domingo, 5 de julho de 2015

A CASA - PRÓLOGO

Madre Justiça olhou-a através das lentes grossas que deixavam seus pequeninos olhos castanhos maiores do que realmente eram. Depois de anos, a expressão no rosto da freira era a mesma com a qual ela crescera: um compadecimento que não encontrava saídas em suas ações. Não era, que a mulher idosa e de cabelos prateados a sua frente não fosse bondosa, mas estava atada pelo sistema que regia a Instituição e o respeitava rigorosamente. Era mulher sábia, conhecedora das leis divinas e humanas, mas nem sempre lhe era permitido honrar seu próprio nome, quando os fatos vinham à tona e as cartas da verdade eram colocadas sobre a mesa. 'As forças, ah, as forças!', dizia ela abatida por aquelas forças invisíveis das quais sempre se queixara, e que deixavam Ana enfurecida, frustrada e muda, desde que adquirira consciência que era um ser criado.

A luz, a verdade e a justiça, sempre estavam em desvantagem, sempre perdiam, e Ana chegara a pensar, ainda criança, em mudar de lado para ganhar ao menos uma vez. No final, ela se resignava, assim como a Madre, com o que não podia ser mudado e aquietava-se em seu mundo sem respostas. 'No mundo vindouro o bem é vencedor, querida', a mulher dizia compassiva, só para piorar mais ainda a situação, e deixá-la mais revoltada. Ela não queria esperar pelo mundo vindouro para ter uma vida como a das crianças normais, como eram designadas as crianças que tinham família, pelas do orfanato.

Ana viu as outras crianças irem embora, serem adotadas, escolhidas, e ela cresceu e ficou para trás.

Um dia antes de fazer dezoito anos e ter que deixar o orfanato, pediu, mais uma vez entre tantas, para ter uma conversa séria com a Madre. Desde os seis anos, quando em sua observação e perspicácia descobrira, que a expressão 'conversa séria', tinha peso e deixava as pessoas empertigadas e atentas, decidiu usá-la em seu favor para obter respostas, que para ela eram de extrema importância. Bateu levemente na porta austera de madeira escura e compacta da Madre. Quando ela abriu a porta e olhou para baixo com uma expressão inquisidora, em direção a criança miúda que atrevidamente batia a sua porta, ouviu a declaração tímida:

Madre, preciso ter uma conversa séria com a senhora __ e a pergunta que veio a seguir enterneceu a face dura da mulher. __ Eu tenho mãe?

Depois daquele dia, foram muitas as vezes e as tentativas de tirar uma palavra, uma pista apenas, que a levasse à pessoa responsável por deixá-la ali. E muitas mais foram as conversas para que ela descobrisse e entendesse que não era uma pessoa, a responsável por estar ali, mas... 'circunstâncias'. Bem parecidas com as 'forças', que impediam Madre Justiça de dizer a ela o que ela queria ouvir, ou de intervir para que fosse adotada ou ainda que as permitissem sair mais do orfanato para momentos de lazer pela cidade. Algumas vezes as crianças eram levadas para passear, quer para irem a algum circo novo que havia chegado, para uma apresentação de teatro ou à piqueniques em uma área de recreação onde havia um lago cheio de patos, que elas se divertiam ao alimentá-los com sobras de pão.

Nesses momentos, Ana fantasiava que seus pais a veriam passeando na rua, a reconheceriam e a achariam a criança mais linda do mundo. Então, se arrependeriam por tê-la deixado, e voltariam para buscá-la.

Quando isso não acontecia ela voltava entristecida para o orfanato e depois insistia com as freiras para que saíssem mais, assim, pensava ela, aumentaria suas chances e oportunidades para o encontro de seus sonhos. Mas não podia ser como ela queria. 'Não podemos sair todos os dias, Ana. Vivemos em um mundo com regras'. Ela não entendia nem se convencia. Corria até o grande portão, olhava por suas brechas e chorava até não poder mais.

Maria, uma das freiras, a vigiava de longe e permitia que ela ficasse ali, até perceber que havia se acalmado. Aproximava-se devagar e tocava suas bochechas úmidas pelas lágrimas com uma margarida, então a tomava pela mão e a levava de volta para perto das outras crianças.

As mesmas respostas ela obteve ao deixar o orfanato. Reticências, desculpas, omissões que para ela tinham o mesmo peso de uma mentira. Ao atravessar o portão do lugar que havia sido seu refúgio na infância, disse a si mesma que jamais retornaria. Construiria uma vida e não olharia para trás.

Porém, sua introdução no mundo não foi agradável. Não foi recebida de braços abertos e foram muitas as dificuldades e obstáculos, fazendo-a sentir-se só. O velho sonho de conhecer suas origens renasceu mais intenso e ela decidiu voltar ao orfanato. Só que agora era diferente. Dois anos depois, ela era uma pessoa obstinada, decidida a obter o que queria.

Ao ver Ana, a velha freira percebeu sua mudança. E sabia que ela não estava ali apenas para visitá-la. A criança que fora abandonada estava de mãos dadas com a mulher que queria respostas. De repente, a freira sentiu-se cansada.

Todas aquelas vidas eram deixadas ali a seu encargo e ela tentava fazer o melhor, mas sabia que não havia o que fizesse, nada substituiria o que elas acreditavam que haviam perdido. Cresciam sentindo-se uma peça de jogo perdida no grande tabuleiro da vida.

__Madre, sua benção__ Ana cumprimentou, beijando-a afetuosamente na bochecha.

__Deus a abençoe minha querida. Como está?

__Bem __disse sem muita convicção.

Conversaram sobre trivialidades, de como ela estava se saindo em sua vida 'lá fora'. Ana percebeu que a saúde da mulher que a criara não ia bem. Estava mais magra, pálida.

__Pensa em casar e ter filhos? __ perguntou a freira com um sorriso fraco.

__Quero muito...mas não há nada que eu queira mais do que saber quem são meus pais.

A mulher idosa suspirou. 'Era sempre assim para aquelas crianças. A geração passada, era mais importante que a futura. Sem esse elo, poucos conseguiam ir adiante.'

__Não...por favor, Madre. Não me venha com aquela velha história... não sou mais criança. Eu tenho direito de saber, da mesma forma que eles tiveram o direito de decidirem sobre minha vida.

__Ana, esse não é o caso. Ninguém abandona um filho ou filha na minha porta, simplesmente porque acreditam que tem o 'direito'. Essa decisão nasce de uma necessidade e causa dor.

A moça virou o rosto para que a mulher não visse os fortes sentimentos que estampavam sua face. Então, levantou-se da cadeira dando as costas para a mulher. Depois, já mais calma, foi até a janela grande e larga e contemplou a paisagem do pátio do orfanato com seu jardim organizado e tranquilo e os banquinhos de pedra.

__E eu? E a minha dor? Não vou culpá-los. Sei das dificuldades que se enfrenta no mundo e que às vezes, não se enxerga uma saída.

Olhou diretamente nos olhos da mulher.

__Eu só quero saber quem são. De onde vim. Nada mais __disse suavemente.

__Você sempre foi determinada, não é mesmo? Era a mais esperta que tínhamos aqui.

__ Mas nunca fui adotada à despeito de minha esperteza __a criança dentro dela rebateu ressentida.

A freira moveu a cabeça de um lado para o outro, penalizada por seus sentimentos confusos.

__ Você nunca quis!

Ana olhou para a mulher chocada com suas palavras.

__ As pessoas chegavam aqui e amavam você... era uma criança tão doce. Muitos casais vieram aqui e quiseram levá-la para casa. Meu Deus, perdi a conta deles... mas era só você perceber, e ficava agressiva. Assustava as pessoas com sua mudança repentina. Se escondia pelos cantos do orfanato. Ninguém conseguia achá-la... no fundo você acreditava que seus pais voltariam para busca-la.

__Isso não pode ser verdade...

Madre Justiça levantou-se da cadeira de espaldar alto e dirigiu-se até a porta. 'As forças, ah... as forças', Ana ouviu a mulher resmungar.

__Vou buscar um pouco de água para mim __olhou ao redor da sala de forma inquieta, deixando Ana confusa com sua atitude abrupta. Ela nunca a havia abandonado em meio a uma conversa, nunca a deixara no 'vácuo' antes, sem falar que havia água na jarra de cerâmica branca em sua mesa. Antes de sair pela porta a mulher olhou-a com a cabeça levemente inclinada. __Eu não posso dizer que sua ficha está na última gaveta, na pasta de número 32. Por favor, não mexa!

₢ Gardenia Yud