quinta-feira, 14 de maio de 2015

A CASA - CAPÍTULO 3

João chegou em casa e ao passar através do portão, percebeu que havia um carro estacionado diante do pórtico principal. Reconheceu o veículo de uma das amigas de sua mãe.

-Meu filho, que bom que chegou. Estávamos aqui, agora mesmo, falando em você.

Ela pousou a xícara de porcelana sobre a bandeja, levantou-se e foi até ele. Encaixou o braço no seu, e afetuosamente o atraiu até o centro da sala de visitas. Ele cumprimentou as amigas da mãe, e foi constrangido a sentar-se entre elas.

-Eduarda acabou de entrar na mesma faculdade que estuda. Você poderia ambientá-la no Campus. Ela ainda está um pouco perdida.

-Parabéns, Eduarda. Não tinha ideia que estava estudando para o vestibular.

-Quase não nos vemos, eu acredito que seja por isso.

-As primeiras semanas são meio turbulentas para calouros. Espero que não tenha tido nenhuma experiência difícil.

-Teve, sim! -Graziela interferiu. -Fiquei tão preocupada quando vi minha filha entrar em casa coberta de tinta e ovos. Você não tem ideia!

-Infelizmente, é de praxe.

-Meu filho, você poderia buscar Eduarda semana que vem, assim, poderiam ir juntos... pelo menos neste início de semestre.

-Claro... por que não? Geralmente saio de casa às oito da manhã, Eduarda. Não sei se o horário é bom para você pois, na verdade, já paguei todos os meus créditos. Agora só vou ao Campus para pesquisas, pois estou terminando minha monografia.

-Oito horas está ótimo para mim.

Melissa e Alexandra trocaram olhares conspirativos.

-Agora vocês vão me dar licença, infelizmente preciso ir.

-Mas já, filho? - Melissa perguntou descontente.

-Tenho um compromisso. Foi bom vê-las. E Eduarda, passo em sua casa segunda, às oito.

****

-Você trama as coisas... - desferiu cínico, enquanto fechava a porta da geladeira. 

- Eduarda é uma moça bonita, de boa família e educada.

- Ela é tudo isso, sim. Mas, é bem mais nova que eu, além disso...já estou vendo alguém.

Melissa o olhou surpresa.

- Eu não sabia!

- Conheço os pais dela?

- Não.

Melissa não conhecia ninguém fora de sua classe social.

- Você já os conheceu? São de boa família?

- Eu a conheço e para mim é o suficiente.

Melissa não quis iniciar uma discussão com o filho. Queria ao menos um momento de paz. Desde sua adolescência viviam às turras. Ela nada sabia sobre ele e suas conversas eram superficiais. Quando tentava adensar um pouco mais o relacionamento entre eles, nunca acabava bem. Ele a hostilizava e criticava. 

Mesmo contrariada com as informações vagas, pediu a ele que a trouxesse a fim de conhece-la. Sua abertura funcionou, fazendo-o relaxar. A nuvem de tensão sobre eles foi afrouxando. E parecia, que pela primeira vez teriam uma conversa sem que ele a deixasse, de forma tempestuosa, falando só.

-Talvez, eu faça isso.

Olhou para ela, tentando enxergar em suas palavras algum ardil. Então, colocou o copo sobre a bancada da cozinha.

-Vai jantar hoje em casa? - ela perguntou ansiosa.

-Vou sim, estou fazendo as últimas correções em minha monografia, pois vou me reunir com meu orientador na segunda-feira.

-Fico feliz que já esteja terminando seu curso...você nunca me fala sobre seus planos acadêmicos. Pretende tentar entrar em um mestrado?

-Não sei... no momento não estou fazendo nenhum plano.

Ia saindo da cozinha, mas então se virou para ela.

-Desço daqui a pouco para o jantar.

Ela seguiu o filho com o olhar. Planejava o relacionamento dele e Eduarda há algum tempo. Graziela era sua amiga à anos. Cinco anos antes, suas famílias, com exceção de João, haviam viajado juntos para a Europa, quando Eduarda estava entrando na adolescência, e naquela época já prometia ser uma beldade. Ela provocava Graziela ao dizer que faltava apenas um berço real para que fosse uma ‘puro sangue azul’.  Graziela respondia sorrindo:

-Não seja por isso, minha querida. Tenho um Conde italiano em minha ascendência.

Melissa anteviu uma potencial aliança entre suas famílias, mas sabia que tinha que conquistar o filho arredio. João parecia-se muito com o pai. Ensimesmado e indiferente ao prestígio e importância da família na sociedade. Com o passar do tempo, ao invés de abrir-se mais, ele tornou-se hostil as suas ideias. Em uma de suas discussões ele classificou sua ambições como ‘pretensão tupiniquim’.

Aquelas palavras a enfureceram. ‘Exijo que me respeite, sou sua mãe e dona desta casa onde mora.’ João se ressentiu-se e passou a evitá-la, a fim de não baterem de frente. Mas ela não desistia nunca de seus intentos.  

Ela ouviu a porta da frente sendo aberta e ao alcançar a sala de visitas viu o marido, desapertando o nó da gravata. Ele a cumprimentou de forma fria, e pousou sua maleta sobre uma das poltronas, coberta com tecido adamascado.

-Vou precisar sair esta noite. Alguns de nossos fornecedores americanos estão na cidade e vamos sair para discutir alguns negócios. Vou apenas comer algo leve, está bem?
Ia subindo as escadas, mas voltou rapidamente para pegar a maleta. Quando estava na metade da escadaria lançou um olhar indiferente em sua direção:

- Se o jantar demorar, infelizmente não poderei ficar.

Ela suspirou exasperada. ‘Estava rodeada de opositores em sua própria casa’.

O jantar transcorreu silencioso. O marido na cabeceira da mesa, não olhava para ela, e João estava absorto em seus pensamentos.

-Elizangela, você colocou o talher errado novamente. Já expliquei qual é o talher para peixe.

-Desculpe, Dona Melissa. Vou buscar.

-Agora que já iniciamos a refeição, não tem mais necessidade. Amanhã vou falar com Nazaré. Desisto de educar você.

João abandonou os talheres sobre o prato. Afastou a cadeira e começou a retirar-se.

-Você mal tocou a comida. Onde vai?

-Perdi a fome.

-Mas...

O marido olhou-a pela primeira vez, durante o jantar. E havia censura estampada em seu rosto. Eles terminaram a refeição, silenciosamente.

****

João não esperou muito diante do apartamento de Ana, até que ela saisse. Usava um vestido simples de algodão azul e o cabelo preso em um rabo de cavalo. Ele foi até ela e cumprimentou-a com dois beijos leves na face. Ela ainda sentia-se constrangida diante daquela etiqueta social com tantas demonstrações afetuosas.  Sempre imaginava o que Madre Justiça pensaria se a visse em uma daquelas situações. As religiosas, por viverem enclausuradas à vida no convento, não tinham a menor ideia do que se passava fora dos muros protetores e não sabiam preparar os órfãos que deixavam o convento. Ana usava sua sensibilidade para saber de quem se aproximar ou afastar, mas na maioria das vezes demonstrava frieza para com a maioria das pessoas. Ainda no orfanato, ouvira casos desastrosos de meninas, que por ingenuidade acabaram naufragando, enquanto tentavam viver fora dos limites do orfanato.


Creditava a seu hábito de leitura, seu maior discernimento. A vida de Fantini em Os Miseráveis de Victor Hugo despertaram nela compaixão e uma desconfiança, que levou a própria Madre a preocupar-se. ‘Se olhar apenas para o lado negativo das pessoas, não vai conseguir viver lá fora.’ Mas Ana já havia tido algumas lições extremamente desagradáveis durante aqueles dois anos. E sua desconfiança a salvou de muitos lobos.

João abriu a porta do carro para ela entrar e depois foi para o outro lado. Ao acomodar-se ele olhou para ela de relance, para depois abrir a porta luvas, de lá retirando uma fita cassete.

___Eu gravei uma seleção de músicas de Djavan para você...para aumentar seu repertório.

Ela sorriu.

__Obrigada, João. Nossa, vou ouvir assim que chegar em casa.

Ele deu partida.

__Para onde vamos?

__Surpresa!__ ele sorriu.

Enquanto ele dirigia, ela reconhecia o caminho. Estavam indo para o lago. De repente, os sentimentos que aquele passeio lhe provocava, enquanto ainda estava no orfanato, vieram à tona. ‘Ah, se os meus pais me vissem agora...e me reconhecessem.’

__Você já veio ao lago?

__Algumas vezes...

__Poxa! Eu pensava que esse passeio ia ser inédito __ disse desanimado.

__É o meu lugar da cidade favorito.

__Mesmo? Bem, então, acho que não errei.

Eles desceram do carro e caminharam pelo gramado. Haviam crianças, casais de namorado, carrinho de pipoca e algodão doce. Instintivamente ela removeu as sandálias, como tinha o hábito de fazer ali, e o gesto o surpreendeu.

Ela sorriu:


__Agora é sua vez.

Ele levantou o dedo indicador.

__Um momento. Pipoca ou algodão doce?

__Pipoca.

Ele saiu em direção ao carrinho e voltou com as mãos cheias, de pipoca e algodão doce. Estendeu a pipoca para ela e só então, começo a remover os sapatos.

__Meus pés não são tão bonitos, tá? __ ele alertou-a.

Então sentaram-se na grama de frente para o lago.

__Então...você é uma expert em vitrais...

Ela riu.

__Claro, que não! Eu peguei um livro na Biblioteca depois que fui à casa onde meus... eu passei em frente à essa casa, e vi um vitral muito bonito, que me despertou o interesse.

__Então era um vitral especial, para te levar a uma biblioteca e depois a uma exposição.

__Eu achei muito bonito, diferente dos que já tinha visto antes.

__Humm...
Uma fileira de patos barulhentos passou diante deles em direção ao lago.

__De onde você é?

__Daqui!

__Ah... é que eu achei que você havia dito que seus pais moravam em outra cidade, eu pensei que você não era daqui.

__Ah... nós somos daqui, mas quando ainda era bem pequena, nos mudamos. Meus pais queriam uma vida menos urbana e compraram um sítio. Aí, depois precisei estudar e vim para casa de minhas tias.


Ela não olhava para ele enquanto falava.

__Entendi.

__E você? Sempre gostou de vitrais.

__Não...mas acho interessante o processo de criação, principalmente a forma como eles descobriram como colorir vidros com minerais. Estou terminando Engenharia Química e ... não sei... talvez eu trabalhe com a área de tintas. É sempre bom conhecer a história de como as cores começaram a ser usadas e foram desenvolvidas.

__É uma área ampla, boa para ser explorada.

Ele estendeu a mão e tocou os cabelos dela. E de lá removeu uma pena branca.

__Os patinhos deixaram uma lembrança para você.

Ela começou a rir.

__Você tem o sorriso mais lindo que já vi... __ estendeu a mão e acariciou o rosto dela. Ela baixou os olhos tímida, mas ainda assim ele aproximou-se mais, até que encostou a testa de leve na dela e levantou seu queixo. 

Ela fechou os olhos, levada por um sentimento de acanhamento, mas assim que sentiu os lábios dele nos dela, deixou-se levar pela carícia doce.


Ele se afastou e ela suspirou, ainda com os olhos fechados. A mão dele ainda estava em seu rosto. Ela abriu os olhos e viu os dele brilhando, diante dela.

__Às vezes, eu tenho essa impressão... de que já te conheço. Mas acho que é porque na primeira vez que te vi, me senti  completamente atraído por você.



Ele voltou a beijá-la. E ela descobriu que era a

melhor sensação que já experimentara. 


Especialmente, por que eram os beijos dele.

Do homem que despertou nela, o amor, território, que até aquele momento desconhecia.

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terça-feira, 12 de maio de 2015

A CASA - CAPÍTULO 2

Ver Capítulo 1 em postagem anterior

Ela caminhou desanimada de volta para casa. Passou por todos os pontos de ônibus que viu no trajeto e não esperou por nenhum. Precisava espairecer, e caminhar a ajudaria. Quando chegou à praça central da cidade, próxima do local onde trabalhava, sentou-se em um banco de pedra ao redor da fonte.
Não conseguia, ainda, atinar com a trama que envolvia sua vida. Havia apenas uma grande interrogação em sua mente. Sonhara por toda a sua vida, e durante aquela semana, tivera certeza que encontraria seus pais, desvendaria seu passado, veria na face de outro traços de si mesma e quiçá, compreenderia sua razão de ser e estar no mundo. Mas então, uma reviravolta. Uma maldição? Seu nascimento envolvia um sinal nefasto? Quando imaginava que poderia de alguma forma ver o brilho de sua existência restituído, uma palavra recheada de desgosto eclipsava sua esperança, e o medo penetrou nas vielas penumbrosas de sua mente.
Viu seu projeto de construção de si mesma abalar-se.
Talvez Madre Justiça estivesse certa. Ela precisava esquecer as partes de sua história que eram insondáveis e ir em frente.
Levantou-se e decidiu ir para casa e mergulhar nos livros de Direito. Tinha muito que estudar e seria uma forma de tirar seu foco das experiências daquele dia. Os reflexos dourados do sol do fim de tarde atravessavam as folhas das amendoeiras em flor e tocavam suavemente seu rosto. A imagem da casa surgiu em sua mente, persistentemente, tentando criar raízes e florar quimeras.  Mas, a casa encantadora, onde ela podia ter dado seus primeiros passos e balbuciado suas primeiras palavras diante de pais extasiados com seu brilhantismo infantil, era mais um capítulo no livro de ausências de sua vida. Entretanto, agora, dava um tom de morbidez a seu mistério.
Relanceou os olhos no prédio da Galeria de Arte da cidade. Havia uma escadaria de uns quinze degraus, que sugeria monumentalidade e abraçava sua fachada elevada, onde alguns jovens estavam displicentemente sentados. Uns conversavam animadamente, outros liam e alguns poucos a usavam unicamente como um descanso para esperar ônibus, cujo ponto ficava logo em frente.  
Instintivamente, atravessou a rua para ver no quadro expositor os próximos eventos de arte. Subiu a cascata de degraus lentamente e parou diante do retângulo de madeira envidraçada, onde estavam destacados alguns eventos. Mas apenas um chamou sua atenção: Exposição de Vitrais Antigos Restaurados, com curadoria de Mauro Cartaxo Leme. À partir de sexta-feira (10 ) até dia 30.
A casa com seu primoroso vitral voltou a sua mente com a velocidade da luz. Valeria à pena comparecer, decidiu. Por um motivo incompreensível, uma leveza a envolveu. Os pensamentos que lhe toldavam a mente, desanuviaram e ela voltou para sua residência mais sossegada.


Foi entretida por seu mais novo interesse durante aquela semana.
Pegou emprestado um livro sobre vitrais de páginas coloridas e atraentes na biblioteca, e o folheou avidamente, decidida a conhecer aquela arte que até a pouco ignorava, ainda que no orfanato, duas peças cobrissem as paredes do altar da capela. Contudo, naquela época, ela os via simplesmente como uma forma de artistas religiosos contarem a história de Cristo e seus milagres ou mesmo de algum dos santos da Igreja. Então, a casa, despertou seu espírito para aqueles fragmentos coloridos de vidros e ela se deu conta que havia um vitral em sua vida. Intimamente, desejou que contasse algo sobre sua história, e mesmo que fosse apenas uma parte ínfima, queria que fosse um fragmento de luz e não um conto de sombras.
Quando subiu os degraus da galeria para visitar a exposição, não era mais tão inexperiente sobre o assunto. Na hora em que chegou, correu os olhos pelo pavilhão e viu umas poucas pessoas. Vitrais que variavam em tamanho estavam espalhados e cuidadosamente fixos sobre as paredes. Pegou um folheto explicativo e caminhou até um deles, o mais distante da entrada, pisando leve com sua mule, para que seus passos não ecoassem.
Os primeiros a considerar, tinham temas religiosos, onde prevaleciam o azul cobalto. Percebeu um casal a uma pequena distância, e o homem explicava em voz baixa os detalhes daquela arte para a mulher. Discretamente, ela aproximou-se para tentar ouvir o que ele dizia. 'A beleza dos vitrais não está só nas gravuras ou nas cores, mas na luz que refratam no ambiente. Nas antigas catedrais, o intuito era, controlar a luz do espaço exterior e criar um ambiente místico a fim de que os fiéis se voltassem apenas para o sagrado.'  
Ela os acompanhou disfarçadamente, enquanto o homem, evidentemente um expert naquele assunto, os guiavam naquele passeio cultural.  Quando chegaram ao quinto vitral - uma peça em art nouveau -, houve uma inflexão em sua voz, 'esta é uma representação dos profanos, se é que assim podemos chamá-los, meus preferidos.'  
Explicou com prazer, que na iminência da virada do século, a art nouveau foi anunciada ao mundo por designers  franceses e ingleses, mas tinha em Tiffany, sua maior notoriedade. Sendo um homem que buscava incansavelmente a beleza no mundo ao seu redor, as captava e reproduzia em sua arte. Criou técnicas inovadoras. Foi um mestre na manipulação de vidros. 'Seus vitrais são belíssimos', arrematou.
__O designer desse vitral é um integrante dessa escola. Ele era genial. Vê? A riqueza de cores, as figuras geométricas e os lírios estilizados? Para mim foi um dos melhores representantes da art nouveau no Brasil. Ele acompanhou a geração dos anos 60 que redescobriu a arte em vidros no mundo. Ressuscitaram a art nouveau, Tiffany e vitrais góticos. Os lírios brancos duplos e sombreados com vidro opalescente âmbar, são sua assinatura. Contudo, a maioria de seus poucos trabalhos foram exportados e ele foi pouco conhecido. Um enigma envolve sua vida. Faleceu muito jovem... - deu um suspiro de desalento - parece ser a sina da maioria dos vocacionados para a arte.
O casal adiantou-se para o exame minucioso do próximo vitral. Mas ela permaneceu, sondando melhor os detalhes daquela obra. Tentou enxergar a alma do artista. Ramos verdes subiam diagonalmente dos cantos do vitral e contorciam-se, entremeando uma figura geométrica em forma estelar, abraçada, em ambos os lados, pelos lírios brancos. O azul também estava presente.  Dependendo da posição em que este vitral fosse posicionado, emitiria uma luz fantástica!  Havia uma pequena placa de metal na base do vitral com a identificação do artista: B. Bachman.
De onde estava ainda podia escutar a voz do homem, agora era mais um cochicho, apenas para a mulher ao seu lado ouvir. Mas ela ainda queria saber mais, então virou-se para alcançá-los. Foi quando o viu. A uma pequena distância, atrás dela. O cliente da camisa azul-marinho, usando a tal. Olhava para o mesmo vitral que ela, seu olhar circunspecto avaliando os detalhes, e suas mãos nos bolsos da calça-jeans.
Ele também a reconheceu e cumprimentou com um sorriso gentil.
Ela devolveu a cortesia.
Propositalmente, ele tocou na borda da camisa, como se estivesse apontando a escolha que ela havia feito, e o gesto a desconcertou.
__ Que coincidência...- ela conseguiu dizer.
__ Não é.
__ Como?
__Não é coincidência... eu segui você - sussurrou para que apenas ela ouvisse.
Os olhos dela arregalaram, 'ele só podia estar brincando'. Ele sorriu e como se tivesse lido seus pensamentos disse:
__Brincadeirinha.
Então, como se quisesse diluir a tensão que se instalara pelo encontro comentou:
__O processo de criação de um vitral é bem interessante, não acha?
Ela colocou de lado a comoção causada pela casualidade extraordinária e tentou seguir a linha de pensamento dele.
__É... Me parece um trabalho que exige não só um senso estético bastante refinado, mas também uma sensibilidade espiritual, mesmo quando não é um motivo litúrgico o objetivo. Penso que o artesão imerge em um lugar intangível de onde ele nos traz esses sinais de luz em forma de arte.  E depois, o uso do fogo na técnica é como um batismo final da obra, como que para impressionar os olhos terrenos.
A emoção em suas palavras eram tão profundas, que ele permaneceu calado depois que ela terminou de falar, deixando-a constrangida por ter colocado em palavras seus pensamentos idealistas. Creditou, seus sentimentos enlevados, em parte, a sua mais recente experiência na casa.
Esperou que ele se afastasse discretamente dela depois de se expor de forma tão arrebatada e ingênua.
__Nunca ouvi ninguém apresentar uma ideia sobre arte de forma tão transcendente de sua natureza puramente humana. Honestamente, nunca havia pensado dessa forma. 
__Nossa...eu acho que me excedi um pouco.
__Claro que não, faz sentido o que falou.
Ana percebeu que o casal lançava um olhar de censura a eles.
__Acho que falei mais alto que devia. Arte é para ser contemplada em silêncio __sussurrou constrangida.
Ele olhou na direção de seus olhos e entendeu. Passaram diante das outras obras em silêncio e deixaram a galeria juntos. Quando iam descer o primeiro degrau, ele virou-se para ela buscando sua atenção.
__Então, se vitrais são pequenos 'sinais de luz' __disse usando suas palavras. __ são engastados em lugares onde sua mensagem deve ser levada em cuidadosa consideração, não é isso?  
O comentário fortuito e inesperado foi tão oportuno, que se ele soubesse de sua história, não teria sido tão preciso no alvo.
__Disse algo errado? __ perguntou diante do olhar admirado dela.
__Não... é isso mesmo!  Você conseguiu captar isso de uma forma que eu não tinha alcançado.
__Só segui sua linha de pensamento...você começou cantando a música e eu terminei...só isso - ela estava considerando o que ele havia terminado de falar quando ele se ofereceu para levá-la em casa, '... se quiser, é claro.'
__ Mora por aqui?
Ela permaneceu muda, e ele acreditou que por não conhecê-lo hesitava.
__Não fomos formalmente apresentados, meu nome é João.
E estendeu a mão para ela, como se aquilo fosse o suficiente para dar-lhe crédito e ganhar-lhe a confiança.
__Ana.
Ela apertou sua mão timidamente, ainda hesitante.
__Seus pais não vão gostar de ver você no carro de um estranho, não é mesmo? Entendo.
__Claro que não... meus pais... não moram aqui. Eu vim para cá a fim de estudar. Universidade...você sabe.
__Não tem família na cidade?
__Tenho algumas tias, mas não moro mais com elas.
__Bem... já está ficando tarde. Posso te levar, se for perto, te acompanho a pé, se quiser, é claro. Você tem razão, não é bom entrar no carro de estranhos, mas eu não sou o tipo perigoso.
Ela olhou para o lado, como se estivesse decidindo e finalmente refletiu em voz alta, 'acho que você é confiável'.
Eles desceram a escada devagar. Ela imersa em seus pensamentos e ele isolado nos dele. Caminharam um ao lado do outro até que chegaram ao Passat branco estacionado do outro lado da rua, ao lado da praça. Ele abriu a porta para ela, e ela entrou. Devagar, Ana ia conhecendo os códigos do mundo fora do orfanato. Geralmente, quando ficava muito desconfiada, se esquivava, mas aquele não era o caso. Pediu a Deus que não estivesse cometendo um erro.
__Se importa se eu ligar o rádio?
__Não. Gosto de música.
Ele girou o botão e sintonizou uma rádio. Oceano de Djavan, um dos hits do momento estava tocando.
__Esse cara é fabuloso, quando você pensa que ele já escreveu sua melhor música, ele te surpreende.  Lembro que ainda moleque, ouvi Samurai e fiquei super entusiasmado com o ritmo. Poxa... eu aqui falando e nem sei se você gosta dele.
__Gosto sim, e essa música dele é minha favorita - disse ela, já que não conhecia nem uma outra.
__Oceano é perfeita. E está se tornando uma unanimidade. Mas, acho que Samurai vai sempre ser minha preferida, por razões sentimentais - ele riu. __Onde é mesmo que você mora?
Ela deu as direções e ele seguiu. Durante o trajeto, perguntou qual curso ela frequentava. Informou que cursava o último semestre de Engenharia Química, mas durante o turno diurno, por isso talvez não se encontrassem muito frequentemente na faculdade, mas como parecia que eles viviam se esbarrando pela cidade, não havia o perigo de não se verem nunca mais.
Ana relaxou mais ao lado dele. Percebeu que não lhe oferecia perigo e tinha que admitir, gostava muito de sua companhia. Quando ele estacionou em frente ao prédio em que morava, ela suspirou em desalento, pela rapidez com a qual o carro havia coberto a distância entre a galeria e sua casa.
__Chegou sã e salva.
__Obrigada, João. Fiquei feliz em te conhecer __disse com honestidade.
Ele olhou para ela sério.
__Isso quer dizer que vamos nos ver outras vezes?
__Por que não? Você pode ir quantas vezes quiser à loja, que eu prometo escolher suas camisas - ela sorriu provocativa.
Ele não sorriu: 'Isso é uma promessa?', perguntou.
Ana sentiu que a atmosfera mudou e o olhar dele era intenso. 'Sim', ela respondeu sentindo o coração acelerar. Ele aproximou-se dela e beijou-a na bochecha, devagar com o intuito de sentir a maciez da pele e a fragrância de seu perfume. A impressão da rebarba dele arranhando o rosto dela evocou sensações que desconhecia.
Quando ele se afastou, foi como se o velho sentimento de orfandade a tivesse envolvido mais fortemente. Ele abriu a porta do carro e saiu, deixando-a lá dentro com a respiração suspensa. Foi só quando ele abriu a porta e ela sentiu a brisa soprar em seu cabelos, que acordou daquele momento. Saiu do carro e o pegou com seu costumeiro hábito de colocar as mãos no bolso.
__Queria vê-la novamente...fora de seu lugar de trabalho. Posso?
__Amanhã é domingo, um dos dias que posso cultivar o ócio. À tarde... pode vir à tarde.

__Eu volto amanhã, então.

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