segunda-feira, 4 de janeiro de 2016

CALDAS BRANDÃO - CAPÍTULO 3

A viagem de trem para a nova cidade onde o Conselheiro se instalaria para desempenhar sua função não foi desagradável, ainda que sua patroa não conseguisse parar de bufar um segundo por causa do calor e da monotonia. Agitava seu leque polonês diante da face ruborizada e revirava os olhos, como se fosse ter um colapso a qualquer instante. Adelaide mantinha os olhos fechados por causa de sua enxaqueca, e de vez em quando, aspirava seus sais que pouco operavam em sua indisposição. O Conselheiro, homem de baixa estatura, taciturno e calado, lançou à Maria apenas um olhar, através das lentes de seu pince-nez, e depois cochilou com as costas eretas, cartola sobre a cabeça e mãos apoiadas sobre a bengala florete. Nem mesmo seus bigodes brancos tremiam, quando ele suspirava em seu calmo sono.

Quando o apito do trem soou anunciando sua chegada à plataforma, Adelaide se contorceu, e Dona Ana suspirou em aflição. O Conselheiro por sua vez, abriu os olhos tranquilamente e esperou até que Onofre Portaglia, o anão, viesse ajudá-lo com seus poucos pertences de mão.

Chacoalharam durante mais uma hora, dentro de uma carruagem que os levou por uma estrada sinuosa e esburacada para a pequena cidade de Filgueiras. A cada sopapo da carruagem, eles eram lançados um sobre os outros e Dona Ana agitava-se mais, murmurando e reclamando diante do marido fleumático.

Ao olhar, através da janela, Maria Gentil enxergou em um campo à beira da estrada um homem a derrubar árvores. Colocava o machado à raiz e desferia golpes violentos contra a madeira. Um rastro de tocos enfileirava-se atrás dele. A cidade aproximava-se. Não parecia muito promissora. Apesar de possuir um casario colorido e atraente, com um comercio central fervilhante, era pequena e poeirenta.

A carruagem atravessou a cidade sob os olhos curiosos dos moradores. E quando parou diante de uma casa muito parecida com a dos Caldas Brandão no Recife, mas em proporções bem menores, teve a impressão — com o empréstimo da hipérbole —, que o cenário era bastante semelhante com aquele que se dera com a chegada da família real ao Brasil. Uma banda tocava, para tormento de Adelaide, que ameaçava vomitar. Um grupo de homens usando chapéus-panamás e bengalas estava acompanhado de suas senhoras com chapéus de penas na cabeça à moda parisiense e saias longas tubulares. Abanavam-se esbaforidas e impacientes devido ao calor sufocante, enquanto esperavam para prestigiar o novo Conselheiro.

Angustiada pelo desconforto, Adelaide recolheu-se a casa com o auxílio de Maria Gentil. Mas Dona Ana obrigou-se a permanecer ao lado do Conselheiro.

Após um longo e torturante jogo de cena, para conhecimento e agrado dos figurões da cidade, a família retirou-se. Dona Ana estava atordoada por sua função de matrona da sociedade. Aquelas atividades lhe eram terrivelmente desgastantes, mas tinha que encará-las com a dignidade devida a posição proeminente do marido. Sempre que chegava de uma dessas cerimônias ou celebrações, ela removia o vestido e ficava apenas com suas combinações francesas. Sentava-se próximo à janela, colocava as perninhas roliças em cima de um banquinho, e Maria tinha que abaná-la, como um escravo asiático fazia com seus senhores, até que suas faces rosada e suadas voltassem à cor normal e ela adormecesse. Servir Adelaide era bem mais fácil, ela só se tornava realmente intratável quando Augusto Barros, um bem-nascido sem talento de família importante da cidade vinha cortejá-la.

—Ai, sua ignorante! — reclamava Adelaide todas as vezes que Maria apertava os cordões de seu corpete por sua própria insistência, para destacar ainda mais a cintura mais vespiana da cidade.

—Me desculpe, senhora.

Adelaide ignorou seu pedido.

—Dê-me a escova — ordenou ela. Maria acabara de escovar e arrumar seus cabelos, mas a jovem patroa pegou o espelho de prata incrustado com ametistas, contemplou sua imagem e passou a escova nos cachos que haviam sido elaborados com cuidado.

—Precisa melhorar suas habilidades se quer mesmo ficar com este trabalho. Não está cuidando de qualquer cabelo — suspirou exasperada. —Infelizmente, não peguei o tempo das negras, que realizavam seu trabalho com mais afinco. Vovó e mamãe tiveram mais sorte que eu. Aquela princesa nos prestou um desfavor!

—Vou melhorar, senhora.

—Pegue meu vestido!

Maria ajudou-a com o vestido rosa pastel com excesso de rendas e babados comprado na modista francesa da Rua Imperatriz. A despeito de sua bela aparência, seu gosto por moda, voz e atitudes eram infantis. Adelaide era um bibelô, cujas vontades eram todas satisfeitas.

Após ajeitar o chapéu sobre seus cabelos, e pegar as luvas que ela colocou com má vontade, Adelaide deixou o quarto com a cara azeda, mas colocou um sorriso doce nos lábios ao encontrar o Sr. Augusto Barros que a esperava na sala principal. O jovem demonstrava muito gosto em galanteá-la e as famílias já começavam a fazer planos para os dois e possivelmente dentro de alguns meses estariam casados.

O tempo transcorria como sempre em Filgueiras: enfastiante.

O anão Onofre era, na opinião de Maria, um prepotente, e tratava suas funções de mordomo como se estivesse desempenhando um cargo público. Vestia-se todos os dias como se fosse atuar em um espetáculo de criação de própria autoria, e neste, ele, Onofre e não o Conselheiro era o ator principal. Vivia a esquivar-se dele para não bater de frente com sua petulância. Certa vez, aproveitando-se de um raro tempo livre para si mesma, Maria sentou-se à mesa na cozinha para tomar café, quando ele surgiu.

—Porque está tomando chá na porcelana da casa? Já deveria conhecer seu lugar.

—Estou tomando café — confrontando-o com a resposta correta ao comentário errado.

—Não importa se é chá ou café — apontou com seu dedinho para um jogo de xícaras de vidro branco e barato que estava em uma prateleira acima da cabeça de Maria, — aquelas são as xícaras de seu uso.

Ela passou a nutrir um desprezo mudo por ele, e se digladiavam com olhares pouco lisonjeiros.

Certa manhã, do mês de março, como todo dia que começa ensolarado e embalado pelo canto dos pássaros prenuncia boas horas, aquele começou. Os empregados acordaram cedo para realizar suas tarefas, o Conselheiro tomou seu café da manhã e saiu de casa, enquanto, que as senhoras, ainda repousavam para descansarem o corpo, eternamente fatigado. 

Para estranheza dos que presenciaram o evento, uma nuvem escura, repentinamente encobriu a terra, tornando o dia em noite. Foi um fenômeno passageiro, mas de tão marcante, confundiu o galo, que cantou novamente no começo do novo dia, produzido artificialmente por aquele efeito anormal. O anão olhou pela janela, para ver do que se tratava. Uma das empregadas parou de varrer o quintal e olhou para cima, jurando depois de muitos ocorridos já passados, supostamente desencadeados por este, que havia enxergado um ser escuro a voar sobre a cidade. Maria passava alguns vestidos e parou, ao perceber que a luz do sol fora, de repente, apagada.

Aqueles minutos de misteriosa causa, observado pelos habitantes de Filgueiras, marcariam para sempre a mente dos supersticiosos como o começo do que veio depois.

O primeiro choro foi o de uma criança. A filha do dono da barbearia. E depois foram outras crianças, e daí, um adulto após o outro. Correu o boato que era a bubônica, e não sobraria nenhum vivo. O prefeito reuniu a comunidade para desmentir o rumor maldoso. O Conselheiro foi chamado para ajudar a apaziguar e informar os incautos. ‘Quem já se viu tamanha estupidez ser dita?  Não há peste em nossos dias. ’ Mas depois, veio a dúvida sobre suas palavras, e então a certeza de que ele estava mesmo errado. 



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