Joshua colocou as provisões na caminhonete,
e antes de entrar, levantou os olhos e deu uma última checada no céu. O espesso
cobertor acinzentado encobria o azul celeste, e assim seria por um bom tempo.
Aquela não era sua época preferida do ano.
Olhou para o velho relógio da praça
— uma referência para os moradores da cidade, presenteado por seu fundador —, e
depois para o seu. Surpreendentemente, havia sincronia entre eles, até mesmo
nos segundos. Parecia estar, finalmente, fazendo as pazes com o tempo.
Sorriu para si mesmo por seu pensamento ingênuo. Mas
nos últimos anos, estar na cadência da vida era-lhe tão incomum, que o fez
refletir: não precisar ajustar seus ponteiros sempre que olhava para um relógio
era uma novidade. Não sabia como conseguia manter seus compromissos em dia.
O vento começou a soprar mais forte e ele se apressou.
─ Josh, a previsão do tempo é péssima. Não teme ficar
isolado naquela cabana no meio do nada, sem saber quanto tempo a nevasca vai
durar? ─ abordou Baptiste com seu inconfundível sotaque francês.
─ Não se preocupe. Sinto-me confortável em minha
“cabana no meio do nada".
─ Eu não tenho nada contra sua vida de recluso, mas
pelo menos durante essa época você poderia ficar na cidade. Ao menos, mais
próximo. Essas estradas são muito traiçoeiras, e mais ainda, durante
tempestades.
─ Conheço bem esta estrada e consigo chegar em casa
antes que a nevasca comece. Se o celular não funcionar, ainda tenho o rádio. Au
revoir! — sorriu e tocou levemente a testa com o indicador em uma
despedida.
Baptiste ficou olhando até a caminhonete virar na direção
oeste da estrada Mount Zion. Então, também foi para casa, a fim de abrigar-se
do frio intenso.
Josh pensava nas planilhas que ainda teria que
imprimir e analisar. Orçamentos que precisavam ser revistos e pessoal novo que
tinha que contratar. Os trabalhadores do ramo da construção eram constituídos
por uma população bastante flutuante. Alguns funcionários, que haviam
trabalhado com ele em seu último projeto haviam pedido demissão e precisava
encontrar outros o quanto antes, para que não houvesse percalços na nova obra
que começaria em algumas semanas. Tinha muito trabalho para aqueles dias, e
sabia, que, se a meteorologia estivesse correta, provavelmente os ventos
acabariam com a rede elétrica. Até que iniciassem os reparos, ele já teria
perdido um bom tempo. A dependência da tecnologia tinha suas desvantagens e ele
esperava chegar em casa logo e prevenir-se.
Ligou o rádio.
O Departamento de Trânsito da Geórgia informou que
algumas vias secundárias da I-75 foram interditadas, em virtude de Projetos em
andamento, tais como restauração de pontes e nova sinalização. E devido a uma
previsão de nevasca que afetará a Interestadual nas próximas 48 h, é importante
que seja evitada...
Aqueles que já estão na estrada devem ficar atentos...
... principalmente as vias que levam ao norte do
Estado...
Seria um longo inverno, pensou.
Voos foram cancelados...
A neve começou a cair, porém, o que mais o preocupava,
eram os ventos. Rajadas de alta velocidade não eram incomuns com aquele tempo. Não
queria ser atingido por nenhuma árvore ou mesmo ter seu carro arrojado pelo ar
como se fosse um brinquedo. Devia ter aceitado o conselho de Baptiste, pensou
arrependido.
A voz do locutor começou a ser interrompida por
chiados. Ele tentou sintonizar em outra estação, mas só conseguiu um ruído
agudo de estática, então o desligou. Estava, agora, a dez minutos de sua
cabana. Era um tempo relativamente longo, para quem encontrava-se na iminência
de uma nevasca. Ao entrar na região de Ajalon, os ventos tornaram-se mais
furiosos.
Ouviu um estalido e ao olhar pelo retrovisor, viu uma
árvore bloqueando a estrada. Por um triz, pensou. Ficou inquieto.
Então, após uma curva bastante acentuada, ele o viu.
Um veículo havia derrapado, rodado e batido em uma
árvore, bloqueando um terço da estrada a sua frente.
Reduziu a velocidade e parou seu carro. Ficou
observando a cena por um instante.
Há muito tempo, havia superado o passado, mas por uma
razão que não pode compreender seu coração se contorceu em angústia. Apertou o
volante com força e manteve os olhos bem abertos, pois se os fechasse teria
visões que não queria lembrar. Respirou fundo e controlou-se.
Pegou a lanterna no porta-luvas. Puxou a gola da blusa
de lã sobre o nariz, o capuz de sua parka sobre a cabeça e saiu do carro
rapidamente.
A rajada de vento cru o atingiu em cheio, fazendo-o
enrijecer os músculos da mandíbula. Em sua alta velocidade, se opunha a que ele
cobrisse a pequena distância entre os carros. Joshua baixou a cabeça forçando o
corpo para frente até que, chegou a porta do condutor. Limpou a superfície do
vidro velada pela neve com a blusa e ligou a lanterna. Havia uma pessoa com a
cabeça pendida sobre o volante.
O vidro da janela do passageiro havia quebrado com a
colisão. Dependendo do tempo em que estivesse ali, já poderia ter desenvolvido
uma hipotermia, além do trauma sofrido, ponderou preocupado.
Abriu a porta, e percebeu que era uma mulher, a
condutora do carro. Apoiou a cabeça dela no encosto do banco e colocou parte de
seu corpo para dentro do carro, esticando a mão para acionar o botão vermelho
que desafivelava o cinto. Pegou o corpo imóvel, e carregou-o até a caminhonete,
deitando-a sobre o banco traseiro. Entrou no carro, e certificou-se que
respirava. Ficou aliviado ao perceber o movimento leve do seu peito. Sem perder
mais tempo, partiu, antes que a neve o atolasse, irremediavelmente.
Ao mesmo tempo em que dirigia, tentava entrar em
contato com o Resgate pelo celular. Sem sucesso. Pegou o two way radio
VHF e chamou por Baptiste.
‘Baptiste, Josh falando, copia?’
Esperou.
Repetiu a tentativa de contato por mais duas vezes sem
êxito, e concluiu que ele deveria ter largado o rádio em algum lugar.
Olhou pelo espelho retrovisor e tentou enxergar na mulher
alguma reação. Um sinal de vida. Percebeu, então, a imprudência de sua atitude,
— completamente arriscada. Focou na estrada. Ao chegar em casa, tomaria as
atitudes necessárias.
Deus, permita que eu chegue sem mais incidentes.
Ajude-a a resistir.
Quando viu a estreita entrada à esquerda da estrada,
que levava em direção a sua cabana, sentiu alívio.
A fumaça ainda saia da chaminé. Ele havia alimentado o
fogão à lenha, pela manhã, antes de sair de casa.
Parou o carro, removeu a mulher e levou-a para dentro.
Dispôs suavemente o corpo imóvel sobre a cama.
Tirou as luvas, e colocou os dedos sobre a pele clara do pescoço dela buscando
pulsação. Encontrou um ritmo tímido, quase imperceptível sobre seus dedos.
Estava fria, os lábios azulados e seu casaco úmido. Se já não estivesse
hipotérmica, estava próxima disso. Levantou-se, e alimentou o fogão com mais
lenha, e só então, começou a remover o casaco que ela vestia.
Perplexo, percebeu que por baixo do casaco, ela usava
um vestido de noiva. Encontrava-se precariamente vestida para enfrentar aquele
tempo. Ele puxou-lhe as botas pesadas e só então, removeu seu próprio casaco,
botas e enfiou-se debaixo do cobertor, abraçando a desconhecida. Esfregou seus
braços por alguns instantes e esperou que aquilo ajudasse pelo menos um pouco.
Um sopro sutilmente doce e balsâmico envolveu seus
sentidos. Canela. Era a fragrância que ela exalava. Ficou imóvel por um
instante apenas sentindo. Ela respirava suavemente. Seu peito subia e descia.
Sentiu alívio. Então, observou o perfil branco e suave e viu o inchaço na
testa.
Ela pode ter tido uma concussão, preocupou-se
Saiu de debaixo do cobertor e pegou o celular.
O sinal continuava ruim. Não conseguia completar a
ligação.
Vestiu novamente seu casaco e foi até o quarto do
andar superior. Abriu uma janela e foi golpeado violentamente por uma lufada de
vento gélido. Seu rosto ardeu e ele escondeu-se um pouco para bloquear a massa
uivante que o atingiu frontalmente, então fez a ligação. Fez algumas
tentativas, mas ou o sinal era fraco ou ausente e não completava sua ligação. O
rádio tampouco funcionou.
Tentou lembrar-se de alguma recomendação de primeiros
socorros sobre traumas na cabeça. Alguma manobra amadora, que pudesse salvar a
vida de alguém em um momento daquele.
‘Ridículo. Ele não era médico’, racionalizou
para lidar com a ansiedade que se avolumava e turbava sua percepção. Precisava
esperar até que pudesse realizar algum contato com o resgate ou com Baptiste.
Ela tinha pulso e respirava. Esperava que isso, por si só, fosse um bom sinal.
Não acreditava que a nevasca duraria mais de 24 horas. Quando os ventos
diminuíssem, ele tentaria contato novamente. Até lá, oraria para que ela
ficasse viva. Não queria passar pela traumática experiência de lidar com a
morte de alguém que estava tão perto de si. Não, de novo.
Voltou para o térreo e contemplou o embrulho humano
embaixo de seus cobertores. Uma curiosidade imensa cresceu dentro dele. Teria
ela fugido do próprio casamento? Tinha escolhido uma péssima data para se
casar. A previsão do tempo para toda aquela semana era desencorajadora. Mas, de
uma coisa estava certo, não fora o clima, que a havia impedido de ir adiante
com a cerimônia.
Sabia que era de Atlanta, ou pelo menos, vivia lá. Viu
a placa do carro. Sua fuga — era essa sua primeira teoria —, trouxe-a longe.
Seu descaso em vestir roupas mais adequadas demonstrava a urgência em deixar
para trás seus planos. Ou será que havia sido abandonada e esquivava-se da
vergonha e da dor?
Voltou para debaixo do cobertor e abraçou-a novamente.
A pele estava morna. Compreendeu que ela não corria mais perigo de ficar
hipotérmica. Afastou-se e rompeu o contato, que, de repente, pareceu-lhe íntimo
demais. Deu-lhe as costas e focou-se nos elementos que se debatiam furiosamente
fora da cabana, e, que por um instante, haviam convergido para colocá-lo ao
lado daquela mulher: no vento que bramava assustadoramente, na neve. No carro
de Atlanta... ou era Flórida? O acidente...
Sua respiração foi ficando mais regular e profunda,
até que adormeceu...
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