A viagem de trem
para a nova cidade onde o Conselheiro se instalaria para desempenhar sua função
não foi desagradável, ainda que sua patroa não conseguisse parar de bufar um
segundo por causa do calor e da monotonia. Agitava seu leque polonês diante da
face ruborizada e revirava os olhos, como se fosse ter um colapso a qualquer
instante. Adelaide mantinha os olhos fechados por causa de sua enxaqueca, e de
vez em quando, aspirava seus sais que pouco operavam em sua indisposição. O
Conselheiro, homem de baixa estatura, taciturno e calado, lançou à Maria apenas
um olhar, através das lentes de seu pince-nez,
e depois cochilou com as costas eretas, cartola sobre a cabeça e mãos apoiadas
sobre a bengala florete. Nem mesmo seus bigodes brancos tremiam, quando ele
suspirava em seu calmo sono.
Quando
o apito do trem soou anunciando sua chegada à plataforma, Adelaide se
contorceu, e Dona Ana suspirou em aflição. O Conselheiro por sua vez, abriu os
olhos tranquilamente e esperou até que Onofre Portaglia, o anão, viesse
ajudá-lo com seus poucos pertences de mão.
Chacoalharam
durante mais uma hora, dentro de uma carruagem que os levou por uma estrada
sinuosa e esburacada para a pequena cidade de Filgueiras. A cada sopapo da
carruagem, eles eram lançados um sobre os outros e Dona Ana agitava-se mais,
murmurando e reclamando diante do marido fleumático.
Ao
olhar, através da janela, Maria Gentil enxergou em um campo à beira da estrada um
homem a derrubar árvores. Colocava o machado à raiz e desferia golpes violentos
contra a madeira. Um rastro de tocos enfileirava-se atrás dele. A cidade
aproximava-se. Não parecia muito promissora. Apesar de possuir um casario
colorido e atraente, com um comercio central fervilhante, era pequena e
poeirenta.
A
carruagem atravessou a cidade sob os olhos curiosos dos moradores. E quando
parou diante de uma casa muito parecida com a dos Caldas Brandão no Recife, mas
em proporções bem menores, teve a impressão — com o empréstimo da hipérbole —,
que o cenário era bastante semelhante com aquele que se dera com a chegada da
família real ao Brasil. Uma banda tocava, para tormento de Adelaide, que ameaçava
vomitar. Um grupo de homens usando chapéus-panamás e bengalas estava acompanhado
de suas senhoras com chapéus de penas na cabeça à moda parisiense e saias
longas tubulares. Abanavam-se esbaforidas e impacientes devido ao calor
sufocante, enquanto esperavam para prestigiar o novo Conselheiro.
Angustiada
pelo desconforto, Adelaide recolheu-se a casa com o auxílio de Maria Gentil. Mas
Dona Ana obrigou-se a permanecer ao lado do Conselheiro.
Após
um longo e torturante jogo de cena, para conhecimento e agrado dos figurões da
cidade, a família retirou-se. Dona Ana estava atordoada por sua função de
matrona da sociedade. Aquelas atividades lhe eram terrivelmente desgastantes,
mas tinha que encará-las com a dignidade devida a posição proeminente do
marido. Sempre que chegava de uma dessas cerimônias ou celebrações, ela removia
o vestido e ficava apenas com suas combinações francesas. Sentava-se próximo à
janela, colocava as perninhas roliças em cima de um banquinho, e Maria tinha
que abaná-la, como um escravo asiático fazia com seus senhores, até que suas
faces rosada e suadas voltassem à cor normal e ela adormecesse. Servir Adelaide
era bem mais fácil, ela só se tornava realmente intratável quando Augusto Barros,
um bem-nascido sem talento de família importante da cidade vinha cortejá-la.
—Ai,
sua ignorante! — reclamava Adelaide todas as vezes que Maria apertava os
cordões de seu corpete por sua própria insistência, para destacar ainda mais a
cintura mais vespiana da cidade.
—Me
desculpe, senhora.
Adelaide
ignorou seu pedido.
—Dê-me
a escova — ordenou ela. Maria acabara de escovar e arrumar seus cabelos, mas a jovem
patroa pegou o espelho de prata incrustado com ametistas, contemplou sua imagem
e passou a escova nos cachos que haviam sido elaborados com cuidado.
—Precisa
melhorar suas habilidades se quer mesmo ficar com este trabalho. Não está
cuidando de qualquer cabelo — suspirou exasperada. —Infelizmente, não peguei o
tempo das negras, que realizavam seu trabalho com mais afinco. Vovó e mamãe
tiveram mais sorte que eu. Aquela princesa nos prestou um desfavor!
—Vou
melhorar, senhora.
—Pegue
meu vestido!
Maria
ajudou-a com o vestido rosa pastel com excesso de rendas e babados comprado na modista
francesa da Rua Imperatriz. A despeito de sua bela aparência, seu gosto por moda,
voz e atitudes eram infantis. Adelaide era um bibelô, cujas vontades eram todas
satisfeitas.
Após
ajeitar o chapéu sobre seus cabelos, e pegar as luvas que ela colocou com má
vontade, Adelaide deixou o quarto com a cara azeda, mas colocou um sorriso doce
nos lábios ao encontrar o Sr. Augusto Barros que a esperava na sala principal.
O jovem demonstrava muito gosto em galanteá-la e as famílias já começavam a
fazer planos para os dois e possivelmente dentro de alguns meses estariam
casados.
O
tempo transcorria como sempre em Filgueiras: enfastiante.
O
anão Onofre era, na opinião de Maria, um prepotente, e tratava suas funções de
mordomo como se estivesse desempenhando um cargo público. Vestia-se todos os
dias como se fosse atuar em um espetáculo de criação de própria autoria, e
neste, ele, Onofre e não o Conselheiro era o ator principal. Vivia a
esquivar-se dele para não bater de frente com sua petulância. Certa vez,
aproveitando-se de um raro tempo livre para si mesma, Maria sentou-se à mesa na
cozinha para tomar café, quando ele surgiu.
—Porque
está tomando chá na porcelana da casa? Já deveria conhecer seu lugar.
—Estou
tomando café — confrontando-o com a resposta correta ao comentário errado.
—Não
importa se é chá ou café — apontou com seu dedinho para um jogo de xícaras de
vidro branco e barato que estava em uma prateleira acima da cabeça de Maria, — aquelas
são as xícaras de seu uso.
Ela
passou a nutrir um desprezo mudo por ele, e se digladiavam com olhares pouco lisonjeiros.
Certa
manhã, do mês de março, como todo dia que começa ensolarado e embalado pelo
canto dos pássaros prenuncia boas horas, aquele começou. Os empregados
acordaram cedo para realizar suas tarefas, o Conselheiro tomou seu café da
manhã e saiu de casa, enquanto, que as senhoras, ainda repousavam para
descansarem o corpo, eternamente fatigado.
Para
estranheza dos que presenciaram o evento, uma nuvem escura, repentinamente
encobriu a terra, tornando o dia em noite. Foi um fenômeno passageiro, mas de
tão marcante, confundiu o galo, que cantou novamente no começo do novo dia,
produzido artificialmente por aquele efeito anormal. O anão olhou pela janela,
para ver do que se tratava. Uma das empregadas parou de varrer o quintal e
olhou para cima, jurando depois de muitos ocorridos já passados, supostamente
desencadeados por este, que havia enxergado um ser escuro a voar sobre a
cidade. Maria passava alguns vestidos e parou, ao perceber que a luz do sol
fora, de repente, apagada.
Aqueles
minutos de misteriosa causa, observado pelos habitantes de Filgueiras, marcariam
para sempre a mente dos supersticiosos como o começo do que veio depois.
O
primeiro choro foi o de uma criança. A filha do dono da barbearia. E depois
foram outras crianças, e daí, um adulto após o outro. Correu o boato que era a
bubônica, e não sobraria nenhum vivo. O prefeito reuniu a comunidade para
desmentir o rumor maldoso. O Conselheiro foi chamado para ajudar a apaziguar e
informar os incautos. ‘Quem já se viu tamanha estupidez ser dita? Não há peste em nossos dias. ’ Mas depois,
veio a dúvida sobre suas palavras, e então a certeza de que ele estava mesmo
errado.
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