segunda-feira, 4 de janeiro de 2016

CALDAS BRANDÃO - UM PEQUENO CONTO DO DESTINO - CAPÍTULO 1

Recife - 1911

Os saltos de madeira emitiam um ruído oco sobre o chão lamacento, por causa da chuva da madrugada. Gotículas saltavam por todos os lados e salpicavam de pingos marrons a barra de sua saia. Comerciantes abriam as portas dos armazéns e feirantes expunham seus víveres em quitandas sobre a calçada, esperando os fiéis compradores. Em pouco tempo o local estaria abarrotado de gente. Mulheres em busca de uma pechinha e empregados, com cestos sobre a cabeça, enviados por seus patrões para conseguirem frutas e verduras mais frescas e carnes vermelhas, ainda cheirando a sangue fresco.

Os pés de Maria Gentil doíam. Estava desacostumada a usar aqueles sapatos, mas por desejar causar uma boa impressão, decidiu-se por carregá-los.

Apressou o passo quando chegou à rua onde os vestígios das mudanças aceleradas e atravancadas a deixavam irritada. A era das demolições e reconfigurações parecia não ter mais fim, ouvia-se, até, que estava apenas em seu começo. Era o começo do fim. Tudo seria rearranjado. O velho substituído pelo novo, pois o propósito era avançar, se para o bem ou para o mal, só o oráculo do futuro é quem poderia dizer. Ela seguiu pela Rua Bom Jesus e passou diante do Banco, que escondia em suas bases, fragmentos de uma cultura e fé execradas, como sua mãe costumava sussurrar aos seus ouvidos, entre as quatro paredes do quarto onde viviam, para que ninguém soubesse, sequer imaginasse, que elas, também, eram restos, que haviam sobrevivido teimosamente na superfície da vida através do tempo. As histórias ficavam amalgamadas no cerne da alma, mas se constituíam em um segredo a ser guardado e mentido no mundo dos homens. Um longo silêncio debaixo de pedras, que talvez, um dia, clamassem.

Suas vidas continuaram. Um reino decadente, diante do que um dia haviam sido e da promessa irrealizável do que poderiam voltar a ser. A mãe, viúva, com quatro filhos para criar só, vivera entre a lealdade a história de seus antepassados e a amargura, mas morrera de olhos abertos, enxergando um tempo de glória que nunca viveu, apenas ouvira falar, e que fez parte de suas fantasias de criança. Todos os dias, confrontada pela realidade da pobreza, à espera de dias melhores que nunca bateram a sua porta, chegou a confidenciar à filha, que talvez, o sangue deles afinasse ao longo dos anos, e, quem sabe, ela seria mais feliz. Deveria apenas calar.

O sol já ia alto, despistando o dia da atmosfera chuvosa, que havia tomado a noite anterior. Ela atravessou o largo do Corpo Santo com pressa, constatando num relance, o fim que se avizinhava, com a força inexorável de um juízo final.  O mundo ao seu redor desabava diante da ferocidade do progresso. Os pequenos seres que dele faziam parte, indefesos e assombrados diante do cenário apocalíptico que os abatia, corriam em busca de outro abrigo, como ratos, que acabam de ter seu valhacouto descoberto. Ela, também, corria em busca de amparo, antes que acabasse enterrada ali, debaixo dos escombros da desesperança, sem que houvesse bocas para contar sua história.

Seu salto ficou preso entre dois paralelepípedos de pedra portuguesa fixadas toscamente no passeio. Seu pé deslizou para fora do sapato e ela pisou no chão com a meia branca e fina, — a sua melhor —, deixando sua base úmida e marrom. Uma exclamação exasperada escapou de seus lábios.

Voltou dois passos para recolocar o pé no calçado, quando percebeu o brilho fosco, debaixo da água lamacenta e mal cheirosa. Removeu a luva e contendo o asco, enfiou os dedos através do líquido frio, trazendo consigo uma moeda de bronze. 40 réis. Os dizeres em filigranas rodeavam o número, num conselho, para quem tinha a geleia da cabeça laureada com esperteza: a economia faz a prosperidade. Sorriu agradecida para a sorte. Colocou o donativo na bolsinha e seguiu em frente, mais animada, mas não distraída. Queria impressionar pela pontualidade, por isso, saíra bem mais cedo de casa. Precisava ainda pegar o bonde, e as mulas não estavam mais a andar lépidas, como se também pressentissem que estavam a caminhar em direção a seu fim. A efemeridade coalhava o ar.

Fixou os olhos ao longe, em busca do movimento dos bondes, quando, inesperadamente, sentiu um puxão violento em seu braço, e seu chapéu caiu. ‘Aonde vai com tanta pressa, boneca?’

Seu coração disparou e a boca secou. Ainda que soubesse que aquele lugar era habitado por todo o tipo de gente, e ela estivesse andando sozinha, — vulnerável a todo o tipo de atenção desagradável —, em todas as suas idas e vindas, jamais fora abordada daquela forma por ninguém, ainda que percebesse alguns olhares de malícia vez ou outra.

O homem vestido em um terno escuro, não era qualquer. Embora estivesse com a barba por fazer e hálito alcoólico, suas roupas eram bem cortadas. Duvidava que fosse um boêmio, já que esses voltavam para casa ao raiar da luz da matina. Era na verdade um gatuno oportunista em busca de presas fáceis. E ela estava na vez.

Seu olhar feroz a arrepiou.

— Deixe-me! — ela puxou o braço, levada pelo sentimento de pavor e abaixou rapidamente para pegar seu chapéu.

Mas ao invés de se sentir acuado pelas pessoas que voltavam-se para eles com curiosidade, aproveitou o movimento que ela fez para recolocar o chapéu e puxou a bolsinha de tecido que segurava.

—Não! — gritou ela.

Ele a abriu, removeu todas as moedas, inclusive a que ela acabara de achar, desmanchou a dobra de um papel, que estava entre os parcos pertences encerrados na bolsinha, e leu atrevidamente seu conteúdo, — o endereço rabiscado do destino de Maria. Amassou-o desdenhoso e jogou longe.

Com o coração desfalecido, ela correu em busca do papel amassado e o resgatou com mãos trêmulas.

Ressentido pelo atrevimento dela em dar-lhe as costas, agarrou-apelo braço e arrastou-a, empurrando-a violentamente contra uma parede. O medo e o choque a impediram de falar. Seus olhos se arregalaram diante do rosto retorcido pela maldade.

— Não deves sair por aí, sozinha! — cuspiu contra seu rosto enquanto o segurava com mãos sujas e rudes.

Ela reagiu, empurrando-o com toda sua força e escapou dele. Mas como que para afrontá-la, perseguiu-a, beliscou sua nádega e deu uma gargalhada zombeteira.

Maria correu com o coração na mão. Os sapatos horríveis a maltratavam e por pouco ela não os deixou no meio do caminho. Ainda podia ouvir atrás de si o ranço maldoso de sua risada. Só parou quando chegou diante do arco arquitetônico amarelado que fazia fronteira com a longa escadaria da igreja. Olhou para trás ofegante e percebeu que estava segura.

Sua mão direita segurava a bolsinha vazia e a esquerda apertava furiosamente o papel amassado. Imaginou que sua aparência estaria deplorável. Todos os fios de cabelo que ela havia cuidadosamente arranjado, desalinhados. E se sua face espelhava o que estava em seu interior, as pessoas poderiam enxergar o assombro.

Quando finalmente seu coração não mais pulsava em sua garganta, ela enxugou a face com o lenço perfumado com lavanda, que para sua sorte havia deixado no bolso da saia verde musgo e as mãos grosseiras não haviam tocado. Respirou profundamente a fragrância, para que ela invadisse seus sentidos. Um soluço quis escapar de seus lábios, mas ela o abafou. Não era o momento para sentir pena de si mesma.


Tentou arrumar os cabelos como pôde e marchou como um soldado diante da guerra iminente e inevitável, sabendo que nada mais o espera adiante, a não ser, a morte. O bonde vinha lentamente. Ela o parou, entrou e não pagou. O guia, com seu bigode escuro de pontas viradas para cima e chapéu da Pernambuco Street Railway ficou olhando para ela inquisidoramente, esperando pelo tilintar das moedas. Ela baixou os olhos, deixando metade da face encoberta pelo chapeuzinho ornamentado com minúsculas flores, lilás e rosa, como se assim pudesse ficar invisível. Ele fez um muxoxo com a boca e enrugou a testa. Murmurou palavras ininteligíveis consigo mesmo e seguiu adiante com a direção. 


Nenhum comentário:

Postar um comentário