Recife - 1911
Os saltos de madeira
emitiam um ruído oco sobre o chão lamacento, por causa da chuva da madrugada. Gotículas
saltavam por todos os lados e salpicavam de pingos marrons a barra de sua saia.
Comerciantes abriam as portas dos armazéns e feirantes expunham seus víveres em
quitandas sobre a calçada, esperando os fiéis compradores. Em pouco tempo o
local estaria abarrotado de gente. Mulheres em busca de uma pechinha e empregados,
com cestos sobre a cabeça, enviados por seus patrões para conseguirem frutas e
verduras mais frescas e carnes vermelhas, ainda cheirando a sangue fresco.
Os
pés de Maria Gentil doíam. Estava desacostumada a usar aqueles sapatos, mas por
desejar causar uma boa impressão, decidiu-se por carregá-los.
Apressou
o passo quando chegou à rua onde os vestígios das mudanças aceleradas e
atravancadas a deixavam irritada. A era das demolições e reconfigurações parecia
não ter mais fim, ouvia-se, até, que estava apenas em seu começo. Era o começo
do fim. Tudo seria rearranjado. O velho substituído pelo novo, pois o propósito
era avançar, se para o bem ou para o mal, só o oráculo do futuro é quem poderia
dizer. Ela seguiu pela Rua Bom Jesus e passou diante do Banco, que escondia em
suas bases, fragmentos de uma cultura e fé execradas, como sua mãe costumava
sussurrar aos seus ouvidos, entre as quatro paredes do quarto onde viviam, para
que ninguém soubesse, sequer imaginasse, que elas, também, eram restos, que
haviam sobrevivido teimosamente na superfície da vida através do tempo. As histórias
ficavam amalgamadas no cerne da alma, mas se constituíam em um segredo a ser
guardado e mentido no mundo dos homens. Um longo silêncio debaixo de pedras,
que talvez, um dia, clamassem.
Suas
vidas continuaram. Um reino decadente, diante do que um dia haviam sido e da
promessa irrealizável do que poderiam voltar a ser. A mãe, viúva, com quatro
filhos para criar só, vivera entre a lealdade a história de seus antepassados e
a amargura, mas morrera de olhos abertos, enxergando um tempo de glória que
nunca viveu, apenas ouvira falar, e que fez parte de suas fantasias de criança.
Todos os dias, confrontada pela realidade da pobreza, à espera de dias melhores
que nunca bateram a sua porta, chegou a confidenciar à filha, que talvez, o
sangue deles afinasse ao longo dos anos, e, quem sabe, ela seria mais feliz.
Deveria apenas calar.
O
sol já ia alto, despistando o dia da atmosfera chuvosa, que havia tomado a
noite anterior. Ela atravessou o largo do Corpo Santo com pressa, constatando
num relance, o fim que se avizinhava, com a força inexorável de um juízo final.
O mundo ao seu redor desabava diante da
ferocidade do progresso. Os pequenos seres que dele faziam parte, indefesos e assombrados
diante do cenário apocalíptico que os abatia, corriam em busca de outro abrigo,
como ratos, que acabam de ter seu valhacouto descoberto. Ela, também, corria em
busca de amparo, antes que acabasse enterrada ali, debaixo dos escombros da
desesperança, sem que houvesse bocas para contar sua história.
Seu
salto ficou preso entre dois paralelepípedos de pedra portuguesa fixadas
toscamente no passeio. Seu pé deslizou para fora do sapato e ela pisou no chão
com a meia branca e fina, — a sua melhor —, deixando sua base úmida e marrom.
Uma exclamação exasperada escapou de seus lábios.
Voltou
dois passos para recolocar o pé no calçado, quando percebeu o brilho fosco,
debaixo da água lamacenta e mal cheirosa. Removeu a luva e contendo o asco,
enfiou os dedos através do líquido frio, trazendo consigo uma moeda de bronze.
40 réis. Os dizeres em filigranas rodeavam o número, num conselho, para quem
tinha a geleia da cabeça laureada com esperteza: a economia faz a prosperidade. Sorriu agradecida para a sorte. Colocou o donativo na bolsinha e
seguiu em frente, mais animada, mas não distraída. Queria impressionar pela
pontualidade, por isso, saíra bem mais cedo de casa. Precisava ainda pegar o
bonde, e as mulas não estavam mais a andar lépidas, como se também
pressentissem que estavam a caminhar em direção a seu fim. A efemeridade
coalhava o ar.
Fixou
os olhos ao longe, em busca do movimento dos bondes, quando, inesperadamente,
sentiu um puxão violento em seu braço, e seu chapéu caiu. ‘Aonde vai com tanta
pressa, boneca?’
Seu
coração disparou e a boca secou. Ainda que soubesse que aquele lugar era
habitado por todo o tipo de gente, e ela estivesse andando sozinha, — vulnerável
a todo o tipo de atenção desagradável —, em todas as suas idas e vindas, jamais
fora abordada daquela forma por ninguém, ainda que percebesse alguns olhares de
malícia vez ou outra.
O
homem vestido em um terno escuro, não era qualquer. Embora estivesse com a
barba por fazer e hálito alcoólico, suas roupas eram bem cortadas. Duvidava que
fosse um boêmio, já que esses voltavam para casa ao raiar da luz da matina. Era
na verdade um gatuno oportunista em busca de presas fáceis. E ela estava na
vez.
Seu
olhar feroz a arrepiou.
—
Deixe-me! — ela puxou o braço, levada pelo sentimento de pavor e abaixou rapidamente
para pegar seu chapéu.
Mas
ao invés de se sentir acuado pelas pessoas que voltavam-se para eles com
curiosidade, aproveitou o movimento que ela fez para recolocar o chapéu e puxou
a bolsinha de tecido que segurava.
—Não!
— gritou ela.
Ele
a abriu, removeu todas as moedas, inclusive a que ela acabara de achar, desmanchou
a dobra de um papel, que estava entre os parcos pertences encerrados na
bolsinha, e leu atrevidamente seu conteúdo, — o endereço rabiscado do destino
de Maria. Amassou-o desdenhoso e jogou longe.
Com
o coração desfalecido, ela correu em busca do papel amassado e o resgatou com
mãos trêmulas.
Ressentido
pelo atrevimento dela em dar-lhe as costas, agarrou-apelo braço e arrastou-a, empurrando-a
violentamente contra uma parede. O medo e o choque a impediram de falar. Seus
olhos se arregalaram diante do rosto retorcido pela maldade.
—
Não deves sair por aí, sozinha! — cuspiu contra seu rosto enquanto o segurava
com mãos sujas e rudes.
Ela
reagiu, empurrando-o com toda sua força e escapou dele. Mas como que para
afrontá-la, perseguiu-a, beliscou sua nádega e deu uma gargalhada zombeteira.
Maria
correu com o coração na mão. Os sapatos horríveis a maltratavam e por pouco ela
não os deixou no meio do caminho. Ainda podia ouvir atrás de si o ranço maldoso
de sua risada. Só parou quando chegou diante do arco arquitetônico amarelado
que fazia fronteira com a longa escadaria da igreja. Olhou para trás ofegante e
percebeu que estava segura.
Sua
mão direita segurava a bolsinha vazia e a esquerda apertava furiosamente o
papel amassado. Imaginou que sua aparência estaria deplorável. Todos os fios de
cabelo que ela havia cuidadosamente arranjado, desalinhados. E se sua face
espelhava o que estava em seu interior, as pessoas poderiam enxergar o
assombro.
Quando
finalmente seu coração não mais pulsava em sua garganta, ela enxugou a face com
o lenço perfumado com lavanda, que para sua sorte havia deixado no bolso da
saia verde musgo e as mãos grosseiras não haviam tocado. Respirou profundamente
a fragrância, para que ela invadisse seus sentidos. Um soluço quis escapar de
seus lábios, mas ela o abafou. Não era o momento para sentir pena de si mesma.
Tentou
arrumar os cabelos como pôde e marchou como um soldado diante da guerra
iminente e inevitável, sabendo que nada mais o espera adiante, a não ser, a
morte. O bonde vinha lentamente. Ela o parou, entrou e não pagou. O guia, com
seu bigode escuro de pontas viradas para cima e chapéu da Pernambuco Street Railway ficou olhando para ela inquisidoramente,
esperando pelo tilintar das moedas. Ela baixou os olhos, deixando metade da
face encoberta pelo chapeuzinho ornamentado com minúsculas flores, lilás e rosa,
como se assim pudesse ficar invisível. Ele fez um muxoxo com a boca e enrugou a
testa. Murmurou palavras ininteligíveis consigo mesmo e seguiu adiante com a
direção.
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