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segunda-feira, 4 de janeiro de 2016

CALDAS BRANDÃO - CAPÍTULO 4

Era devastadora a face daquela peste, sem nome, a princípio, mas depois o único médico da cidade o descobriu: varíola. E informou fatalista: sozinho, não sou páreo para ela. O prefeito deveria buscar outros da capital. Homens corajosos e de boa vontade, pois aquela enfermidade era cruel. E o fogo seria sua mão direita. Roupas e pertences seriam incinerados para destruir os elementos que estavam combinados ao ar para criar aquele monstro invisível causador de tantos males. Quando veio a primeira baixa o médico quis também queimar o corpo ao que os familiares e padre da cidade se opuseram. ‘Estás a exagerar!’

Quando o número de enfermos começou a aumentar assustadoramente, o medo começou a insurgir, e uma parte da população temerosa queria queimar, inclusive, as casas dos enfermos. Um pandemônio se instalou em Filgueiras, e não haviam autoridades suficientes para impedir a sanha da população. Quando o dono de uma casa onde havia um enfermo atirou em um partidário dos incendiários, acreditou-se que um pequeno levante se instalaria na cidade.

O Conselheiro foi chamado a casa do prefeito, onde os líderes da cidade haviam se reunido e eles decidiram por colocar todos os doentes de quarentena em uma fazenda vazia, fora dos limites da cidade.

Assim que o Conselheiro chegou em casa naquela noite, comentou com sua mulher e filha à respeito da decisão que havia sido tomada. Jantaram e ele logo foi descansar, pois sentia uma leve indisposição. No meio da noite, Maria acordou com gritos, e ao alcançar o corredor viu Dona Ana e Adelaide em desespero. Portaglia saiu do quarto principal segurando uma vela, e lançou um olhar grave à Maria. Um frio percorreu sua espinha. Depois, olhando para Dona Ana, fez um gesto de comiseração por seu marido, que encontrava-se enfermo, provavelmente da doença que assolava a cidade. A mulher desmaiou e Maria correu para socorrê-la. Adelaide se esquivou com olhos assustados e trancou-se em seu quarto.

Maria e Portaglia conseguiram arrastar a mulher desmaiada para o único quarto vazio que havia na casa.

—O Conselheiro deverá ser levado para quarentena, o mais rápido possível, ou todos acabaremos doentes, disse Portaglia à Maria.

Dona Ana imediatamente voltou de sua inconsciência ao ouvir aquelas palavras.

—Meu marido não vai a lugar nenhum. Ele será cuidado aqui mesmo. Mandaremos vir um médico da capital para ele.

—Senhora, eu entendo sua lealdade, mas essa é uma recomendação do conselho da cidade. O próprio Conselheiro apoiou tal ideia. A senhora pode acabar contaminada. E os médicos da capital virão, mas ainda não sabe-se quando.

Ela o olhou em horror.

—Vá chamar o médico, agora! – ordenou histérica.

O médico da cidade chegou à casa dos Caldas Brandão terrivelmente exasperado. Portaglia havia insistido que ele convencesse a senhora da casa a fazer o que era certo. Mas a despeito de todas as argumentações de que a enfermidade poderia ser fatal, Dona Ana não foi persuadida: Maria, Portaglia e os outros empregados cuidariam do Conselheiro. Para isso eram sustentados. Ela e Adelaide ficariam em um quarto separado do dele. O médico riu sarcástico da decisão da mulher. ‘Essa enfermidade não respeita paredes, mas faça como quiser. ’ Antes de deixar o palacete, explicou a Portaglia e Maria que jamais deveriam entrar no quarto sem cobrir seus rostos, nem falar próximo ao doente. ‘E jamais toquem no fluido doentio que sai dos caroços de seu corpo. ’

—Que caroços? – perguntou Portaglia.

—Você vai ver.

Antes de sair, o médico lembrou-se de mais uma recomendação.

—Queimem! Queimem todas as roupas que sair do corpo dele e que forem contaminadas pelo fluido das bolhas. Essa doença não se afasta com água, apenas com fogo.

No outro dia, ao saber do que se passava na casa, os outros empregados desertaram. Portaglia ciente do perigo que corria, começou a evitar os cômodos da casa, mas Maria penalizada pelo abandono que o Conselheiro sofria e acostumada a cuidar de enfermos, cobriu o rosto e cautelosamente entrou no quarto, temerosa do que ia encontrar.

O homem estava de olhos fechados. Ao aproximar-se, Maria assustou-se com o que viu. Manchas vermelhas haviam tomado seu corpo e algumas bolhas estavam espalhadas por sua face. Pressentindo sua presença, ele abriu os olhos.

—Água, — foi tudo o que disse.

Maria encheu um copo que estava na cabeceira da cama com água e ajudou-o a ingerir o líquido. Depois, ele novamente fechou os olhos. Ela deixou o quarto preocupada. Com ele e também com ela.

—Vamos todos morrer, se ficarmos aqui.

Ouviu Portaglia, que estava encostado à parede do lado de fora do quarto.

—O que sugere? Que o abandonemos?

—Sugiro que nos salvemos! Ele era para ter sido levado a quarentena com os outros, não vê?

Um grito que mais parecia um uivo foi ouvido, vindo do jardim da casa.

 Ao correrem até lá, encontraram Adelaide horrorizada. Dona Ana estava desfalecida.

—Ela está doente!

Ao tocarem a mulher inconsciente, sentiram sua pele arder em febre. Colocaram-na junto ao marido, numa tentativa de reduzir os espaços da enfermidade. Mas foi um esforço inútil. Logo Adelaide juntou-se ao casal. A visão da enfermidade em sua forma mais crua deixou a moça desesperada. E Maria não sabia se a razão era a proximidade com a morte ou a inevitável perda de sua beleza. ‘As francesas podem curar minha pele, vou visitá-las’, dizia alienada pela febre e dor. Dona Ana implorou e Maria trouxe o padre para rezar pela recuperação da família. Mas ele não passou pelos umbrais da casa, recitou suas rezas do lado de fora, respingou água benta no pórtico e deixou rapidamente a mansão dos Caldas Brandão.

—Vou acabar queimando todos os lençóis da casa e não nos sobrarão mais nada. Procure uma bananeira. Me traga suas folhas Portaglia — pediu Maria.

—Somos os próximos, sabia? Quem vai cuidar de nós? — era a única coisa na qual ele podia racionalizar.

—Quem vai cuidar de mim, você quer dizer, não é? – Maria o enfrentou pela primeira vez, ‘pois eu sou a única a entrar naquela quarto’.

Ele deu de ombros. — ‘Porque quer. Se fossemos nós dois os doentes, eles já nos teriam jogado na quarentena, e ouvi falar, que todos os que lá entram, morrem ao quinto dia’.

O cheiro de fumaça enchia o ar da cidade. As pessoas haviam abandonado as ruas por medo dos miasmas. Portaglia carregou as folhas de bananeiras para a casa dos Caldas Brandão, ainda sem entender o que Maria faria com aquilo. E quando ela o pediu para ajudá-la a forrar as camas dos enfermos com elas, ele se esquivou em fúria. ‘O quê? Tá louca? Eu não entro lá de jeito nenhum.’

—Você vai me ajudar!

O tom de Maria foi tão autoritário que o anão cedeu, cobrindo o rosto com o tecido branco e limpo que ela o entregou para aproximar-se dos doentes. Ao ver a família enferma, por pouco não correu. As pústulas cobriam toda a pele dos patrões. Duvidou que sobrevivessem. A verdade era que, o Conselheiro já estava próximo dos portais do paraíso. Caroços recobriam as mucosas de seu nariz dificultando sua respiração. Se durasse mais um dia, era muito. Dona Ana logo o seguiria, pois era mulher frágil de corpo e espírito. Apenas Adelaide resistia um pouco mais, e em seus delírios era tratada, não pelas mãos de Maria, mas pelas das francesas, que restituíam à sua pele a perfeição. Maria, que cobrira os espelhos do quarto, confirmava a crença da moribunda.

Portaglia deixou o quarto horrorizado diante do que viu, e sumiu da casa, só reaparecendo dois dias depois, para ajudar Maria a arranjar o enterro do casal. Ela estava quase à beira de um colapso nervoso.

—Estou com dois cadáveres desde ontem aqui. Não posso fazer tudo sozinha, seu desalmado.

Ele olhou-a frio e deu-lhe às costas. Os ritos fúnebres foram rapidamente realizados, como era exigido pelas conjunturas nas quais viviam, e tiveram apenas o padre, o prefeito e o anão presentes. Mal terminada a cerimônia, o prefeito enviou uma carta à capital para que providenciassem a vinda de outro Conselheiro.

À noite, para esquivar-se um pouco daquele cenário de horror no qual vivia, confinada a casa ou junto à Adelaide, que morria e revivia, Maria encaminhou-se até a janela da sala e abriu-a na intenção de avistar a lua, ou qualquer indício da natureza que fosse favorável a vida. Em vez disso, avistou ao longe as labaredas se elevarem, dando um aspecto alaranjado aos termos da cidade. O fogo tentava combater as emanações da enfermidade. A fumaça escura e viciosa subia aos céus, tornando-os, ainda mais, sombrios, e o som de choro e lamento enchia o ar junto com os miasmas da varíola. Um sentimento funesto tocou-lhe a alma.

Ao perceber que as ruas eram tão opressivas quanto o interior da casa, começou a fechar a janela, mas interrompeu a ação, quando um movimento diante do portão chamou-lhe atenção. Uma sombra alta e escura caminhava lentamente de um lado para o outro. A curiosidade moveu seus pés. Ela deixou a luz alaranjada do lampião para trás e misturou-se as sombras da noite. Seus passos atravessaram a alameda frontal da casa e alcançaram as grades de ferro, contra as quais ela pressionou a face na tentativa de enxergar o que era aquilo que flutuava, lá e cá.

Foi então que sentiu seu braço ser cutucado, e ao tentar puxá-lo, seu pulso foi agarrado pela mão de ferro de um grande pássaro. Se a enfermidade deformadora e pútrida com seu terror não tivesse consumido sua retina, ela duvidaria daquela visão. Mas seus olhos haviam sofrido uma tão grande metamorfose, acostumando-se a feiura daqueles tempos de horror em que viviam, que por mais perturbadora que fosse a figura, sabia que era verdadeira. Ela pertencia aquele mundo que a rodeava. A morte havia encarnado na forma de um pássaro negro, gigante e ameaçador e estava ali para buscá-la.

O odor de rosas e cânfora espalhou-se pelo ar, acordando seu instinto de sobrevivência e levando-a a puxar o braço de entre as grades do portão e soltar-se da violência recurva que agarrava sua carne. Os olhos vítreos se fixaram nela e por um instante acreditou que o pássaro arrancaria os dela com seu bico negro e lustroso, mas de repente, ele a libertou. Ela caiu de costas e assim permaneceu, em assombro, enquanto ele se afastava. Talvez, pensou ela, não fosse seu dia. A morte a deixou viver.
Ela se levantou, correu para dentro da casa e bateu a porta atrás de si, deslizando até o chão sem forças.

Uma vela acesa veio em sua direção. Onofre Portaglia parou diante dela. A luz bruxuleante iluminava seus olhos azuis arrogantes, mas desta vez havia neles, um brilho enigmático, esquadrinhador, e como tudo o mais que a envolvia, ela o considerou bizarro.

—O que há com você? — perguntou com sua habitual irritabilidade e dada a sua insensibilidade, duvidou que se importasse.

Ela levou a mão trêmula ao rosto. ‘Eu vi a morte’, Portaglia ouviu-a sussurrar aterrorizada. Uma sucessão de palavras escapou aos borbotões de sua boca.

—A morte está nas ruas. Tentou me arrebatar para a sepultura. Um pássaro negro, gigante e impiedoso.

As frases desconexas saíam de seus lábios aterrorizados e seus olhos ainda estavam hipnotizados pela figura bizarra. Ao ver que o descontrole se apossava dela, ele desferiu um frio, ‘controle-se, Maria.’

—Você viu apenas os médicos da peste, os homens pássaros. Chegaram essa manhã, enviados pelo governo. Agem como se fossem nossos salvadores com suas canas mágicas para virar moribundos. Mas eles não podem nada. A tragédia que se abateu sobre nós, só nos deixará depois que tiver cumprido sua missão.

—Homens pássaros?

Ele deixou-a sem fornecer outras informações. Era típico dele, falar apenas o necessário e quando era de seu interesse.

Sentia-se alquebrada. Reuniu forças e levantou-se do chão. Tomou um chá para acalmar-lhe os nervos. Encheu uma garrafa com água fresca e foi até ao quarto dos Caldas Brandão para substituir a que estava lá desde o dia anterior. O quarto estava silencioso. Adelaide estava quieta e de olhos fechados.

Maria sentou-se na poltrona ao lado e adormeceu, vencida pelo cansaço e temor, mas, apenas um instante, pois acordou com os murmúrios da moça, que chamava pela mãe. Maria foi até o leito, afastou o cortinado de gaze branca e viu a moça agonizar. Sua respiração era rápida e superficial, ela buscava o ar, mas ao invés de ele entrar, saia de seus pulmões, a ela arfava como se estivesse sendo desinflada. A vida escapava de seus lábios entreabertos, deixando a casca doente em busca de liberdade. Mas a vontade férrea de Adelaide ainda tentava impedi-la de deixá-la.

Era quase impossível para ela abrir os olhos, pois as vesículas impediam os movimentos de suas pálpebras, mas Maria sabia que ela a tinha visto, pois numa tentativa sobre-humana, estendeu para ela a mão, em um pedido de socorro. O gesto foi fugaz. A mão caiu pesada sobre o leito. E Adelaide capitulou para a varíola.

Maria tinha sua respiração suspensa, o ar preso em seu peito. Correu até a janela, abriu-a e arrancou o lenço do rosto. Respirou fundo e depois deixou o quarto contaminado com a morte.

—Portaglia, temos que providenciar o enterro de Adelaide.

Ele levantou os olhos para ela.

—E depois?

—Depois o quê?

—Para onde vamos?

—O que tem isso agora? Vemos isso depois.

—O novo Conselheiro vai chegar.

—Sei.

—Não temos dinheiro, nem para onde ir nessa terra de trevas.

Maria suspirou. Por que ele a importunava com aquele assunto num momento tão inoportuno? Já não bastava o peso que tivera que carregar até ali? Ela deu as costas para ele e voltou para dentro da casa. A função dela era velar pelos doentes, o dele enterrar os mortos. Ela já havia cumprido sua missão.

Entrou no quarto segurando um pano contra o rosto e começou a pensar no que faria depois. Portaglia entrou e olhou para o corpo de Adelaide.  Desviou o olhar transtornado, e encarou a face pálida de Maria.

—Eu falei ao padre que você estava doente.

Maria enrugou a testa.

—Deus me livre de uma coisas dessas.

—Eu disse que você estava morrendo.

O estômago dela embrulhou.

—E que Adelaide, estava melhor... ele ficou feliz... por ela, digo. E triste por você.

Os olhos de Maria se arregalaram.

—Por que você faria tal coisa?

—Será que eu tenho que explicar tudo para você? – perguntou irritado. —Não vê nossa condição?

—Você é sinistro. — o olhar de Maria finalmente compreendendo a trama dele. – Acha que vou cooperar com seu crime?

—Crime? Crime é sermos lançados a rua, sem sermos retribuídos por nossos esforços. O que vai fazer de sua vida? Agora é a nossa hora, Maria. Não vê?

Os olhinhos maquiavélicos brilhavam. Sua voz soava como se estivesse fazendo uma revelação messiânica. Mas ela não conseguia admitir com o gênio que possuía as palavras dele. E sua primeira reação foi de negação. ‘Quem ele pensava que ela era?’
Adelaide estava ali entre eles, deitada na cama de dossel, coberta por folhas de bananeira. A febre a tinha deixado e ela era agora uma estátua, clássica e fria, cuja pele formosa fora maculada pela varíola. Não tinha nem mesmo a decência de respeitar o cadáver ao fazer-lhe tão indecorosa proposta! Que os ouvidos de sua alma não os ouvissem! O que ele desejava? Que a ira de Deus se voltasse contra eles e fossem os próximos da fila a receber aquela doença horrorosa?

—Quem sabe não é este o momento de teu destino ser corrigido? Para onde você vai daqui? Servir outra Adelaide rude, e ter um fim triste, como o de todos os virtuosos? É sua chance de ter um nome, que não seja gentil. Pare de aceitar estoicamente as privações da vida.

—Pare de me tentar!

—Para as mãos de quem vai toda essa fortuna, já pensou nisso? Os parentes são tão distantes que jamais serão encontrados. O governo vai se locupletar com o que já tem demais.

A vela que estava no criado-mudo ao lado da cama de Adelaide, tremulou e apagou, deixando-os rodeados por uma atmosfera mais tenebrosa ainda.

—Está vendo? Ela ouviu! Deus nos livre de tamanha blasfêmia!

—Ela está morta, Maria! Não precisa mais do dinheiro, ou do nome, onde está.

A voz dele vindo das sombras deixou-a mais assustada do que já estava. Acreditou que o anão estava possuído. Que Deus a livrasse de dar ouvidos a ele, correu do quarto e foi em busca de outra luz. Ele foi em seu encalço. ‘Não há tempo para isso. Escuta, Maria! Amanhã estarão aqui para levar o corpo! E depois virão nos expulsar. O outro Conselheiro e sua família, com seus serviçais, chegarão. Não há lugar para nós. ’

A vozinha persistente e cheia de maquinações não calava, e sabia que poderia vencer a vontade da mulher já tão solapada pela escuridão. O futuro para ele era incerto, e para ela mais ainda.

—Você percebe o que quer que eu faça? Usurpe uma identidade, uma família, uma herança!

—Os mortos não precisam de nada disso. Não vê que estamos em um tempo que trouxe terror repentino, mas que nos poupou? Ele nos está sendo propício. Mas vai passar. E você vai ter um longo tempo de arrependimento pela oportunidade perdida.
Num gesto dramático ele puxou a cortina da janela do corredor sobre seu rosto.

—Vê? Cubra seu rosto! Esconda-o. As pessoas vão entender. A antes formosa Adelaide não deseja ter seu rosto cheio de marcas visto. E, depois, vocês não eram tão distintas assim, apenas a riqueza dela colocava um abismo entre vocês.


Ela o olhou longamente, refletindo sobre suas palavras. ‘Não temos tempo’, ele sussurrou.

CALDAS BRANDÃO - ÚLTIMO CAPÍTULO

No dia seguinte, pessoas com rostos cobertos surgiram para buscar o corpo. Homens pássaros enviados pelo prefeito foram avaliar o ambiente e descontaminá-lo dos fluidos e emanações da doença para a chegada do próximo Conselheiro. Um dos pássaros olhou para Maria de forma mais demorada, e ela lembrou-se de que havia escapado das garras da morte.

Os ritos fúnebres terminaram.

Maria Gentil jazia na sepultura simples, ao lado de todos os outros mortos pela varíola. Por insistência de Adelaide foi enterrada junto aos Caldas Brandão, em território sagrado, ao lado da igreja. A rica herdeira não compareceu aos ritos sagrados, pois ainda se recuperava. Maria Gentil foi levada de forma fulminante. Não mostrou resistência alguma aquela mazela da natureza. Adelaide, uma das poucas sobreviventes, havia ainda, vestido a mortalha, mas sobreviveu. Praticamente reviveu de entre os mortos. Um verdadeiro milagre!

Antes de deixar Filgueiras, ela foi dar adeus a sua família, cujos restos ainda não poderiam ser enterrados na capital. Não, enquanto, o manto do medo de que mesmo os mortos podiam transmitir os miasmas da doença. Mas ela voltaria para buscá-los. Seu rosto estava coberto pelo fino véu escuro, a fim de esconder seu rosto marcado.

Adelaide pousou alguns jasmins sobre o descanso de Maria, ‘uma serva como nenhuma outra’, disse o padre reverente diante de momento tão sagrado, declarando um epitáfio, que nem ela, havia pensado a respeito de si mesma. E por um momento, emocionada, pensou em acabar com a farsa e voltar a ser Maria Gentil.

—Melhor irmos, senhorita Adelaide ou perderemos o trem — o anão sussurrou a seu lado como se intuísse que ela estava a um passo de estragar seus planos.

—Vá com Deus, minha filha – o padre a abençoou.

Então, ela deixou o cemitério, acompanhada por Portaglia.

Enquanto chacoalhava na carruagem esburacada de volta a Recife, tentava afastar de sua mente quaisquer acusações de sua consciência. Como dizia o anão, não havia usurpado um nome e nem uma família, e dizê-lo, seria uma ofensa grave e imperdoável ao destino que colocou-a no seio daquela geração, a fim de que desse continuidade a ela — a levasse adiante —, não importando se havia nascido em seu meio, e se por força maior precisava calar o seu sangue.

As trocas de nome no mundo são diárias, o sangue se espalha, se aparta com o tempo. Nas estações da vida — quer por convenções sociais, necessidades, guerra, paz ou peste — perde sua identificação cartorial. Ninguém sabe, no final, de que raiz surgiu. Em alguns casos, depois de muito tempo, o sangue — não o nome — desperta ao reencontrar-se com seus semelhantes. Ele a si próprio se reconhece nas memórias, ainda que tênues, nas coincidências, nas afinidades, nas simpatias, na execução da justiça e na transcendência do déjà vu. É no íntimo da alma que o sangue realmente se sabe. E só neste recôndito está sua importância.

Mas nome - ah, o nome é importante para os homens! Não importa se fictícios, se uma ilusão, se herdados ou criados, se roubados ou carregados por direito de nascença. O que importa, é que sejam portados com dignidade.

Então, ficou estabelecido assim, que o destino caviloso salvou o digno nome Caldas Brandão, através da genialidade do anão Onofre Portaglia, ao inserir Maria Gentil em seu caule, para levá-lo adiante. Não por seu berço, mas por sua bravura, e talvez, por seu sangue. Deu-se ao trabalho de montar uma epopeia dantesca, e usou da malícia dos homens para beneficiar uma mulher.

Se é um mistério incompreensível como um ramo floresce em uma árvore, sabe-se que se é forte, se mantém e dá seus frutos, não importa se enxertado. Forte para os homens, não quer dizer incorrupto, mas perene. E forte para os arcanos de Deus quer dizer puro, e nada mais.


Então, segundo Portaglia, o destino, que estudou na escola de Budapeste, e fundou a Universidade da Basiléia, sabiamente preservando sua neutralidade, e ficando bem em cima da linha – nem lá nem cá -, juntou tudo em miúdos e satisfez o interesse de todos, maliciosos e puros, terrenos e celestes, ao fazer de Maria Gentil, a herdeira dos Caldas Brandão.