálida em relação a da esposa que rescendia à ganância. Foi estranho descobrir que Melissa havia chegado à mansão através das mãos de Dr. Otho e não dos negócios de seu marido. Ela aproximou-se de Clara como uma influência desejável. E Clara — solitária—, ficou satisfeita por ter uma amiga tão vibrante, sofisticada e aprovada por sua família. Para ela, era como ler um livro vivo e obter informações que ela não teria de outra forma.

Melissa e o marido tinham um filho de quatro anos. João. Tinha semelhança com o pai, tanto em suas atitudes quanto aparência. Era um menino calmo e bondoso. Obedina notava que ele tornava-se mais sóbrio sob a sombra da mãe, mas diante do pai sua infância borbulhava. Tornava-se mais espontâneo.

O tempo e a convivência na mansão dos Brauns, mudou por completo a dinâmica da pequena família. O marido de Melissa que já sofria bastante a influência da personalidade da esposa, tornou-se em uma sombra de homem diante da força compressora de Dr. Otho. Sua empresa deu um salto inacreditável em pouco tempo. Mas ele já não era capaz de pensar por si mesmo. Seu progresso instantâneo foi conseguido através do poder social de estar vinculado a Dr. Othon.  Melissa deliciava-se com seu status, que se elevava a olhos vistos. Mas João sofria. Não via o pai tanto quanto queria ou precisava.

Obedina percebeu que a força que operava naquela casa, estrangulava aquela pequena alma. Quando ele e sua mãe vinham visitar Clara, ela o chamava a cozinha e oferecia-lhe um pedaço de bolo que ele comia sem muita vontade. ‘Coma tudinho. Vê?’, ela apontava para o recheio, ‘é doce de leite’.

Porém, quando estava perto de Clara, o menino sorria. Certa vez, ela removeu seu velho conjunto de pintura do sótão e o estimulou a desenhar, enquanto conversava com Melissa. Sempre que aparecia na casa, a primeira coisa, de que falava era no conjunto de pintura. Com pincel na mão ele recolhia-se a um mundo mais infantil e agradável.    

Clara uma vez comentou com Obedina que achava que Melissa criava o menino como se fosse um adulto e tolhia-o demais. A governanta riu, pois não era assim mesmo que Clara havia sido criada? Queria resgatar a si mesma, quando encorajava o menino. Eram almas parecidas.

A governanta ficou pasma, quando, logo no início de seu namoro com Benjamin passou a falar dele para o menino como se fosse um super herói.

—Está louca, Clara? Ele é apenas uma criança. Pode revelar ao pai, que então contará ao seu?

Mas não demorou muito tempo para que o segredo de Clara chegasse aos ouvidos de Edwina. Obedina nunca duvidou da participação de Melissa, que havia se tornado confidente da moça. Seu discernimento e sabedoria lhe diziam que aquela informação tinha tido preço de ouro e havia selado de vez sua aliança de vez com Dr. Braun, ao demonstrar quão leal ela era.  Melissa negou sua traição e ainda tentou jogar a culpa sobre João. ‘Ele é só uma criança, não deve ter feito por mal.’  Porém a desconfiança de Clara estava sob Melissa. 

Dr. Otho ficou furioso. Sua filha passou a andar escoltada para a Faculdade. O motorista praticamente a levava até a sala de aula e seguia de longe cada passo seu no Campus, até o momento de ela voltar para casa. As negociações para seu casamento foram apressadas. Como ela e Benjamin conseguiram manobrar tanta vigilância para continuarem se vendo, Obedina nunca soube.  

****

Clara segurava um buquê simples de flores do campo e usava um vestido creme, cujo comprimento passava apenas alguns dedos de seu joelho. Pegou a caneta e assinou o livro a sua frente. Depois foi a vez dele. O juiz de paz os declarou marido e mulher e Benjamin beijou sua testa.

Na estrada, de volta à cidade em que moravam, ela olhou para a aliança em seu dedo anular esquerdo, beijou-a, e suspirou de felicidade. Olhou para o perfil do marido que estava concentrado na estrada e disse a si mesma que nunca pensou que tanta felicidade fosse possível.

Ela aproximou-se dele e encostou a cabeça sobre seu ombro. Desviando um pouco seu olhar da estrada ele beijou seus cabelos.

—Eu nunca imaginei que conseguiríamos — ela disse.

—E eu nunca duvidei.

Finalmente ela sentia-se livre da vontade opressiva do pai. Sempre o temera. Quando se enfurecia ela tinha verdadeiro pavor dele. Seu sangue gelava. Não conhecia uma pessoa na cidade que não o temesse, até ela conhecer Ben. Não imaginava que um homem como ele existia. Em seu meio, os homens lutavam pelo poder e queriam sempre suplantar uns aos outros. O grande vencedor recebia os louros e decidia o destino de seus aliados.

Não haviam gentilezas entre eles, apenas a necessidade de se mostrarem superior. Qualquer gesto de bondade era visto como fraqueza. Concessões, quando feitas, eram para alcançar benefícios e satisfazer interesses egoístas. Viviam em uma guerra silenciosa pelo poder. E todo aquele proceder se estendia para as alianças entre casais.

A primeira vez em que conversou com um homem, que não tentava ganhar sua atenção pela presunção de sua riqueza ou poder, foi quando aquele rapaz pediu-lhe licença a fim de sentar-se em sua mesa na lanchonete da faculdade. Usava uma camisa com estampa paisley, e o rosto redondo e simpático tirou um sorriso polido dela.

Ela não deu muita atenção a ele, a princípio. Mas ele insistiu em roubar-lhe algumas palavras. Contou à ela que terminava seu curso de Engenharia e então começaria Arquitetura, sua verdadeira paixão. Contou-lhe tudo sobre sua vida acadêmica, e ela apenas ouvia, um pouco intimidada com todo o seu desprendimento em compartilhar tantos detalhes importantes de sua vida a uma desconhecida, fazendo-a sentir-se sua confidente.  

Seu jeito de ser causou-lhe ao mesmo tempo estranheza e encantamento. Estar ao lado dele e poder compartilhar de fragmentos de sua vida dava-lhe uma sensação de intimidade que não tivera antes com mais ninguém. Sua liberdade a encantava, e ao mesmo tempo, amedrontava. E mesmo que não fosse esta sua intenção, sentia-se desafiada por ele. Desassossegada. Sua resposta aqueles sentimentos foi uma mistura de ofensa e raiva que a fizeram evitá-lo.

Mas ele não desistia. Aparecia nos corredores da biblioteca quando estava escolhendo livros. Na lanchonete. Quando ela trocava de sala de aula, ele ‘coincidentemente’ estava passando. E geralmente seu surgimento a fazia sorrir intimamente.    

Com o passar do tempo, percebeu que no fundo, tinha medo de não encontrar a força interior necessária para romper com os laços que a prendiam, se realmente quisesse ser livre. Ele queria que ela tivesse asas como ele, mas seus pés eram pesados como chumbo. 

Benjamin passou a incentivá-la a falar de si mesma e ela ficou um pouco envergonhada, ao perceber, que na verdade, tinha pouco dela para contar e muito do pai. Os desejos dele eram os dela. Não sabia exatamente do que gostava ou o que queria. Até mesmo, o que comiam em casa era escolha do pai ou da avó. Seu desejo era estudar Direito, mas fazia o Curso de Letras, pois o pai achava mais adequado para uma mulher.

Os encontros fortuitos, se tornaram encontros marcados e pela primeira vez, gostou de algo, sem a sugestão ou ingerência de outra pessoa. Pela primeira vez escolheu sem que outro alguém apontasse o dedo, indicando-lhe o caminho. Sua alma quis Benjamin. Ela o amava. E decidiu não baixar mais a cabeça à vontade violenta do pai.

Quando Edwina descobriu, não procurou conversar, foi até o filho e contou que Clara estava vendo um rapaz que havia conhecido na Universidade, e que não conheciam sua família. Dr. Otho ficou enfurecido. Após o primeiro confronto com Benjamin, o pai de Clara percebeu que não estava lidando com um de seus capachos e mandou investigá-lo. Sua descoberta o deixou enfurecido. ‘Um vermezinho queria infiltrar-se em sua casa e contaminar o sangue de sua família. Não mesmo!’

Tomou providencias. Impediu a filha de voltar à Universidade.

Se saía de casa, era com Melissa ou com o motorista, que tinham que dar conta de todos os seu passos. Foi limitada e contrita de todos os lados.

Mas o amor que tinham um pelo outro cresceu ainda mais. Num ato despótico, numa tentativa de subjugá-la o pai a surrou. E ao fazê-lo, acabou rompendo de vez com o último vínculo que tinha com a filha: o medo.  Ela compreendeu que faria qualquer coisa para sair daquela esfera opressora para estar ao lado do homem que amava. Passava os dias imaginando uma forma de fugir de sua casa. Edwina a mantinha praticamente encarcerada e para seu desespero o pai já havia entrado em contato com homem com quem planejava casá-la, e ele estava chegando ao Brasil para oficializar a união. Sem preparativos, sem cerimônias. Sem amor.

Após duas semanas sem ver o namorado, teve medo que seus sentimentos por ela tivessem arrefecido. Ele poderia acreditar que ela havia aceitado a disciplina e decisão do pai, e ela não tinha ninguém em quem confiar que fizesse de ponte entre ela e Benjamin.

Em uma noite tempestuosa, Obedina foi ao quarto de Clara com a permissão da avó e levou-lhe um chá. Sabia como trovões e relâmpagos perturbavam Clara e o líquido quente a confortaria. Ficaram um tempo, apenas olhando uma para a outra, enquanto a moça abatida bebericava o líquido quente.  

—Por que não aceita o desejo de seu pai? Isso aplacaria sua ira. Se mostre como a Clara que sempre foi. É para seu bem.

—Aquela Clara morreu.

A mulher virou o olhar aflita. Clara não era páreo para o pai. E as coisas poderiam piorar ainda mais. Ele a veria morta antes de vê-la com Benjamin.

Obedina levantou-se, pegou a xícara de suas mãos e beijou-lhe a testa. Apagou a luz do quarto e saiu, deixando uma Clara perdida em pensamentos de impotência.

Mesmo com a cortina e janelas fechadas o quarto se iluminava com os relâmpagos. Num medo infantil ela cobriu a cabeça, e censurou sua fraqueza. Como encontraria uma saída se ainda tinha medo de relâmpagos.

Um trovão estrondou tão bravamente que ela sentiu como se toda a casa tremesse. Precisava que Obedina voltasse. Bateria na porta até que alguém da casa viesse vê-la. Descobriu a cabeça no mesmo instante em que um clarão elétrico iluminou o quarto e uma figura fantasmagórica ao lado de sua cama.

Tudo foi muito rápido. Uma mão molhada e fria cobriu sua boca impedindo-a de gritar e gotas de água pingavam sobre sua face morna, dando-lhe a impressão que a tempestade havia entrado em seu quarto. Só percebeu de quem se tratava quando ouviu a voz baixa e grave:

—Você ainda me quer? Sim ou não? Se não, nunca mais te procuro.

Benjamin.

Ela fechou os olhos em alívio. Quando os abriu o rosto dele estava diante do dela, apreensivo. Inseguro. Lentamente ele removeu a mão de sua boca.

—E se sim? — ela perguntou em um sussurro.

—Vamos fugir? Casa comigo?

Ela sorriu das duas perguntas dominadas pela pressa e agonia.

—Fujo e caso.

Ele beijou-a e ela descobriu que havia encontrado a força para ser livre. A tempestade havia irrompido em seu quarto através da janela e inundou todo o quarto de Clara com glória.

Aquele dia jamais desapareceria de sua memória.

Benjamin entrou em uma rua bastante arborizada e parou o carro diante da casa mais adorável que ela já tinha visto em sua vida. O dia estava ensolarado e combinava com seu estado de espírito.

—Esta? Vamos morar aqui?

Ele olhou para ela um pouco preocupado.

—Eu sei que é um pouco modesta para o que está acostumada mas...

Ela colocou os dedos sobre os lábios dele e impediu-o de prosseguir.

—Eu amei! Ela é linda!

—Jura?

—Juro.

Ele saiu do carro e correu até o outro lado para abrir a porta para ela.

—Espera aqui. Não se mexe.

Foi até o portão, abriu-o e voltou, tomando-a nos braços.

Diante da porta ele a colocou no chão e tateou pelas chaves no bolso. A chave única estava pendurada em uma fita azul de cetim que ele balançou diante dela, fazendo-a sorrir. Ela pegou a chave de suas mãos e abriu a porta. Entrou antes dele, curiosa com o que ia encontrar. A sala era espaçosa. Bastante iluminada e com um clima bem diferente do de sua casa.

Ela voltou-se para a porta e o viu lá, em pé olhando-a com um sorriso enigmático. Ela voltou e tomou sua mão.

—Pode entrar!

—Obrigada!

Haviam três quartos ao longo de um corredor onde passava uma corrente de ar agradável, que ela não soube precisar naquele momento por onde entrava, mas que a fez batizá-lo de corredor dos ventos. A cozinha tinha uma janela que dava para um quintal enorme, onde ela imaginou um jardim.

—É perfeita!

—Também achei — ele disse. —Depois de nosso quarto filho, veremos o que fazer.

Ela sorriu.

—Calma! Precisamos providenciar o primeiro. Ou primeira.

—Concordo com você.

Benjamin se aproximou dela com cara de distraído, acariciou seus cabelos e perguntou com cara de inocente:

—Podemos começar logo?


—Claro, assim que você fechar a porta da frente. Ah... o carro também ficou aberto.


quinta-feira, 30 de julho de 2015

A CASA - CAPÍTULO 10


Benjamin Bachman era seu pai.

Parada diante do vitral que havia sido idealizado e tocado pelas mãos do pai, ela avaliou cada cor selecionada. Refletiu nos motivos de ele as ter escolhido tão cuidadosamente. O que significariam os lírios para Benjamin, para que houvessem se tornado uma marca registrada de sua arte?

Pensou na casa onde ele havia vivido. Estava abandonada, mas pertenceria a alguém? Queria que o professor soubesse dos vitrais que estavam lá. Era importante que fossem catalogados. Era uma coleção rara. E mais importante, contavam uma história.

Mas antes, precisava voltar lá mais uma vez. Rever a casa com a informação que tinha agora. Senti-la mais uma vez sem outras impressões, que não fossem as de seus pais. 

Na hora do almoço, dirigiu-se ao restaurante onde sempre encontrava Jeanne. O tempo era instável. Abril estava às portas. O cheirinho de chuva a agradava. Viu a casa amarela simples onde eram servidas refeições por uma casal de aposentados. Estava sempre lotado, principalmente pelos funcionário do comércio daquela região. O cheiro da comida caseira bem temperada deu-lhe água na boca. Jeanne já a esperava.

Colocou a sombrinha ao lado da mesa e cumprimentou a amiga. Um senhor aproximou-se, e colocou uma terrina com salada sobre a mesa. Perguntou-lhe a carne de sua escolha e foi até a cozinha.

—Tenho uma novidade para contar-lhe.

Jeanne levava uma garfada a boca, mas parou no meio do caminho e perguntou:

—Boa? — e colocou o alimento na boca.

Ana sorriu.

—Maravilhosa! Encontrei meu pai.

A outra arregalou os olhos e praticamente engoliu a comida de um bocado só.

—Você encontrou seu pai? Falou com ele?

Ana conteve um pouco a animação.

—Eu o encontrei, mas ele está morto.

Pronunciar aquelas palavras ainda a emocionava. Seu almoço foi trazido e colocado diante dela. Não sabia se comia ou falava. Mas como Jeanne estava em suspenso ela resolveu iniciar a narrativa. De vez em quando, enquanto a amiga digeria suas palavras ela levava uma garfada à boca.

—Ana, essa história é incrível. Quase sobrenatural. A forma como os pedaços foram se encaixando. Sua ligação com a galeria, o professor Mauro que te ajudou com um emprego lá e o conhecia. Estou impressionada!

—Eu também...

Ao terminarem a refeição, pagaram, se despediram, e foi cada uma para um lado. A chuva havia estiado e ela caminhou através da praça central. Alguns pombos voavam à medida que ela passava. Quis sentar-se em um banco antes de ir para a galeria, mas estavam todos molhados.  Foi quando o viu. Estava lá parado diante dela. Sua primeira reação foi ir até ele. A segunda, desviar-se, ir em outra direção. E foi o que fez, mas ele foi mais rápido e a alcançou.

—Não podemos nem conversar um instante? —perguntou João.

—Para quê? Já dissemos tudo o que precisava ser dito um ao outro.

—Não é verdade, Ana.

Ela não sabia o que dizer. Queria ficar e contar tudo para ele, inclusive sobre seu pai. Seria tão bom poder partilhar aquela novidade com ele. Mas, como ele a receberia? Em meio a seus devaneios ouviram uma voz de mulher chamá-lo.

—João? Meu filho?

Viraram a cabeça juntos e Ana se deparou com uma mulher que ela acreditou não pertencer aquele cenário. Era uma mulher bonita, mas acima de tudo, elegante. Vestia um tailleur verde musgo de bom corte. Seus sapatos pretos de salto alto eram de grife cara. Os cabelos escuros estavam puxados em um coque elegante. Uma leve maquiagem cobria seu rosto. Irretocável. Uma boneca de luxo em um dia nublado, em meio à praça lamacenta da cidade.

Ana percebeu que havia um carro preto parado bem no contorno da praça, de onde ela parecia ter saído, pois o motorista a olhava entre impaciente e indeciso. Provavelmente esperava que ela voltasse logo, para que ele removesse o carro do local inadequado.

Então os olhos dela a encontraram, e o que veio a seguir estarreceu Ana.

A mulher arregalou os olhos, colocou as mãos sobre a boca e começou a arfar. Parecia ter visto uma fantasma.

—Mãe? O que há? — perguntou ele preocupado e aproximou-se dela para ajudá-la.

Ela não falava, apenas encarava Ana com um olhar assustador. Segurou o pulso de João com uma força descomunal e finalmente declarou:

—Vamos embora daqui! Venha!

—A senhora está bem?

—Não! — gritou com ele, que assustou-se com a reação dela.  

Ele olhou para Ana preocupado e disse:

—Te vejo depois.

Ana o viu acompanhar a mãe até o carro, e depois entrar junto com ela.

Um mal-estar tomou conta de Ana. O olhar daquela mulher em direção à ela a desconcertou. Pousou a mão embaixo da garganta e a esfregou na esperança que aquele sentimento nefasto a deixasse. A mãe de João não havia gostado dela. O pensamento a perturbou mais ainda.

Voltou para a galeria e mergulhou no trabalho.  


*****


—Não quero que veja aquela moça! Nunca mais!

—Por que? — ele perguntou frio.

Ela pareceu confusa por um instante.

  —Porque não gostei dela. Não me pareceu uma pessoa de classe e tem uma coisa nela que... parece maligna. É uma aproveitadora, tenho certeza.

Ele levantou as duas mãos.

—Para. Eu nem sei porque perguntei sua opinião. Você está se ouvindo? — ele deu um sorriso sarcástico. —Claro que está! É a Dona Melissa falando. Acha que ligo para esse seu pensamento mesquinho sobre ‘classe’? Maligna? Nunca! E aproveitadora menos ainda.

—Você é um inocente, meu filho. Ela viu que você tem carro, mora em uma mansão de um bairro luxuoso e decidiu se aproveitar. Então, era por ela que você ia deixar de namorar Eduarda? — debochou. — Está louco!

—Ela não sabe onde moro. Mas isso não importa, se soubesse não mudaria nada. Ela não é ligada nisso.

—Não ouse trazê-la a minha casa.

João a olhou ressentido.

—Esta casa também pertence a meu pai, e tenho certeza que ele não se oporia à presença dela aqui.

—Não ouse me contrariar, João! E outra, você não vai deixar Eduarda por causa dela.

A isso, ele não respondeu, até porque Ana o havia dispensado friamente. Ele deu as costas para a mãe, que aparentemente havia melhorado e ainda a ouviu ameaçá-lo.

—Eu não estou brincando!

Ao ficar sozinha, Melissa foi tomada por pensamentos tortuosos. ‘Não podia ser’. Andava de um lado para o outro na sala e de repente parou diante do grande espelho com moldura de prata. Olhou para a mulher de rosto assustado. Nem parecia com ela.

‘O passado não podia estar de volta.’


*****


Ana segurou-se durante aqueles dias para não dar com a língua nos dentes. Queria contar tudo para o professor Mauro. Mas algo em seu íntimo a fez esperar.

No sábado, ao sair da galeria foi direto para o ponto de ônibus. Estava disposta a passar toda a tarde nos jardins da casa. Queria pensar em Benjamin. Imaginar como havia sido sua mãe. Qual seria seu nome? Sabia que se parecia com ela. Com a mulher dos vitrais. Até mesmo o professor Mauro vira a semelhança através das fotos antigas, sem ter conhecimento do vínculo que existia entre elas.

O ônibus parou e ela entrou. Trazia à mão um pacote de papel onde continha um sanduíche de queijo e presunto e uma garrafa com suco. Comeria seu almoço sentada dentro da estufa encantada construída por seu pai. Ah, se pudesse! Dormiria lá! Passaria dias a fio naquele lugar se reencontrando.

Chegaram ao ponto onde ela deveria descer.

Ela caminhou devagar pelas ruas até chegar a sua. Algumas crianças pulavam amarelinha na calçada. Uma mulher baixa e rechonchuda estava debruçada em um muro baixo assistindo e vigiando a tudo. Ana preocupou-se pois ela poderia estranhar ao vê-la entrar na casa abandonada. Já começou a imaginar uma desculpa. Pelo menos não viu a mulher que havia dito à ela que a casa era amaldiçoada. Pensou um pouco melhor e decidiu. Não precisava de desculpas. A casa era de seu pai.

Ao chegar diante do portão da casa do final da rua percebeu que alguém havia removido a fita branca. Havia sido as crianças? Caminhou devagar pela alameda frontal e foi arrodeando a casa até chegar aos jardins. Num momento fora do tempo, ela viu e foi vista. Uma mulher de rosto enrugado, cabelos brancos e vestido preto simples deu um sorriso quase tímido. Era um pouco encurvada. Levantou os braços cansados para ela.

—Eu sabia que viria.


****


Quando viu o ônibus parar e Ana descer, João esperou um momento. Estacionou o carro e desceu. Atravessou até a calçada onde ela caminhava lentamente e seguiu-a.  Não morava por ali, disso ele sabia. Ultimamente ela andava por lugares onde não a imaginava. De repente ficou temeroso do que poderia ver. Será que a veria nos braços de outro homem?

Viu-a virar a esquina e adiantou o passo indeciso. Manteve uma distância segura do que poderia ver. A brisa soprava sobre os cabelos dela. Quando passou por uma árvore levantou a mão para alcançar um galho mais baixo e puxou uma folha. Apreciava o caminho. Ficou a imaginar se sua leveza se devia a um encontro ansiado. Com outro.

Novamente virou a esquina.

E ele mais uma vez apressou-se.

Foi então que uma sensação de dejà vu o atingiu. Conhecia aquela rua. Aquelas árvores que lançavam longas sombras sobre as calçadas e mantinham uma postura vigilante em frente de cada uma das casas lhe causavam uma sensação de familiaridade. O cheiro de verde fresco misturado a deserto — definição tão paradoxal de sua percepção—, que emanavam das Cycas lhe despertaram uma nostalgia agridoce. As crianças que pulavam amarelinha davam risadas entusiasmadas e ele lembrou-se que havia um dia sido uma criança, mas não tão feliz. Por quê? A mulher debruçada sobre o muro riu para ele, cumprimentou-o e ele respondeu. 

Viu Ana entrar na casa. A casa. Aquela casa logo no final da rua. Seu coração disparou. Sentiu-se inseguro, com medo até. Olhou para trás. Encontrou o olhar da mulher sorridente. Sua respiração estava rápida e ele pensou em correr de volta para seu carro. Precisava de um abrigo que o protegesse da súbita sensação de perigo. Uma das crianças o olhou como se percebesse que havia algo de errado com ele. Controlou a respiração e decidiu enfrentar o que estava adiante. Caminhou para algo que ele conhecia, mas não lembrava o que era.

Diante do portão suas pernas ficaram paralisadas.

Não podia ir adiante com aquilo. Não queria.

‘Seu rosto olhando através da grade do portão para a mulher com um longo vestido azul que ondulava a cada passo que dava. Os cabelos longos e claros brilhavam sob à luz vespertina de um sábado... tão longe... Caminhava em sua direção com um sorriso nos lábios. Havia tanta doçura em seu olhos. Sua mão estava sobre o ventre proeminente.’

Era tão vívido para ele. Era apenas uma criança, mas já correra até ali, contente por escapar de sua casa e esperara com o rosto colado naquelas grades até que ela os viesse receber.

‘Não toque, João!’, ele removeu a mão pequena da barriga que acariciava, embaraçado por ter feito algo vergonhoso. ‘Não seja tão dramática, Melissa, ele só está curioso. Há um bebê morando aqui, e logo vai sair para te conhecer.’  

As batidas enlouquecidas de seu coração o instigavam a correr dali. Nunca mais queria voltar. Nunca mais queria ver a mulher que lhe inspirara tanta doçura e agora lhe trazia dor e medo. Não podia nunca mais ver Ana. Aquele era um lugar de dor.

O homem de terno preto levou o dedo sob os lábios de linhas duras, decretando sua lei de silêncio. Paralisando sua alma.’


João levou a mão aos lábios e fechou os olhos. Não podia ser. Aquilo não havia acontecido de verdade. Aquelas pessoas não existiam. Aquela casa não existia. Era tudo uma invenção de sua mente.