No dia seguinte,
pessoas com rostos cobertos surgiram para buscar o corpo. Homens pássaros
enviados pelo prefeito foram avaliar o ambiente e descontaminá-lo dos fluidos e
emanações da doença para a chegada do próximo Conselheiro. Um dos pássaros
olhou para Maria de forma mais demorada, e ela lembrou-se de que havia escapado
das garras da morte.
Os
ritos fúnebres terminaram.
Maria
Gentil jazia na sepultura simples, ao lado de todos os outros mortos pela
varíola. Por insistência de Adelaide foi enterrada junto aos Caldas Brandão, em
território sagrado, ao lado da igreja. A rica herdeira não compareceu aos ritos
sagrados, pois ainda se recuperava. Maria Gentil foi levada de forma
fulminante. Não mostrou resistência alguma aquela mazela da natureza. Adelaide,
uma das poucas sobreviventes, havia ainda, vestido a mortalha, mas sobreviveu.
Praticamente reviveu de entre os mortos. Um verdadeiro milagre!
Antes
de deixar Filgueiras, ela foi dar adeus a sua família, cujos restos ainda não
poderiam ser enterrados na capital. Não, enquanto, o manto do medo de que mesmo
os mortos podiam transmitir os miasmas da doença. Mas ela voltaria para
buscá-los. Seu rosto estava coberto pelo fino véu escuro, a fim de esconder seu
rosto marcado.
Adelaide
pousou alguns jasmins sobre o descanso de Maria, ‘uma serva como nenhuma outra’,
disse o padre reverente diante de momento tão sagrado, declarando um epitáfio,
que nem ela, havia pensado a respeito de si mesma. E por um momento,
emocionada, pensou em acabar com a farsa e voltar a ser Maria Gentil.
—Melhor
irmos, senhorita Adelaide ou perderemos o trem — o anão sussurrou a seu lado
como se intuísse que ela estava a um passo de estragar seus planos.
—Vá
com Deus, minha filha – o padre a abençoou.
Então,
ela deixou o cemitério, acompanhada por Portaglia.
Enquanto
chacoalhava na carruagem esburacada de volta a Recife, tentava afastar de sua
mente quaisquer acusações de sua consciência. Como dizia o anão, não havia usurpado
um nome e nem uma família, e dizê-lo, seria uma ofensa grave e imperdoável ao
destino que colocou-a no seio daquela geração, a fim de que desse continuidade
a ela — a levasse adiante —, não importando se havia nascido em seu meio, e se
por força maior precisava calar o seu sangue.
As
trocas de nome no mundo são diárias, o sangue se espalha, se aparta com o
tempo. Nas estações da vida — quer por convenções sociais, necessidades,
guerra, paz ou peste — perde sua identificação cartorial. Ninguém sabe, no
final, de que raiz surgiu. Em alguns casos, depois de muito tempo, o sangue —
não o nome — desperta ao reencontrar-se com seus semelhantes. Ele a si próprio
se reconhece nas memórias, ainda que tênues, nas coincidências, nas afinidades,
nas simpatias, na execução da justiça e na transcendência do déjà vu. É no íntimo da alma que o
sangue realmente se sabe. E só neste
recôndito está sua importância.
Mas
nome - ah, o nome é importante para os homens! Não importa se fictícios, se uma
ilusão, se herdados ou criados, se roubados ou carregados por direito de nascença.
O que importa, é que sejam portados com dignidade.
Então,
ficou estabelecido assim, que o destino caviloso salvou o digno nome Caldas
Brandão, através da genialidade do anão Onofre Portaglia, ao inserir Maria
Gentil em seu caule, para levá-lo adiante. Não por seu berço, mas por sua
bravura, e talvez, por seu sangue. Deu-se ao trabalho de montar uma epopeia
dantesca, e usou da malícia dos homens para beneficiar uma mulher.
Se
é um mistério incompreensível como um ramo floresce em uma árvore, sabe-se que se
é forte, se mantém e dá seus frutos, não importa se enxertado. Forte para os
homens, não quer dizer incorrupto, mas perene. E forte para os arcanos de Deus
quer dizer puro, e nada mais.
Então,
segundo Portaglia, o destino, que estudou na escola de Budapeste, e fundou a
Universidade da Basiléia, sabiamente preservando sua
neutralidade, e ficando bem em cima da linha – nem lá nem cá -, juntou tudo em
miúdos e satisfez o interesse de todos, maliciosos e puros, terrenos e celestes,
ao fazer de Maria Gentil, a herdeira dos Caldas Brandão.