Decidiu passar a noite fora do
vilarejo e partir no dia seguinte.
Durante o percurso escutou um
barulho estranho dentro da própria carroça. Parou-a, pensando, que talvez, algum
animal houvesse invadido seu carroção, talvez até um rato. Lady Beatrix
detestava aqueles animais. Algo que seu falecido pai a ensinara foi a manter a
limpeza meticulosa e desta forma evitar aquelas criaturas sujas e provocadoras
de doenças.
Pegou uma vassoura e foi atrás do
invasor. Qual não foi sua surpresa ao
perceber que não havia rato nenhum, mas sim um moço. Ao ser descoberto, não se
fez de rogado, deu um sorriso maroto e ergueu-se diante de Lady Beatrix.
A moça assustada deu um salto
para trás e caiu por cima das tranqueiras do pai.
O rapaz apressou-se em socorrê-la
e colocá-la de pé.
“Está bem, senhorita?”
Ela o encarou sem nenhuma simpatia. Ao
perceber isto, ele colocou as mãos na cintura e estufou o peito.
—Quem é você?
—Oh! Billie, ao seu dispor,
madame.
Ela não gostou do tom de gracejo.
—O que está fazendo em minha
propriedade? — perguntou exasperada.
— Ah... bem resolvi pegar uma
carona — disse com ar distraído.
Havia um brilho sagaz nos olhos
verdes e um lampejo passou pela mente de Lady Beatrix. Ele era o larapio da
vila e estava fugindo as suas custas! Ela colocou-se de pé diante dele, que
talvez fosse apenas uma ou duas polegadas mais alto que ela e cruzou os braços
diante do corpo.
—Você é o ladrão da vila — acusou.
Uma sombra cobriu os olhos dele,
e por um motivo desconhecido Lady Beatrix arrependeu-se de suas duras palavras.
Ele virou-se sem nada dizer e
procurou a saída do carroção.
— Espere! — ela disse.
Mas ele não virou-se ou obedeceu.
Afastou o tecido de cor que fechava a entrada do carroção e pulou ao chão. Beatrix seguiu-o, sentindo-se cada vez mais
culpada.
—Desculpe-me, não quis dizer
isso, Billie! — quase estranhou a intimidade ao usar o nome de batismo de
alguém que havia acabado de conhecer.
Ele virou-se para ela e o rosto
sardento estava rubro.
—Quis dizer isso, sim! Não sou
ladrão!
—Desculpe-me...
Então, ouviu um ronco estranho e
quando entendeu de onde se originava ficou constrangida. Billie mais ainda. Ele
baixou a vista e virou-se para ir embora.
—Para onde pensa em ir? Vou até a
próxima vila, posso levá-lo ate lá... se ainda quiser.
—Vamos, suba no carroção. Vou
montar acampamento até amanhã, acender uma fogueira e fazer um cozido de
coelho.
Lady Beatrix ouviu o ronco
novamente.
Billie olhou para ela orgulhoso.
—Troco comida por trabalho,
madame.
Foi até a frente da carroça e
subiu no banco de madeira do condutor. Lady Beatrix sentou-se a seu lado, pegou
a rédeas e colocou os dois pangarés para andar.
O carroção seguiu pelo caminho da
floresta que circundava a vila até parar em uma clareira. As primeiras estrelas
já estavam no céu e Bee, tratou de acender logo o lampião. Viu Billie
adiantar-se para fazer uma fogueira e logo depois se embrenhou no emaranhado
sombrio de árvores altas. A moça achou a atitude tenebrosa, já que ele podia
perder-se na escuridão e não mais encontrar o caminho. Mas, em poucos instantes
Billie estava de volta com água. Saciou os animais e usou um pouco matar a
própria sede. Pelo visto, ele conhecia bem aquele caminho, ela pensou.
Bee tratou de colocar o jantar
sobre a fogueira e ficou a esperar o fogo fazer seu trabalho. Olhava para o
rapaz de soslaio. Perguntou-se se era mais novo, ou mais velho que ela. O que
fazia da vida, onde estava sua família e se era ele, o ladrão dos dois pães da
padaria.
Quando o cheiro do ensopado
começou a dar-lhe água na boca, pegou um prato de bronze amassado encheu-o com o caldo e entregou-o
para ele. Ele não fez uso do talher que ela havia dado a ele. Pegou a carne com
a mão e engoliu-a de um bocado só. Ela teve medo que se engasgasse e lhe
causasse transtornos. Então ele percebeu que ao invés de comer ela o observava.
Não se fez de rogado, deu as costas para ela e continuou a comer com
sofreguidão. Ao terminar, virou-se para ela com o prato vazio, e começou a
observá-la enquanto comia. Ela pode perceber seus olhos torturados. Ela
abandonou seu prato, pegou uma concha cheia de dentro da panela e olhou para
ele.
—Você pode repetir!
E assim foi até que a panela
ficou vazia.
—Eu trabalhava para Monsieur
Pierre — ele declarou de repente. — Eu e minha irmã, fomos trocados por dois
pares de sapato.
Bee olhou para ele aturdida, mas
acreditou que não havia entendido bem suas palavras, ou talvez fosse algum costume
exótico daquele povoado.
—Desculpe, não entendi. O que
quer dizer com ‘trocados por pares de sapatos’?
—Nosso antigo dono nos trocou por
sapatos.
—Sapatos?
Ele olhou-a sério.
—Eram dos bons. Couro bom, sabe.
Não sapatos ordinários.
Ela não soube o que dizer.
—Mas ele não era bom pagador.
Tinha que nos pagar por nosso trabalho. O justo! Sempre trabalhamos por nosso
alimento e pouso. Toda manhã acendíamos a fornalha e preparávamos a massa, e
depois de assada, recebíamos nossa porção. Mas com o passar do tempo ele foi
ficando mesquinho. Quando a massa ia para a fornalha ele nos mandava cuidar dos
animais. Tive que entrar em questão com ele. Ele passou a nos dar apenas metade
do sustento que nos devia. Frances foi ficando fraca, até que adoeceu. E mês passado
se foi. Ontem apenas tomei o que era
meu. Estava partindo. Não devo mais nada para ele. Ele enfureceu-se comigo,
disse que não iria perder mais um empregado e me acusou diante da cidade. Não
está certo sabe? — ele moveu a cabeça de um lado para o outro. — Isso não é
certo, e eles sabem.
— Eu sinto muito, Billie.
Ele a olhou encabulado por suas
palavras cheias de sentimento. Fez um aceno curto com a cabeça.
—Amanhã partiremos, e quem sabe
na próxima cidade não tenha mais sorte?
—Sorte...não posso dizer que
tenho sorte, madame. Mas tenho dois braços e muita disposição.
Bee entregou-lhe um cobertor de
retalhos coloridos e ele foi até o banco de madeira do carroção e pegou no sono
quase que imediatamente. Ela entrou no carroção e deitou-se na cama estreita
que se apertava no pequeno espaço entulhado de coisas. Dormiu até a metade da
segunda vigília, quando ouviu gritos e um clarão alaranjado que se infiltrava
pelas brechas do tecido grosso do carroção. Com o coração aos pulos, olhou por
uma fresta e viu pessoas rodeando sua casa com tochas na mão. Com um puxão
violento a entrada do carroção foi aberta, e ela viu o prefeito, Conde Pauli.