sábado, 8 de agosto de 2015

ANA E JOÃO - ÚLTIMO CAPÍTULO ( A CASA ) - PARTE 2

parte 2

A luz atingiu o espelho e refletiu sobre seus olhos. 

Sua imagem foi a primeira coisa que viu ao abrir a porta da casa. O espelho estava pendurado na parede oposta da sala. Deu passos ansiosos dentro daquele universo preservado pelas mãos de Obedina. Gracioso. Foi a palavra que surgiu em sua mente. Simples e graciosa. Naquele espaço os pais haviam construído sua história de amor e que ainda perdurava. Imortal.

O que é bom sobrevive. Rompe as fronteiras do tempo. Exala e se apega a pele. Assim como o mal. A luta é constante e ferrenha.

O tecido verde adamascado decorado com anêmonas do sofá de dois lugares já demonstrava esmaecimento. Mas os sinais do tempo haviam proporcionado um efeito harmônico e interessante.

Num canto da parede havia um aparador de madeira escura e sobre ele uma única fotografia em preto e branco. Um casal sorridente. Ele a abraçava com as duas mãos pousadas sobre seu ventre.

No centro da parede oposta um toca-discos vintage servia também de ornamentação. Ajoelhou-se diante dele e abriu a portinhola de madeira sob o aparelho encontrando alguns discos enfileirados. Sorriu. Aquela era uma casa que gostava de música. Seus dedos puxaram o primeiro que tocou.

A curiosidade a impeliu a olhar por trás do aparelho onde ela encontrou o fio pendurado. Adaptou o plug à tomada e ligou o aparelho. Removeu o disco de sua capa e colocou para tocar. Uma música de Bernie Taupin e Elton John. Seu peito inflou ao som da canção. A letra era simples e marcante. Deixou a agulha percorrendo as trilhas do vinil, se levantou e continuou em sua viagem exploratória.

Caminhou até o corredor. Imediatamente foi atingida por uma brisa que não soube de onde se originava. Instintivamente dirigiu-se ao quarto no fim do corredor. Nele, uma janela basculante iluminava o ambiente. Havia uma cama de casal coberta por uma colcha de renda branca, uma cômoda a seu lado e uma penteadeira recostada à parede, de frente para o leito.

Moveu-se lentamente até a penteadeira constituída de três espelhos articulados bisotê, sentou-se no banquinho sem encosto e viu sobre o móvel uma escova de cabelos e um porta joias de madeira. Ia abrir a caixa mas algo na escova chamou-lhe atenção. Ela tomou-a e viu alguns fios claros presos nas cerdas. Tocou com reverência, temendo que depois de tantos anos de persistência a evidência material se desintegrasse ao seu contato. Olhou-se no espelho e percebeu com um senso de identidade que a cor dos fios eram semelhantes ao seu.

Ergueu-se e foi à cômoda. Abriu a primeira gaveta. Um pequeno ramo florido seco estava sobre uma pilha de roupas amareladas. Ela tocou os tecidos. A maioria de algodão. As outras gavetas estavam vazias.  

No quarto contíguo, viu três colunas de livros de mais ou menos um metro cada, dispostos ao lado de uma escrivaninha. Em uma caixa, diversos canudos de papel testificavam sobre a natureza do trabalho realizado por seu pai. Tomou o livro que estava no topo da primeira coluna. Havia uma grossa camada de poeira sobre ele. Leu seu título. ModiglianiA maioria dos livros versavam sobre arte, arquitetura ou engenharia. Um pequeno tesouro de conhecimento.

Se dirigiu ao primeiro e último quarto. Abriu a porta e viu o berço diante de um janela alta por onde entrava uma réstia dourada que iluminava a poeira suspensa no ar. Era o seu quarto. Caminhou devagar e com cuidado, como se não quisesse acordar o bebê, mas seu pé deslocou um taco de madeira solto. Ela o empurrou para o lugar com o pé. Então aproximou-se do pequeno ninho e tocou a estrutura de madeira onde ela teria dormido, se os eventos tivessem sido diferentes. Queria ter o poder de ouvir as palavras que haviam sido pronunciadas ali. Se aquelas paredes pudessem falar. Queria poder captar os sentimentos que haviam circulado aqueles ares.

Voltou a sala e percebeu que havia deixado a porta da frente aberta. Quando estava para fechá-la, percebeu que havia um aglomerado de pessoas diante do portão. Certamente haviam sido atraídas pela música da casa abandonada. A casa ferida. E como havia lhe dito a primeira pessoa com quem havia entrado em contato naquela rua: amaldiçoada.

Ana a viu. Lá estava ela. A mulher de vinho. Em meio as outras pessoas, que provavelmente questionavam o que estava se passando dentro da casa, a encarava com seus olhos curiosos e reprovadores. Fez o sinal da cruz, como se tivesse visto uma assombração, uma imagem sinistra. Ana não entendeu seu intento, mas sorriu. A mulher havia lhe mentido. Sua casa não era amaldiçoada. Ali vivia o amor. Fechou a porta e foi até a cozinha.

Era acolhedora como todo o resto. Sobre o fogão de ágata branco havia uma chaleira de ferro. Uma mesa redonda e um armário pequeno. O que era particularmente inusitado e dava um toque especial à cozinha era a grande janela que dava para o jardim dando a impressão de ser um quadro colorido e poético invadindo o ambiente.

Havia um interruptor na parede e ela imaginou que seria da luz que iluminava os jardins à noite. Pressionou-o mas não funcionou. Ela abriu a porta e viu a lanterna dos jardins sem nenhum bulbo. O céu vespertino rosado já dava sinais de que a noite se aproximava. Naquele dia passaria a noite ali. A primeira de muitas.


****


O dano não havia sido tão complexo quanto Ana havia imaginado. O Professor Mauro havia se responsabilizado pelo vitral. O coração trespassado agora encontrava-se íntegro. Eles haviam feito fotos de cada um deles e elas seriam impressas em um artigo da revista da Universidade sobre o trabalho de Benjamin.


****


—Eu compreendo seus sentimentos, Ana — declarou o delegado — mas nós não temos um caso. Os principais envolvidos estão mortos. Não há testemunhas para que você acuse seu avô de assassinato. Isso não passa de invenção de uma empregada idosa que talvez tenha guardado algum rancor de seu avô.

Ana ficou indignada. 

—Não é um caso de sentimentos, e sim de justiça.

—Não há evidência alguma.

—Com todo o respeito, eu o pergunto, o crime de meu pai foi investigado como deveria? Vocês não encontraram nada? Buscaram testemunhas? Ou apenas deixaram passar impunemente? Interrogaram Otho Braun?

O delegado recostou-se na cadeira, cruzou as mãos diante da barriga e olhou-a irônico.

—Ele não estava na cidade no dia em que o crime ocorreu.

—Então, vocês chegaram a cogitar a possibilidade de ele estar envolvido.

Ele suspirou.

—Na verdade, não. Você sabe, as pessoas comentam sem provas e foi apenas uma curiosidade pessoal. Seu avô nunca foi um suspeito.

Ana sentiu-se indo de encontro a um muro. Incapaz.

—Testemunhas?

—Nenhuma.

—Arma do crime. Vocês a encontraram?

Ele se mexeu na cadeira.

—Escute bem, moça. Sabemos realizar nosso trabalho. Me solidarizo com você, mas para que entenda o cenário. A bala transfixou o peito dele e jamais foi encontrada. Infelizmente não sabemos quem foi o autor do crime contra Benjamin.

Ana levantou-se da cadeira e saiu da delegacia com raiva.


****


 —Não é o suficiente para você saber da verdade, e que de certa forma, seu avô pagou por seu crime? — perguntou Obedina preocupada.

—Não. Não é. Eu gostaria que saísse na primeira página do jornal que foi ele quem matou meu pai.

—Você foi até a casa de Melissa?

Ana cruzou os braços. E acenou com a cabeça. Tinha evitado pensar na estranheza daquele dia.  Não saberia jamais expressar os sentimentos sombrios que haviam se apossado dela. A cobra havia mordido antes de ser encantada. Tudo havia sido surreal, incluindo sua descoberta de que João era filho daquela mulher. Havia empurrado a experiência para um canto de sua mente. Se fosse racionalizar, enlouqueceria. Por que de todos os homens daquela cidade, havia se envolvido justo com o filho de Melissa?

—Como minha mãe pode se tornar amiga dela? Ela é tóxica.

Outra pergunta surgiu em sua mente. Como João havia sobrevivido àquela mulher? Ela exalava um controle quase sufocante.

Obedina olhava para as mãos em seu colo.

—Clara vivia rodeada das pessoas que seu pai lhe permitia. Sua vida era como a de um pássaro engaiolado.

Ana imaginava a felicidade que sua mãe vivera naquela casa com seu pai. Cada minuto deve ter sido precioso.

Então, mudando de assunto, perguntou para Obedina.

—Gostaria de vir morar aqui comigo? Esta casa é grande demais para mim.

A mulher sorriu.

—Me parece uma boa ideia. Mas você realmente quer uma velha morando com você?

Ana olhou para ela com gratidão.

—Você é minha família, Obedina. Olhe, amanhã te ajudo a trazer suas coisas, está bem?

—Está bem. Vamos recomeçar.


****


Ana passava todas as horas vagas de seu dia diante dos vitrais do pai. Quando escurecia ela acendia a luz do jardim e ficava ali. Quando Obedina a deixou, pegou um livro de Direito e foi sentar-se no banco de pedra. Não conseguiu concentrar-se. Ia entrar quando ouviu passos. Não eram os de Obedina, teve certeza.

O som se aproximava e ela ficou entre correr e fechar a porta da cozinha ou confrontar o intruso. Quando subia o degrau da cozinha viu João surgir. Seus olhos arregalaram-se e ela ficou muda por um instante. Quis perguntar como ele havia encontrado sua casa. O que fazia ali.

Ele se aproximou da estufa e por um instante ficou olhando um dos vitrais. Ana desceu o degrau e voltou para o jardim. Sentou-se novamente e ficou em silêncio.

— Eu me lembro quando ele estava montando essa estufa. Me lembro desse aqui — apontou para o vitral.

Ela finalmente falou.

—Você esteve aqui com meu pai?

Ele se aproximou dela.

—Ele me fez acreditar que eu o havia ajudado a montar este quebra-cabeça. Ele e sua mãe foram pessoas especiais na minha infância. E de repente... desapareceram. Como se um encanto os tivesse arrebatado de mim. Parecia mesmo verdade o que minha mãe me disse... que eu os havia inventado. Tipo amigo imaginário, sabe?

Ele não sabia como ela reagiria mas sentou-se a seu lado. Ela não se moveu nem o olhou, continuou com o olhar fixo em um tempo que não havia vivido.

—Precisamos ter esta conversa, Ana. Ainda que seja a última. Agora entendo porque você se afastou de mim... mesmo sem saber de nada. Isso é algo muito forte. E eu me sinto cúmplice de assassinato.

— Não...

Ele a impediu de falar.

—Eu me sinto assim, e preciso que você me perdoe pelo que minha mãe fez a seus pais.

—Você não tem nada a ver com isso, João. Você era uma criança... e essa história te atingiu com uma força brutal. Não é o único que se sente atordoado.

Ele a olhou angustiado.

—Eu o vi sendo morto.

O ar ficou preso nos pulmões dela.

—Eu estava lá, Ana. Eu vi seu pai caindo aos pés de seu avô. Mas eu não imaginava...

Ele calou-se e baixou a cabeça.

A surpresa pela revelação e sua compaixão por ele se misturaram e ela emudeceu. Aproximou-se, entrelaçou o braço ao dele e colocou a testa em seu ombro.

—Eu sinto muito, João.

As ações cruéis passadas de outras pessoas, cujas ondulações os atingia no presente, de certa forma, os unira, mas podiam separá-los para sempre. Permaneceram calados, confortados apenas pelo toque um do outro.

Então ele fez a pergunta.

—Você acredita que ainda temos uma chance?

Ela ficou calada. Dolorosamente, Ana sentia como se os últimos resquícios do vínculo que ainda poderiam ser reparados entre ela e João fossem tão tênues, que poderiam se apagar como um sopro sob a chama de uma vela.

Estava confusa.

Tinha medo que não conseguissem superar o peso do ódio, da injustiça e do assassinato. João não tinha culpa das ações de Melissa, assim como Ana não tinha pelas do avô, mas por que não conseguia dizer para ele que eles podiam vencer e ficar juntos? Estava ciente de que se permitisse que aquelas palavras saíssem de sua boca seriam vazias. Sem alma. A verdade era que ela tinha medo do futuro por causa do passado. Temia que as trevas os perseguissem e os colocassem um contra o outro. O tempo podia tanto ser aliado quanto inimigo.

—Não sei —foi honesta.

Ela se levantou e afastou-se dele. Por mais que se solidarizasse com ele, naquele instante nem mesmo conseguiu encará-lo.

—Me desculpe, mas... não sei se consigo...

Cruzou os braços e encarou o espaço.

—Não sei se consigo conviver com você, sem...

Ela não conseguia conviver com ele. As palavras contra ele foram cortantes. Cruéis.

—Sem me lembrar o tempo todo — angustiou-se.   

Sem se lembrar da morte de seu pai.  

Era melhor assim, ela pensou, ou acabariam se destruindo. A distância os protegeria.

João deixou-a silenciosamente.


****


Obedina ouviu Ana falando sobre João e sorriu intimamente. Pousou a xícara cor de rosa com chá sobre o pires e olhou com seus profundos olhos negros para Ana. Aquela história não havia terminado com Clara e Benjamin. O caminho era mais longo e intricado. A justiça poderia trajar-se com várias indumentárias.  

—Benjamin e Clara foram partidos diante de uma cidade que escolheu silenciar. Olhar de lado. Foram enterrados debaixo da indiferença. Será que o sacrifício deles já não foi suficiente? Clara deu o passo mais difícil pulando aquela janela para longe das trevas que a sufocavam. E não fez o que fez para que sua filha rastejasse de volta para lá, anos depois. As últimas palavras de sua mãe foram para que eu a mantivesse longe de seu avô. Não foi um pedido em um leito de morte, Ana. Ela me impôs um pacto. Enquanto se esvaia em sangue aprisionou minha alma com suas palavras. Eu me arrisquei muito para cumprir minha parte. Para quê? Para que você volte voluntariamente para debaixo dessa história opressora? Eu e Clara convivemos com Otho Braun e escapamos a seu veneno, por que não pode fazer o mesmo?

Ana sussurrou.

—Tenho medo.

—Talvez não ame João o bastante. Talvez não o ame de jeito nenhum.

Ana olhou para Obedina assombrada com suas palavras.

—Clara amava Benjamin. Nem o diabo de Otho Braun a conseguiu afastá-la dele. E ela parecia tão mais frágil que você...mas... — suspirou —, talvez eu esteja errada. Afinal, quem pode dizer que alguém é forte ou fraco, se não quando está diante de seu inimigo, não é mesmo? 


****


Anoiteceu.

Ana foi até o quarto da mãe e depois disso saiu de casa.

Caminhou apressada pelas ruas com a atmosfera alaranjada, iluminada por lâmpadas de sódio. Ao alcançar a rua paralela, esperou impacientemente pelo ônibus que a levou ao centro da cidade. Chegando à praça pegou um táxi.


****

João estava sentado na segunda fileira e esperava pelo início da cerimônia, quando viu a mãe entrar. Como sempre, impecável. Jamais se dava por vencida. Ela o procurou com o olhar e ao encontrá-lo sorriu, como se aquela, fosse antes de tudo sua conquista. João desviou seu olhar dela.

Pouco a pouco o auditório foi ficando cheio. Ele viu o pai sentar-se do outro lado, oposto ao da mãe. Eduarda chegou com sua família. Para João, era inacreditável que ela ainda desse confiança a ele depois do que havia presenciado em sua casa. Sentia-se inquieto. A beca o incomodava. Estar diante daquelas pessoas o estava aborrecendo. Só de pensar, que um ano antes, esperara ansiosamente por aquele dia.

Os nomes dos alunos começaram a ser chamados para receberem o grau.

João Monteiro.

Ele levantou-se, foi até a mesa diretiva, recebeu seu diploma simbólico e olhou para a câmera fotográfica que esperava eternizar um sorriso triunfante seu, mas apenas conseguiu um meio sorriso forçado.

Voltou a seu lugar e esperou, meio desiludido, pelo fim da cerimônia.

Quando os capelos voaram, ele apenas segurou o seu fora da cabeça. Começava agora, sua hora mais sofrida. Como imaginou, a mãe apressou-se em sua direção e ele teve medo de sua reação. Ela o tocou e ele permitiu que o entorpecimento tomasse seus sentidos.

—Parabéns, meu filho.

Olhos vazios encararam Melissa, sem dirigir-lhe uma única palavra. Eduarda e o pai se aproximaram dele e o congratularam. Ele esboçou um sorriso agradecido.

—Por que não saímos para comemorar? — sugeriu Eduarda.

—Conheci um restaurante bem agradável — completou o pai — Fica no mirante e podemos ver toda a cidade de lá. 

—É uma boa ideia! — Graziela completou.

Melissa fez um gracejo para Graziela e ela sorriu.

A conversa vulgar começou a irritá-lo. Estavam realmente agindo como se nada tivesse acontecido? Perguntou-se como seus pais haviam conseguido viver todos aqueles anos daquela forma. Varreram toda a sujeira para debaixo do tapete, celebraram dias festivos e aceitaram graciosamente a calma rotina da vida de forma imperturbável. Nada os corroía?

Quando ia abrir a boca para fazer um comentário ácido e declinar o convite, seu olhar foi atraído para um caminhar que já lhe era bem familiar.  Viu a mulher trajando um jeans e camiseta branca indo em sua direção.  

Parou diante dele, olhou-o nos olhos e abriu a boca para falar-lhe, mas como um galho espinhoso se estende para envolver uma flor e machucar quem tente se aproximar, Melissa se colocou-se entre ela e João.

—O que faz aqui? Veio estragar a celebração de meu filho?

Ana olhou-a de forma enérgica.

—Saia da minha frente, Melissa.

—Não! Saia você daqui.

Uma mão agarrou Melissa pelo braço, afastando-a sem muita delicadeza.

—Venha, querida! — o marido sussurrou entredentes para ela. — João precisa de um tempo.

Ofendida, ela olhou para o marido e depois para o filho, cujo olhar feroz desmentia seus modos contidos e ameaçava uma reação desagradável. Caminhou altiva ao lado do marido, de Eduarda e seus pais, mas se recusou a afastar-se muito do casal. Permaneceu em uma distância que garantia que seu olhar intimidador alcançasse Ana. Agia como uma fera enjaulada pronta a atacar.

João esperou. Ana olhou para ele, tomou sua mão e colocou duas alianças em sua palma. Ele nada falou, apenas olhou para os aros dourados em sua mão.

—Eram de meus pais — ela falou hesitante.

Olhou para ele, esperando palavras que não vieram. Ele esperava algo dela. Ana desviou os olhos e encontraram os de Melissa, que a fuzilavam, como seu avô havia feito com seu pai anos antes. Voltou-se para João. Ele estava tenso. A mão havia se fechado sobre as alianças. 

—Se você não quiser mais me ver, eu vou entender, só quero que saiba, que... eu sei que fui covarde naquele dia... — ela olhou para ele com olhos que rogavam que a ajudasse.

—O que você quer, Ana? — João perguntou com a voz estrangulada.

—Eu quero que você fique comigo.

Pronto. Havia dito.

Mas quando as palavras saíram de sua boca, ao invés de alívio, ela sentiu-se abandonada e sem defesas. Melissa e o grupo que a acompanhava a encaravam. Ela cruzou os braços e sentiu vontade de correr. Mas João a puxou para si e abraçou-a. Enfiou o rosto nos cabelos dela e apertou-a.

Ana não se lembrava porque havia afastado João dela. Ela ergueu o rosto para ele e sentiu os lábios dele nos dela com uma intensidade quase dolorosa.

Um instante depois separou os lábios dos dela.

—Você vai conseguir conviver comigo? — ele perguntou.

Ela tocou seu rosto.

—Todos os dias.

—E de que vai se lembrar quando olhar para mim?

—Que eu amo você.

Ele abraçou-a novamente.

—E então, vai aceitar minha proposta? — perguntou ela a seu ouvido.

Ele sorriu.

—O que é? Vai me convidar para fugir?

Ela olhou novamente na direção de Melissa, mas ela não estava mais lá. Havia se afastado. Desaparecido.


—Não. Não vamos precisar. 


FIM

₢Gardenia Yud

Obs: Para os que desejarem ler, o conto 'A CASA' está disponível no blog desde o prólogo. 



quinta-feira, 6 de agosto de 2015

ANA E JOÃO - ÚLTIMO CAPÍTULO ( A CASA ) - parte 1

parte 1

Uma mentira desfeita pode ser libertador. Ou enlouquecedor.

As cordas da fraude que controlam o fantoche são cortadas e o deixam sem vida. O louco abandona a batuta, sai de cena e expõe o signo e o toque da orquestra que ecoava, tão insana e harmoniosamente bem, um desconcerto sob sua regência e cuja tormenta só desinquietava os ouvidos mais sensíveis.

O tapete sacudido de debaixo de seus pés revelavam o esgoto onde pisava.

A fúria selvagem da verdade consumia a mentira que João vivia. Havia pressentido algo. Talvez soubesse, mas não acreditara na verdade. E sim na mentira.

Tinha avançado todos os passos que conseguiu, mas não alcançou o jardim. Parou no meio do caminho e ficou ali paralisado pelas lembranças, temendo seu papel naquela história sórdida.  Queria encontrar forças para levantar-se do chão e ir embora. Mas permaneceu esquivo e ouviu um encontro. Reconhecimento. E acabou por lembrar-se mais de si do que desejava.


****

—Eu abri o portão —João ouviu a voz envelhecida de Obedina. —Eu abri o portão e fui testemunha da fuga deles pela noite. Não me arrependi. Nem quando vi sua mãe fechar os olhos para este mundo. Benjamin deu a ela algo que jamais conheceria se não fosse por ele.

Obedina estava sentada no banco de pedras e Ana no degrau que levava a cozinha da casa. A cabeça entre as mãos. Acreditara que se soubesse toda a verdade se sentiria completa, não roubada. O coração estava pesado. Mas seus olhos mantinham-se secos. Era absolutamente incompreensível para ela como um ser humano sentia-se no direito de destruir o outro. Queria entender como pessoas se agrupavam e conspiravam para tirar a luz dos olhos de alguém que nunca lhes fizera mal. Seu pai apenas amara sua mãe, nada mais.

—Onde está ele, agora? O assassino de meu pai?

—Seu avô? — perguntou Obedina.

Ana levantou-se exasperada. Não queria pensar naquele homem como parente seu. Sua cabeça começou a doer.

—Ele morreu, Ana. Sua bisavó também. Mas ele foi primeiro.  Três anos após a morte de Clara, ele foi acometido por um câncer terrível. O poderoso Otho Braun definhou aos poucos. Tornou-se tão vulnerável diante da enfermidade. Em seus últimos dias vi algo em seu olhar que jamais imaginei que iria presenciar: medo. 

Não comentou com Ana que ele nunca se arrependeu de seu crime ou demonstrou qualquer remorso pela morte da filha. Simplesmente não falou mais em seu nome. Era como se ela não houvesse existido. Obedina ficou responsável por seu funeral. Nenhum dos conhecidos da família compareceu. 

—Sua bisavó faleceu um ano depois. Andava pela casa no meio da noite. Não dormia. Era uma mulher bastante atormentada. Uma manhã encontrei-a na biblioteca desacordada. O médico disse que foi um enfarto.

Ana olhou compadecida para Obedina. Uma mulher que havia carregado o peso de tantas vidas — belas e feias. Pareceu-lhe cansada pelo que havia visto e vivido.

—Foi você quem cuidou do jardim de meus pais?

Ela acenou com a cabeça.

Por muitos anos a casa havia ficado completamente abandonada. Passou alguns anos longe da cidade. Foi viver um tempo com sua família. Precisava sossegar o coração. Depois de dez anos afastada, voltou e passou a cuidar do jardim. Gostava de imaginar Clara em seus dias felizes. Era tão tênue antes de Benjamin e tornou-se tão vibrante com ele. O pai de Clara o odiara por cada sorriso que havia provocado nela, pela alegria que a filha passou a transbordar, pelo brilho, pelo olhar perdido em sonhos, pela resistência e por aprender a viver sem a ingerência brutal dele. Acima de tudo, Benjamin apagou cada impressão de Otho Braun em Clara. Ele não se via mais na filha. 

—Obedina, por que você nunca foi me visitar?

Ela olhou para Ana. Tão parecida com a mãe. Poderia até mesmo dizer que estava diante de Clara, ainda que a filha tivesse algo que faltava à mãe, e que talvez tivesse herdado do pai. Uma dureza necessária para sobreviver diante do caos. Clara mudou após conhecer Benjamin. De um frágil bibelô tornou-se uma moça determinada a largar o luxo e romper com a dominação paterna para viver algo que nunca experimentara na vida, amor. Mas nem de longe fora o que Ana havia se tornado, uma mulher capaz de ficar em pé sozinha. Porém, Clara teve seus elementos e Ana tinha os dela.

 —Me perdoe, Ana. Mas o orfanato tinha regras, e não podia burlá-las. Foi a exigência que me fizeram para manter nosso segredo. Eu a visitei nos primeiros anos, quando Dr. Otho ainda estava vivo, ainda que com muito medo que ele descobrisse algo sobre você. Nunca compreendi porque não foi adotada em seus primeiros anos de vida. Isso não era natural. Você era um bebê lindo e saudável. Todos, no orfanato, acreditavam que você seria adotada por uma boa família logo. A última vez que a vi, tinha cinco anos, mas nem mesmo assim perdemos a esperança. Nesta época você não imaginava quem eu era. Depois, eu saí da cidade e fui morar com uns parentes durante um tempo. Quando voltei, soube que você ainda estava no orfanato, mas logo o deixaria. Mesmo indo de encontro ao regulamento, deixei o endereço da casa com a Madre — suspirou— acreditava que ela poderia, quem sabe, por um toque da providência entregá-lo a você. No fundo eu sabia que este dia chegaria. Mas tinha que ser o momento certo.

—Eu sempre quis saber quem eram meus pais. Daria tudo no mundo para poder vê-los ou tocá-los.

O dia escurecia. Ana viu a primeira estrela surgir no céu. Precisava ir. Descobriu que Obedina morava a duas quadras dali. E que quase todos os dias estava na casa. Por puro acaso não se encontraram antes.

—Acredito que esteja na hora de mudar minha rotina — ela disse e enfiou a mão no bolso, removendo de lá uma chave que estendeu para Ana e que estava amarrada a uma fina fita de cetim azul. Um pouco amarelada nas bordas, mas era azul.

Ana pegou a chave e ficou olhando.

—Não que abrir a casa? Olhá-la por dentro? Conservei-a do mesmo jeito que seus pais a deixaram.

O coração de Ana falhou uma batida.

—Hoje não. Preciso me preparar para isso.

—Eu entendo.

Ana olhou para a mulher que demonstrou lealdade inabalável à história de seus pais, tomou sua mão e beijou-a, pegando Obedina de surpresa.

—Obrigada. Muito obrigada por tudo o que fez por nós.

—Só cumpri minha missão.

Começaram a caminhar em direção à frente da casa e Ana perguntou:

—O que aconteceu à mulher que levou meu pai até o Dr. Otho? Será que ela ainda vive na cidade?

Obedina suspirou.

—Sim, Ana. Mas é melhor esquecê-la.

Ana olhou nos olhos da mulher de forma questionadora.

—Esquecer? Não... ela foi responsável pela morte de meu pai assim como meu avô. Ela o levou para uma armadilha. Eu não entendo porque as pessoas desta cidade até hoje mantém esta história como um segredo a ser guardado. O todo-poderoso Otho Braun morreu. De que tem medo?

—Do mito, talvez. Passaram anos caladas e à medida que o tempo foi passando a verdade não importou mais. Mas não é apenas isso, Clara. Há pessoas inocentes envolvidas.

—Não existem inocentes em uma conspiração de assassinato. E no final, a verdade é sempre o melhor remédio.

—A verdade sim, mas cuidado com a vingança. Ela pode machucar a você também.

—O que eu tinha de ser machucada, já fui. Eu vou gritar aos quatro cantos desse mundo a verdade. Dizer quem matou meu pai e quem se beneficiou. Não vou me calar.

Obedina olhou-a preocupada.

Chegaram ao portão e o fecharam atrás de si.

João estava oculto nas sombras da casa. Quis saber qual o primeiro passo a dar em sua nova realidade, mas só conseguia sentir dor, frustração e raiva. Perdera a vida que acreditava ter e com ela. Ana se foi.


****


João abriu a porta de sua casa.

O pai e a mãe estavam em casa. Eduarda e seus pais os visitavam. A namorada abriu um sorriso ao vê-lo, mas este logo morreu em seus lábios ao perceber o estado de atordoamento em que se encontrava. 

—Nós o esperávamos para jantar, João. Esqueceu que tínhamos visita hoje?

Ele não respondeu, apenas a encarou. Havia algo em seu olhar que a deixou muda.

—João, não vai cumprimentar Eduarda? —perguntou o pai com sua habitual gentileza.

Ele continuava diante da mãe. Os lábios crispados e as mãos cerradas. Então, num acesso de fúria ele rompeu a tensão que estava sobre ele, agarrando um jarro da mãe e estilhaçando-o contra o espelho da sala.

Melissa colocou as mãos sobre a boca.

—O que é isso, João? — o pai pulou da cadeira e ficou entre ele e Melissa. —Filho, por que fez isso?

Melissa começou a chorar diante do pequeno grupo que os olhavam chocados.

—Foi com o dinheiro sujo de sangue que Otho Braun te deu que comprou todas essas coisas finas? — gritou descontrolado.

Ela se afastou dele e deu-lhe as costas.

—Calma, João — o pai tentou contê-lo, mas ele se afastou do pai e foi em direção à mãe.

— Nunca existiu nenhum Benjamin, não é mesmo? Eu o inventei, não foi? Você pretendia o quê? Me enlouquecer?  - perguntou descontrolado.

Ela se virou para ele com os olhos cheios de lágrimas.

—Eu queria te proteger, meu filho.

—Não! Não vem com esta história. Chega de suas mentiras.

Ao perceberem a seriedade do confronto no meio do qual foram pegos, Eduarda e os pais levantaram-se e despediram-se do pai de João.

—Qual é o nome que se dá ao que você fez? Me diz. Cúmplice de assassinato?

—Não é isso...você está exagerando... não foi assim.

—Chega, Melissa — o marido falou. — Está na hora de falar a verdade para ele. Que ele realmente presenciou um assassinato!

João caiu sentado na poltrona e escondeu o rosto nas mãos.

—O que você queria? Que eu dissesse a uma criança de cinco anos que ele havia sido testemunha de assassinato? Não. Ninguém faria isso em meu lugar. Ninguém. Você mesmo — apontou para o marido —, concordou comigo que o melhor era ficarmos calados. Agora não tente se esquivar da responsabilidade.

— E por que não entregou o assassino para a polícia? — perguntou João desolado querendo encontrar uma razão para a mãe ter se calado diante daquele mau.

Melissa riu histericamente.

—Otho era o dono da polícia! Ele era dono de tudo! Era o imperador desta cidade. Ah, meu filho você não sabe o que é maldade se não conheceu Otho Braun.

—Eu o conheci.

—Eu sabia... — ela murmurou. —Quando vi você conversando com aquela moça na praça, senti que havia algo de errado com ela... ela...só pode ter sido Obedina que mentiu para todos nós, todos esses anos.

João não podia conceber com o que estava ouvindo. Sua mãe via tudo tão distorcido, que por um instante temeu que não houvesse cura para seu mau.

—Por que se aproximou de Otho Braun se ele era pura maldade? Por que não foi embora? Por que se envolveu ao ponto de atrair tio Benjamin para a morte?

—Tio Benjamin? — Melissa debochou. — Por que eu me aproximei de Otho Braun? — ela bufou na cara dele. —Por que Benjamin se aproximou de Clara Braun? Por que não faz essa pergunta? Você era uma criança. Benjamin se aproximou de Clara por puro interesse! Porque ela era filha de um homem poderoso e influente.

—Não. Você é assim. Não ele. Ele a amava. Mas você nunca vai entender isso.

Ele abandonou a sala e subiu as escadas deixando os pais a sós.

Se olharam, mas não haviam palavras entre eles. Qualquer ponte de conexão havia desaparecido anos antes. Ele se dirigiu à cristaleira, removeu uma garrafa de scotch de lá e pegou um copo.

—Vai querer um drinque, Melissa? Acho que vai precisar — o tom irônico não lhe passou despercebido.

Ela cruzou os braços e quando ouviu que João descia as escadas aproximou-se. Ele carregava uma mala pequena.  Voltou-se para o marido em desespero e pediu.

—Faça alguma coisa, ele que ir embora.

—Não. Eu estou indo embora. — corrigiu-a João e sem se despedir atravessou a porta da frente.

Melissa o seguiu e enquanto ele colocava a mala no carro ela segurou o braço dele.

—Não faça isso!

Ele se desvencilhou dela e entrou no veículo. Deu partida no carro, sem mesmo olhar através da janela para a mãe em uma despedida e foi embora.

Ela permaneceu um tempo do lado de fora da casa, sentindo o frio da noite em seu rosto, depois voltou-se para entrar em casa. Ele voltaria. Quando subia as escadas, viu o marido descendo. Sua mala, sempre pronta para suas frequentes viagens, estava em sua mão. Ela enrugou a testa.

—Onde vai?

—João tem razão. Não há mais necessidade de vivermos uma mentira. Depois, envio alguém para pegar o resto de minhas coisas.


****


O Professor Mauro ainda tinha o olhar incrédulo. O relato de Ana parecia surreal. Sempre imaginara que Clara havia dado à luz a um bebê morto. Foram tantos os rumores naquela época, mas a única verdade era impronunciável. Nem os loucos se arriscavam. Nem mesmo foram engendrados poemas com versos camuflados sobre o amor de Clara e Benjamin. Ele havia tentado manter a arte de Ben viva como uma homenagem e celebração ao que ele havia sido e criado. Quando aquela jovem chegara em sua sala interessada nos vitrais de seu amigo ficara emocionado, mas agora que ela revelava que era a parte não contada daquela história, estava estarrecido.

—Sabe... — ele começou, mas sua voz embargou. Abriu a gaveta e retirou de lá uma caixa de lenços descartáveis. Colocou um deles sobre o rosto para conter as emoções.

Mais controlado disse à ela:

—Ele era meu amigo. Era simplesmente alucinado por sua mãe... Quando faleceu esse Campus ficou de luto. Puxa, como não imaginei que estava diante da filha de Benjamin.

Ana contou a ele sobre os vitrais que haviam nos jardins da casa e que um deles estava avariado. Também confidenciou-lhe que buscava um modo de expor a história dos pais. Queria que fosse um caso solucionado e não um crime que as pessoas esquecessem sem que a justiça tivesse sido feita. E a justiça naquele caso era expor o culpado, ainda que estivesse morto, ainda que não tivesse havido julgamento humano, testemunha ou veredito, acreditava que havia necessidade de um reconhecimento da verdade. Era o mínimo de reparação que seus pais mereciam.

—Vou te ajudar. E também vou à sua casa para dar uma olhada nos vitrais.

Sua casa.

Ela agora tinha uma casa. Aquilo era paradoxalmente reconfortante. Era uma casa ausente de família, mas ainda assim estava cheia de recordações. Boas. Sentia-se forte para abrir a porta e entrar.


****

Sentia-se desconcertada diante daquela casa. Sombria. Em estilo gótico, era altiva. As janelas pareciam olhos sinistros observando-a. Talvez, fossem como sua dona. Já havia passado algumas vezes diante dela, mas não imaginava o quanto estava conectada àquele lugar desconsolador.

O portão estava trancado e ela tocou a campainha. Olhou a rua deserta. Ninguém se aproximava. Acreditou ter visto uma pessoa a espiando da janela. A porta da frente abriu-se. Uma moça, que parecia empregada da casa aproximou-se.

—O que deseja?

—Falar com Melissa Monteiro.

—Dona Melissa?

—Sim.

—Um momento, por favor — deu-lhe as costas e foi saindo, mas Ana a impediu.

—Espere... ela já está me esperando. Abra o portão  exigiu autoritária.

A moça pareceu indecisa.

—Posso te garantir que ela está me esperando. Abra.

Ela fez como Ana a mandou e caminharam juntas através da aleia de arbustos. Entraram no hall da mansão e ela pediu que Ana sentasse.  O luxo estava em cada canto da casa. Mas era opressor. Uma súbita sensação de que era observada fez com que Ana se virasse. Então, ela a viu. E lhe era familiar. Impossível não reconhecê-la. Chocou-se com a descoberta. A mulher também não estava tranquila diante dela.

—O que faz em minha casa?

Ana se recompôs, pensaria depois, nos desdobramentos daquela nova descoberta.

—Não imagina o que vim fazer em sua casa, Dona Melissa?

—Nem mesmo a conheço. Vou chamar meu motorista para colocá-la para fora.

—Me conhece sim. Para que fingir. Desde a primeira vez que me viu soube quem eu era, ou ao menos suspeitou. Mas deixe-me apenas confirmar suas suspeitas: sou a filha de sua ‘amiga’. A que você traiu. Sou a filha do homem que você atraiu para a morte — Ana a olhou agressiva. — Que maldita influência Otho Braun tinha sobre você para que tenha cometido algo tão repulsivo? Dinheiro? Poder? Foi por isso que você se vendeu?

Melissa estreitou o olhar. E numa voz vagarosa e profunda devolveu.

—Realmente era uma maldita influência que a sua família tinha sobre mim e os meus — Melissa aproximou-se dela —Até hoje. Vocês são insidiosos. Seu avô destruiu a vida de muita gente, Benjamin foi só mais um. A desgraça dele foi conhecer Clara Braun. Como a de meu filho foi conhecer você — o sopro gélido sobre sua alma causou-lhe arrepios. — Atraí-lo fez parte de um plano maligno para me atingir? É mais uma manifestação do poder perverso dos Braun, que destrói a tudo quanto toca?

As palavras de Melissa abalaram Ana e ela teve dificuldade de reencontrar seu raciocínio. 

—Dr. Otho tinha uma forma invulgar de se infiltrar na vida das pessoas, encantava com seu poder e depois as aprisionava. Sufocava devagar, como uma cobra que se enrosca em você e vai te espremendo. Não permitia que ninguém respirasse quando estava próximo. Você puxou a seu avó. Ardilosa, veio à minha casa, sem meu convite. Mentiu com o intuito de invadi-la. Quer se impor sobre mim, pois já o fez a meu filho, envolvendo-o nesta sua teia macabra. Colocou-o contra mim. Ele não sabe lidar com os Braun, mas eu sei.

Ana sentiu como se as trevas que envolviam aquela casa estivessem se infiltrando por seus poros. Sentia-se desarranjada. Sua respiração estava presa. Não encontrava ar.

—Você nunca imaginou, não é mesmo? Não sobrou ninguém de sua família para te contar, mas eu farei isso para você.  Você é a neta de seu avô — olhou bem dentro dos olhos perturbados de Ana. — Você é o retorno daquele velho maligno.

Um soco em seu rosto não surtiria um efeito pior em Ana que aquelas palavras. Fechou os olhos, numa tentativa de suportar aquele horror.

—Você é Ana Braun! Tão pérfida quanto seu avô!

—É mentira, Ana.

Uma voz masculina soou por trás dela, rompendo com os transe no qual se encontrava, e trazendo-a de volta do pesadelo onde havia mergulhado. Sua mãos suavam. Seus pés não conseguiam dar nenhum passo e o que mais queria era ir embora daquele lugar.

—Você voltou para casa mais rápido do que eu imaginava, meu filho — Melissa falou em tom de deboche. — Mas eu não estou revelando nenhum mentira, você não o conhecia como eu, querido. Eu reconheci Otho nela assim que a vi. Sangue é um legado inevitável — apontou calma, ignorando o ímpeto do filho ao intrometer-se na conversa.

—Pare com isso!

João se aproximou de Ana e ficou diante dela.

—Você se parece com Clara, Ana. Com exceção de seus olhos — a voz dele era morna. —Você tem o olhar de seu pai. Benjamin. Eu os conheci. Você não tem nada de Otho Braun. Clara não tinha nada do pai. E foi por isso que quando encontrou alguém com coragem para livrá-la das garras dele, não hesitou. Infelizmente, eu tive que permanecer sob seu domínio por tempo demais.

Olhou para a mãe magoado.

Ana respirou fundo e finalmente conseguiu sair da paralisia em que se encontrava. Angustiada procurou a porta de saída e dirigiu-se até lá. Abriu-a, saiu e correu até o portão, mas para seu desespero ele estava fechado. Nem quando estava no orfanato sentira-se tão desnorteada. Talvez precisasse chamar a empregada, virou-se e viu João. Sério, ele não disse nada, apenas abriu o portão para ela.

Ana saiu e não olhou para ele. Não queria que visse o quanto estava assustada com o que havia acabado de experimentar. Andou rapidamente pela calçada sem olhar para trás até sair daquela rua. Queria estar longe daquela casa. Daquela influência. 

₢Gardenia Yud

OBS: Para aqueles que desejarem ler, todo o conto ' A CASA ' já encontra-se neste blog.