segunda-feira, 4 de janeiro de 2016

CALDAS BRANDÃO - ÚLTIMO CAPÍTULO

No dia seguinte, pessoas com rostos cobertos surgiram para buscar o corpo. Homens pássaros enviados pelo prefeito foram avaliar o ambiente e descontaminá-lo dos fluidos e emanações da doença para a chegada do próximo Conselheiro. Um dos pássaros olhou para Maria de forma mais demorada, e ela lembrou-se de que havia escapado das garras da morte.

Os ritos fúnebres terminaram.

Maria Gentil jazia na sepultura simples, ao lado de todos os outros mortos pela varíola. Por insistência de Adelaide foi enterrada junto aos Caldas Brandão, em território sagrado, ao lado da igreja. A rica herdeira não compareceu aos ritos sagrados, pois ainda se recuperava. Maria Gentil foi levada de forma fulminante. Não mostrou resistência alguma aquela mazela da natureza. Adelaide, uma das poucas sobreviventes, havia ainda, vestido a mortalha, mas sobreviveu. Praticamente reviveu de entre os mortos. Um verdadeiro milagre!

Antes de deixar Filgueiras, ela foi dar adeus a sua família, cujos restos ainda não poderiam ser enterrados na capital. Não, enquanto, o manto do medo de que mesmo os mortos podiam transmitir os miasmas da doença. Mas ela voltaria para buscá-los. Seu rosto estava coberto pelo fino véu escuro, a fim de esconder seu rosto marcado.

Adelaide pousou alguns jasmins sobre o descanso de Maria, ‘uma serva como nenhuma outra’, disse o padre reverente diante de momento tão sagrado, declarando um epitáfio, que nem ela, havia pensado a respeito de si mesma. E por um momento, emocionada, pensou em acabar com a farsa e voltar a ser Maria Gentil.

—Melhor irmos, senhorita Adelaide ou perderemos o trem — o anão sussurrou a seu lado como se intuísse que ela estava a um passo de estragar seus planos.

—Vá com Deus, minha filha – o padre a abençoou.

Então, ela deixou o cemitério, acompanhada por Portaglia.

Enquanto chacoalhava na carruagem esburacada de volta a Recife, tentava afastar de sua mente quaisquer acusações de sua consciência. Como dizia o anão, não havia usurpado um nome e nem uma família, e dizê-lo, seria uma ofensa grave e imperdoável ao destino que colocou-a no seio daquela geração, a fim de que desse continuidade a ela — a levasse adiante —, não importando se havia nascido em seu meio, e se por força maior precisava calar o seu sangue.

As trocas de nome no mundo são diárias, o sangue se espalha, se aparta com o tempo. Nas estações da vida — quer por convenções sociais, necessidades, guerra, paz ou peste — perde sua identificação cartorial. Ninguém sabe, no final, de que raiz surgiu. Em alguns casos, depois de muito tempo, o sangue — não o nome — desperta ao reencontrar-se com seus semelhantes. Ele a si próprio se reconhece nas memórias, ainda que tênues, nas coincidências, nas afinidades, nas simpatias, na execução da justiça e na transcendência do déjà vu. É no íntimo da alma que o sangue realmente se sabe. E só neste recôndito está sua importância.

Mas nome - ah, o nome é importante para os homens! Não importa se fictícios, se uma ilusão, se herdados ou criados, se roubados ou carregados por direito de nascença. O que importa, é que sejam portados com dignidade.

Então, ficou estabelecido assim, que o destino caviloso salvou o digno nome Caldas Brandão, através da genialidade do anão Onofre Portaglia, ao inserir Maria Gentil em seu caule, para levá-lo adiante. Não por seu berço, mas por sua bravura, e talvez, por seu sangue. Deu-se ao trabalho de montar uma epopeia dantesca, e usou da malícia dos homens para beneficiar uma mulher.

Se é um mistério incompreensível como um ramo floresce em uma árvore, sabe-se que se é forte, se mantém e dá seus frutos, não importa se enxertado. Forte para os homens, não quer dizer incorrupto, mas perene. E forte para os arcanos de Deus quer dizer puro, e nada mais.


Então, segundo Portaglia, o destino, que estudou na escola de Budapeste, e fundou a Universidade da Basiléia, sabiamente preservando sua neutralidade, e ficando bem em cima da linha – nem lá nem cá -, juntou tudo em miúdos e satisfez o interesse de todos, maliciosos e puros, terrenos e celestes, ao fazer de Maria Gentil, a herdeira dos Caldas Brandão. 



Nenhum comentário:

Postar um comentário