segunda-feira, 4 de janeiro de 2016

CALDAS BRANDÃO - CAPÍTULO 3

A viagem de trem para a nova cidade onde o Conselheiro se instalaria para desempenhar sua função não foi desagradável, ainda que sua patroa não conseguisse parar de bufar um segundo por causa do calor e da monotonia. Agitava seu leque polonês diante da face ruborizada e revirava os olhos, como se fosse ter um colapso a qualquer instante. Adelaide mantinha os olhos fechados por causa de sua enxaqueca, e de vez em quando, aspirava seus sais que pouco operavam em sua indisposição. O Conselheiro, homem de baixa estatura, taciturno e calado, lançou à Maria apenas um olhar, através das lentes de seu pince-nez, e depois cochilou com as costas eretas, cartola sobre a cabeça e mãos apoiadas sobre a bengala florete. Nem mesmo seus bigodes brancos tremiam, quando ele suspirava em seu calmo sono.

Quando o apito do trem soou anunciando sua chegada à plataforma, Adelaide se contorceu, e Dona Ana suspirou em aflição. O Conselheiro por sua vez, abriu os olhos tranquilamente e esperou até que Onofre Portaglia, o anão, viesse ajudá-lo com seus poucos pertences de mão.

Chacoalharam durante mais uma hora, dentro de uma carruagem que os levou por uma estrada sinuosa e esburacada para a pequena cidade de Filgueiras. A cada sopapo da carruagem, eles eram lançados um sobre os outros e Dona Ana agitava-se mais, murmurando e reclamando diante do marido fleumático.

Ao olhar, através da janela, Maria Gentil enxergou em um campo à beira da estrada um homem a derrubar árvores. Colocava o machado à raiz e desferia golpes violentos contra a madeira. Um rastro de tocos enfileirava-se atrás dele. A cidade aproximava-se. Não parecia muito promissora. Apesar de possuir um casario colorido e atraente, com um comercio central fervilhante, era pequena e poeirenta.

A carruagem atravessou a cidade sob os olhos curiosos dos moradores. E quando parou diante de uma casa muito parecida com a dos Caldas Brandão no Recife, mas em proporções bem menores, teve a impressão — com o empréstimo da hipérbole —, que o cenário era bastante semelhante com aquele que se dera com a chegada da família real ao Brasil. Uma banda tocava, para tormento de Adelaide, que ameaçava vomitar. Um grupo de homens usando chapéus-panamás e bengalas estava acompanhado de suas senhoras com chapéus de penas na cabeça à moda parisiense e saias longas tubulares. Abanavam-se esbaforidas e impacientes devido ao calor sufocante, enquanto esperavam para prestigiar o novo Conselheiro.

Angustiada pelo desconforto, Adelaide recolheu-se a casa com o auxílio de Maria Gentil. Mas Dona Ana obrigou-se a permanecer ao lado do Conselheiro.

Após um longo e torturante jogo de cena, para conhecimento e agrado dos figurões da cidade, a família retirou-se. Dona Ana estava atordoada por sua função de matrona da sociedade. Aquelas atividades lhe eram terrivelmente desgastantes, mas tinha que encará-las com a dignidade devida a posição proeminente do marido. Sempre que chegava de uma dessas cerimônias ou celebrações, ela removia o vestido e ficava apenas com suas combinações francesas. Sentava-se próximo à janela, colocava as perninhas roliças em cima de um banquinho, e Maria tinha que abaná-la, como um escravo asiático fazia com seus senhores, até que suas faces rosada e suadas voltassem à cor normal e ela adormecesse. Servir Adelaide era bem mais fácil, ela só se tornava realmente intratável quando Augusto Barros, um bem-nascido sem talento de família importante da cidade vinha cortejá-la.

—Ai, sua ignorante! — reclamava Adelaide todas as vezes que Maria apertava os cordões de seu corpete por sua própria insistência, para destacar ainda mais a cintura mais vespiana da cidade.

—Me desculpe, senhora.

Adelaide ignorou seu pedido.

—Dê-me a escova — ordenou ela. Maria acabara de escovar e arrumar seus cabelos, mas a jovem patroa pegou o espelho de prata incrustado com ametistas, contemplou sua imagem e passou a escova nos cachos que haviam sido elaborados com cuidado.

—Precisa melhorar suas habilidades se quer mesmo ficar com este trabalho. Não está cuidando de qualquer cabelo — suspirou exasperada. —Infelizmente, não peguei o tempo das negras, que realizavam seu trabalho com mais afinco. Vovó e mamãe tiveram mais sorte que eu. Aquela princesa nos prestou um desfavor!

—Vou melhorar, senhora.

—Pegue meu vestido!

Maria ajudou-a com o vestido rosa pastel com excesso de rendas e babados comprado na modista francesa da Rua Imperatriz. A despeito de sua bela aparência, seu gosto por moda, voz e atitudes eram infantis. Adelaide era um bibelô, cujas vontades eram todas satisfeitas.

Após ajeitar o chapéu sobre seus cabelos, e pegar as luvas que ela colocou com má vontade, Adelaide deixou o quarto com a cara azeda, mas colocou um sorriso doce nos lábios ao encontrar o Sr. Augusto Barros que a esperava na sala principal. O jovem demonstrava muito gosto em galanteá-la e as famílias já começavam a fazer planos para os dois e possivelmente dentro de alguns meses estariam casados.

O tempo transcorria como sempre em Filgueiras: enfastiante.

O anão Onofre era, na opinião de Maria, um prepotente, e tratava suas funções de mordomo como se estivesse desempenhando um cargo público. Vestia-se todos os dias como se fosse atuar em um espetáculo de criação de própria autoria, e neste, ele, Onofre e não o Conselheiro era o ator principal. Vivia a esquivar-se dele para não bater de frente com sua petulância. Certa vez, aproveitando-se de um raro tempo livre para si mesma, Maria sentou-se à mesa na cozinha para tomar café, quando ele surgiu.

—Porque está tomando chá na porcelana da casa? Já deveria conhecer seu lugar.

—Estou tomando café — confrontando-o com a resposta correta ao comentário errado.

—Não importa se é chá ou café — apontou com seu dedinho para um jogo de xícaras de vidro branco e barato que estava em uma prateleira acima da cabeça de Maria, — aquelas são as xícaras de seu uso.

Ela passou a nutrir um desprezo mudo por ele, e se digladiavam com olhares pouco lisonjeiros.

Certa manhã, do mês de março, como todo dia que começa ensolarado e embalado pelo canto dos pássaros prenuncia boas horas, aquele começou. Os empregados acordaram cedo para realizar suas tarefas, o Conselheiro tomou seu café da manhã e saiu de casa, enquanto, que as senhoras, ainda repousavam para descansarem o corpo, eternamente fatigado. 

Para estranheza dos que presenciaram o evento, uma nuvem escura, repentinamente encobriu a terra, tornando o dia em noite. Foi um fenômeno passageiro, mas de tão marcante, confundiu o galo, que cantou novamente no começo do novo dia, produzido artificialmente por aquele efeito anormal. O anão olhou pela janela, para ver do que se tratava. Uma das empregadas parou de varrer o quintal e olhou para cima, jurando depois de muitos ocorridos já passados, supostamente desencadeados por este, que havia enxergado um ser escuro a voar sobre a cidade. Maria passava alguns vestidos e parou, ao perceber que a luz do sol fora, de repente, apagada.

Aqueles minutos de misteriosa causa, observado pelos habitantes de Filgueiras, marcariam para sempre a mente dos supersticiosos como o começo do que veio depois.

O primeiro choro foi o de uma criança. A filha do dono da barbearia. E depois foram outras crianças, e daí, um adulto após o outro. Correu o boato que era a bubônica, e não sobraria nenhum vivo. O prefeito reuniu a comunidade para desmentir o rumor maldoso. O Conselheiro foi chamado para ajudar a apaziguar e informar os incautos. ‘Quem já se viu tamanha estupidez ser dita?  Não há peste em nossos dias. ’ Mas depois, veio a dúvida sobre suas palavras, e então a certeza de que ele estava mesmo errado. 



CALDAS BRANDÃO - CAPÍTULO 4

Era devastadora a face daquela peste, sem nome, a princípio, mas depois o único médico da cidade o descobriu: varíola. E informou fatalista: sozinho, não sou páreo para ela. O prefeito deveria buscar outros da capital. Homens corajosos e de boa vontade, pois aquela enfermidade era cruel. E o fogo seria sua mão direita. Roupas e pertences seriam incinerados para destruir os elementos que estavam combinados ao ar para criar aquele monstro invisível causador de tantos males. Quando veio a primeira baixa o médico quis também queimar o corpo ao que os familiares e padre da cidade se opuseram. ‘Estás a exagerar!’

Quando o número de enfermos começou a aumentar assustadoramente, o medo começou a insurgir, e uma parte da população temerosa queria queimar, inclusive, as casas dos enfermos. Um pandemônio se instalou em Filgueiras, e não haviam autoridades suficientes para impedir a sanha da população. Quando o dono de uma casa onde havia um enfermo atirou em um partidário dos incendiários, acreditou-se que um pequeno levante se instalaria na cidade.

O Conselheiro foi chamado a casa do prefeito, onde os líderes da cidade haviam se reunido e eles decidiram por colocar todos os doentes de quarentena em uma fazenda vazia, fora dos limites da cidade.

Assim que o Conselheiro chegou em casa naquela noite, comentou com sua mulher e filha à respeito da decisão que havia sido tomada. Jantaram e ele logo foi descansar, pois sentia uma leve indisposição. No meio da noite, Maria acordou com gritos, e ao alcançar o corredor viu Dona Ana e Adelaide em desespero. Portaglia saiu do quarto principal segurando uma vela, e lançou um olhar grave à Maria. Um frio percorreu sua espinha. Depois, olhando para Dona Ana, fez um gesto de comiseração por seu marido, que encontrava-se enfermo, provavelmente da doença que assolava a cidade. A mulher desmaiou e Maria correu para socorrê-la. Adelaide se esquivou com olhos assustados e trancou-se em seu quarto.

Maria e Portaglia conseguiram arrastar a mulher desmaiada para o único quarto vazio que havia na casa.

—O Conselheiro deverá ser levado para quarentena, o mais rápido possível, ou todos acabaremos doentes, disse Portaglia à Maria.

Dona Ana imediatamente voltou de sua inconsciência ao ouvir aquelas palavras.

—Meu marido não vai a lugar nenhum. Ele será cuidado aqui mesmo. Mandaremos vir um médico da capital para ele.

—Senhora, eu entendo sua lealdade, mas essa é uma recomendação do conselho da cidade. O próprio Conselheiro apoiou tal ideia. A senhora pode acabar contaminada. E os médicos da capital virão, mas ainda não sabe-se quando.

Ela o olhou em horror.

—Vá chamar o médico, agora! – ordenou histérica.

O médico da cidade chegou à casa dos Caldas Brandão terrivelmente exasperado. Portaglia havia insistido que ele convencesse a senhora da casa a fazer o que era certo. Mas a despeito de todas as argumentações de que a enfermidade poderia ser fatal, Dona Ana não foi persuadida: Maria, Portaglia e os outros empregados cuidariam do Conselheiro. Para isso eram sustentados. Ela e Adelaide ficariam em um quarto separado do dele. O médico riu sarcástico da decisão da mulher. ‘Essa enfermidade não respeita paredes, mas faça como quiser. ’ Antes de deixar o palacete, explicou a Portaglia e Maria que jamais deveriam entrar no quarto sem cobrir seus rostos, nem falar próximo ao doente. ‘E jamais toquem no fluido doentio que sai dos caroços de seu corpo. ’

—Que caroços? – perguntou Portaglia.

—Você vai ver.

Antes de sair, o médico lembrou-se de mais uma recomendação.

—Queimem! Queimem todas as roupas que sair do corpo dele e que forem contaminadas pelo fluido das bolhas. Essa doença não se afasta com água, apenas com fogo.

No outro dia, ao saber do que se passava na casa, os outros empregados desertaram. Portaglia ciente do perigo que corria, começou a evitar os cômodos da casa, mas Maria penalizada pelo abandono que o Conselheiro sofria e acostumada a cuidar de enfermos, cobriu o rosto e cautelosamente entrou no quarto, temerosa do que ia encontrar.

O homem estava de olhos fechados. Ao aproximar-se, Maria assustou-se com o que viu. Manchas vermelhas haviam tomado seu corpo e algumas bolhas estavam espalhadas por sua face. Pressentindo sua presença, ele abriu os olhos.

—Água, — foi tudo o que disse.

Maria encheu um copo que estava na cabeceira da cama com água e ajudou-o a ingerir o líquido. Depois, ele novamente fechou os olhos. Ela deixou o quarto preocupada. Com ele e também com ela.

—Vamos todos morrer, se ficarmos aqui.

Ouviu Portaglia, que estava encostado à parede do lado de fora do quarto.

—O que sugere? Que o abandonemos?

—Sugiro que nos salvemos! Ele era para ter sido levado a quarentena com os outros, não vê?

Um grito que mais parecia um uivo foi ouvido, vindo do jardim da casa.

 Ao correrem até lá, encontraram Adelaide horrorizada. Dona Ana estava desfalecida.

—Ela está doente!

Ao tocarem a mulher inconsciente, sentiram sua pele arder em febre. Colocaram-na junto ao marido, numa tentativa de reduzir os espaços da enfermidade. Mas foi um esforço inútil. Logo Adelaide juntou-se ao casal. A visão da enfermidade em sua forma mais crua deixou a moça desesperada. E Maria não sabia se a razão era a proximidade com a morte ou a inevitável perda de sua beleza. ‘As francesas podem curar minha pele, vou visitá-las’, dizia alienada pela febre e dor. Dona Ana implorou e Maria trouxe o padre para rezar pela recuperação da família. Mas ele não passou pelos umbrais da casa, recitou suas rezas do lado de fora, respingou água benta no pórtico e deixou rapidamente a mansão dos Caldas Brandão.

—Vou acabar queimando todos os lençóis da casa e não nos sobrarão mais nada. Procure uma bananeira. Me traga suas folhas Portaglia — pediu Maria.

—Somos os próximos, sabia? Quem vai cuidar de nós? — era a única coisa na qual ele podia racionalizar.

—Quem vai cuidar de mim, você quer dizer, não é? – Maria o enfrentou pela primeira vez, ‘pois eu sou a única a entrar naquela quarto’.

Ele deu de ombros. — ‘Porque quer. Se fossemos nós dois os doentes, eles já nos teriam jogado na quarentena, e ouvi falar, que todos os que lá entram, morrem ao quinto dia’.

O cheiro de fumaça enchia o ar da cidade. As pessoas haviam abandonado as ruas por medo dos miasmas. Portaglia carregou as folhas de bananeiras para a casa dos Caldas Brandão, ainda sem entender o que Maria faria com aquilo. E quando ela o pediu para ajudá-la a forrar as camas dos enfermos com elas, ele se esquivou em fúria. ‘O quê? Tá louca? Eu não entro lá de jeito nenhum.’

—Você vai me ajudar!

O tom de Maria foi tão autoritário que o anão cedeu, cobrindo o rosto com o tecido branco e limpo que ela o entregou para aproximar-se dos doentes. Ao ver a família enferma, por pouco não correu. As pústulas cobriam toda a pele dos patrões. Duvidou que sobrevivessem. A verdade era que, o Conselheiro já estava próximo dos portais do paraíso. Caroços recobriam as mucosas de seu nariz dificultando sua respiração. Se durasse mais um dia, era muito. Dona Ana logo o seguiria, pois era mulher frágil de corpo e espírito. Apenas Adelaide resistia um pouco mais, e em seus delírios era tratada, não pelas mãos de Maria, mas pelas das francesas, que restituíam à sua pele a perfeição. Maria, que cobrira os espelhos do quarto, confirmava a crença da moribunda.

Portaglia deixou o quarto horrorizado diante do que viu, e sumiu da casa, só reaparecendo dois dias depois, para ajudar Maria a arranjar o enterro do casal. Ela estava quase à beira de um colapso nervoso.

—Estou com dois cadáveres desde ontem aqui. Não posso fazer tudo sozinha, seu desalmado.

Ele olhou-a frio e deu-lhe às costas. Os ritos fúnebres foram rapidamente realizados, como era exigido pelas conjunturas nas quais viviam, e tiveram apenas o padre, o prefeito e o anão presentes. Mal terminada a cerimônia, o prefeito enviou uma carta à capital para que providenciassem a vinda de outro Conselheiro.

À noite, para esquivar-se um pouco daquele cenário de horror no qual vivia, confinada a casa ou junto à Adelaide, que morria e revivia, Maria encaminhou-se até a janela da sala e abriu-a na intenção de avistar a lua, ou qualquer indício da natureza que fosse favorável a vida. Em vez disso, avistou ao longe as labaredas se elevarem, dando um aspecto alaranjado aos termos da cidade. O fogo tentava combater as emanações da enfermidade. A fumaça escura e viciosa subia aos céus, tornando-os, ainda mais, sombrios, e o som de choro e lamento enchia o ar junto com os miasmas da varíola. Um sentimento funesto tocou-lhe a alma.

Ao perceber que as ruas eram tão opressivas quanto o interior da casa, começou a fechar a janela, mas interrompeu a ação, quando um movimento diante do portão chamou-lhe atenção. Uma sombra alta e escura caminhava lentamente de um lado para o outro. A curiosidade moveu seus pés. Ela deixou a luz alaranjada do lampião para trás e misturou-se as sombras da noite. Seus passos atravessaram a alameda frontal da casa e alcançaram as grades de ferro, contra as quais ela pressionou a face na tentativa de enxergar o que era aquilo que flutuava, lá e cá.

Foi então que sentiu seu braço ser cutucado, e ao tentar puxá-lo, seu pulso foi agarrado pela mão de ferro de um grande pássaro. Se a enfermidade deformadora e pútrida com seu terror não tivesse consumido sua retina, ela duvidaria daquela visão. Mas seus olhos haviam sofrido uma tão grande metamorfose, acostumando-se a feiura daqueles tempos de horror em que viviam, que por mais perturbadora que fosse a figura, sabia que era verdadeira. Ela pertencia aquele mundo que a rodeava. A morte havia encarnado na forma de um pássaro negro, gigante e ameaçador e estava ali para buscá-la.

O odor de rosas e cânfora espalhou-se pelo ar, acordando seu instinto de sobrevivência e levando-a a puxar o braço de entre as grades do portão e soltar-se da violência recurva que agarrava sua carne. Os olhos vítreos se fixaram nela e por um instante acreditou que o pássaro arrancaria os dela com seu bico negro e lustroso, mas de repente, ele a libertou. Ela caiu de costas e assim permaneceu, em assombro, enquanto ele se afastava. Talvez, pensou ela, não fosse seu dia. A morte a deixou viver.
Ela se levantou, correu para dentro da casa e bateu a porta atrás de si, deslizando até o chão sem forças.

Uma vela acesa veio em sua direção. Onofre Portaglia parou diante dela. A luz bruxuleante iluminava seus olhos azuis arrogantes, mas desta vez havia neles, um brilho enigmático, esquadrinhador, e como tudo o mais que a envolvia, ela o considerou bizarro.

—O que há com você? — perguntou com sua habitual irritabilidade e dada a sua insensibilidade, duvidou que se importasse.

Ela levou a mão trêmula ao rosto. ‘Eu vi a morte’, Portaglia ouviu-a sussurrar aterrorizada. Uma sucessão de palavras escapou aos borbotões de sua boca.

—A morte está nas ruas. Tentou me arrebatar para a sepultura. Um pássaro negro, gigante e impiedoso.

As frases desconexas saíam de seus lábios aterrorizados e seus olhos ainda estavam hipnotizados pela figura bizarra. Ao ver que o descontrole se apossava dela, ele desferiu um frio, ‘controle-se, Maria.’

—Você viu apenas os médicos da peste, os homens pássaros. Chegaram essa manhã, enviados pelo governo. Agem como se fossem nossos salvadores com suas canas mágicas para virar moribundos. Mas eles não podem nada. A tragédia que se abateu sobre nós, só nos deixará depois que tiver cumprido sua missão.

—Homens pássaros?

Ele deixou-a sem fornecer outras informações. Era típico dele, falar apenas o necessário e quando era de seu interesse.

Sentia-se alquebrada. Reuniu forças e levantou-se do chão. Tomou um chá para acalmar-lhe os nervos. Encheu uma garrafa com água fresca e foi até ao quarto dos Caldas Brandão para substituir a que estava lá desde o dia anterior. O quarto estava silencioso. Adelaide estava quieta e de olhos fechados.

Maria sentou-se na poltrona ao lado e adormeceu, vencida pelo cansaço e temor, mas, apenas um instante, pois acordou com os murmúrios da moça, que chamava pela mãe. Maria foi até o leito, afastou o cortinado de gaze branca e viu a moça agonizar. Sua respiração era rápida e superficial, ela buscava o ar, mas ao invés de ele entrar, saia de seus pulmões, a ela arfava como se estivesse sendo desinflada. A vida escapava de seus lábios entreabertos, deixando a casca doente em busca de liberdade. Mas a vontade férrea de Adelaide ainda tentava impedi-la de deixá-la.

Era quase impossível para ela abrir os olhos, pois as vesículas impediam os movimentos de suas pálpebras, mas Maria sabia que ela a tinha visto, pois numa tentativa sobre-humana, estendeu para ela a mão, em um pedido de socorro. O gesto foi fugaz. A mão caiu pesada sobre o leito. E Adelaide capitulou para a varíola.

Maria tinha sua respiração suspensa, o ar preso em seu peito. Correu até a janela, abriu-a e arrancou o lenço do rosto. Respirou fundo e depois deixou o quarto contaminado com a morte.

—Portaglia, temos que providenciar o enterro de Adelaide.

Ele levantou os olhos para ela.

—E depois?

—Depois o quê?

—Para onde vamos?

—O que tem isso agora? Vemos isso depois.

—O novo Conselheiro vai chegar.

—Sei.

—Não temos dinheiro, nem para onde ir nessa terra de trevas.

Maria suspirou. Por que ele a importunava com aquele assunto num momento tão inoportuno? Já não bastava o peso que tivera que carregar até ali? Ela deu as costas para ele e voltou para dentro da casa. A função dela era velar pelos doentes, o dele enterrar os mortos. Ela já havia cumprido sua missão.

Entrou no quarto segurando um pano contra o rosto e começou a pensar no que faria depois. Portaglia entrou e olhou para o corpo de Adelaide.  Desviou o olhar transtornado, e encarou a face pálida de Maria.

—Eu falei ao padre que você estava doente.

Maria enrugou a testa.

—Deus me livre de uma coisas dessas.

—Eu disse que você estava morrendo.

O estômago dela embrulhou.

—E que Adelaide, estava melhor... ele ficou feliz... por ela, digo. E triste por você.

Os olhos de Maria se arregalaram.

—Por que você faria tal coisa?

—Será que eu tenho que explicar tudo para você? – perguntou irritado. —Não vê nossa condição?

—Você é sinistro. — o olhar de Maria finalmente compreendendo a trama dele. – Acha que vou cooperar com seu crime?

—Crime? Crime é sermos lançados a rua, sem sermos retribuídos por nossos esforços. O que vai fazer de sua vida? Agora é a nossa hora, Maria. Não vê?

Os olhinhos maquiavélicos brilhavam. Sua voz soava como se estivesse fazendo uma revelação messiânica. Mas ela não conseguia admitir com o gênio que possuía as palavras dele. E sua primeira reação foi de negação. ‘Quem ele pensava que ela era?’
Adelaide estava ali entre eles, deitada na cama de dossel, coberta por folhas de bananeira. A febre a tinha deixado e ela era agora uma estátua, clássica e fria, cuja pele formosa fora maculada pela varíola. Não tinha nem mesmo a decência de respeitar o cadáver ao fazer-lhe tão indecorosa proposta! Que os ouvidos de sua alma não os ouvissem! O que ele desejava? Que a ira de Deus se voltasse contra eles e fossem os próximos da fila a receber aquela doença horrorosa?

—Quem sabe não é este o momento de teu destino ser corrigido? Para onde você vai daqui? Servir outra Adelaide rude, e ter um fim triste, como o de todos os virtuosos? É sua chance de ter um nome, que não seja gentil. Pare de aceitar estoicamente as privações da vida.

—Pare de me tentar!

—Para as mãos de quem vai toda essa fortuna, já pensou nisso? Os parentes são tão distantes que jamais serão encontrados. O governo vai se locupletar com o que já tem demais.

A vela que estava no criado-mudo ao lado da cama de Adelaide, tremulou e apagou, deixando-os rodeados por uma atmosfera mais tenebrosa ainda.

—Está vendo? Ela ouviu! Deus nos livre de tamanha blasfêmia!

—Ela está morta, Maria! Não precisa mais do dinheiro, ou do nome, onde está.

A voz dele vindo das sombras deixou-a mais assustada do que já estava. Acreditou que o anão estava possuído. Que Deus a livrasse de dar ouvidos a ele, correu do quarto e foi em busca de outra luz. Ele foi em seu encalço. ‘Não há tempo para isso. Escuta, Maria! Amanhã estarão aqui para levar o corpo! E depois virão nos expulsar. O outro Conselheiro e sua família, com seus serviçais, chegarão. Não há lugar para nós. ’

A vozinha persistente e cheia de maquinações não calava, e sabia que poderia vencer a vontade da mulher já tão solapada pela escuridão. O futuro para ele era incerto, e para ela mais ainda.

—Você percebe o que quer que eu faça? Usurpe uma identidade, uma família, uma herança!

—Os mortos não precisam de nada disso. Não vê que estamos em um tempo que trouxe terror repentino, mas que nos poupou? Ele nos está sendo propício. Mas vai passar. E você vai ter um longo tempo de arrependimento pela oportunidade perdida.
Num gesto dramático ele puxou a cortina da janela do corredor sobre seu rosto.

—Vê? Cubra seu rosto! Esconda-o. As pessoas vão entender. A antes formosa Adelaide não deseja ter seu rosto cheio de marcas visto. E, depois, vocês não eram tão distintas assim, apenas a riqueza dela colocava um abismo entre vocês.


Ela o olhou longamente, refletindo sobre suas palavras. ‘Não temos tempo’, ele sussurrou.

CALDAS BRANDÃO - ÚLTIMO CAPÍTULO

No dia seguinte, pessoas com rostos cobertos surgiram para buscar o corpo. Homens pássaros enviados pelo prefeito foram avaliar o ambiente e descontaminá-lo dos fluidos e emanações da doença para a chegada do próximo Conselheiro. Um dos pássaros olhou para Maria de forma mais demorada, e ela lembrou-se de que havia escapado das garras da morte.

Os ritos fúnebres terminaram.

Maria Gentil jazia na sepultura simples, ao lado de todos os outros mortos pela varíola. Por insistência de Adelaide foi enterrada junto aos Caldas Brandão, em território sagrado, ao lado da igreja. A rica herdeira não compareceu aos ritos sagrados, pois ainda se recuperava. Maria Gentil foi levada de forma fulminante. Não mostrou resistência alguma aquela mazela da natureza. Adelaide, uma das poucas sobreviventes, havia ainda, vestido a mortalha, mas sobreviveu. Praticamente reviveu de entre os mortos. Um verdadeiro milagre!

Antes de deixar Filgueiras, ela foi dar adeus a sua família, cujos restos ainda não poderiam ser enterrados na capital. Não, enquanto, o manto do medo de que mesmo os mortos podiam transmitir os miasmas da doença. Mas ela voltaria para buscá-los. Seu rosto estava coberto pelo fino véu escuro, a fim de esconder seu rosto marcado.

Adelaide pousou alguns jasmins sobre o descanso de Maria, ‘uma serva como nenhuma outra’, disse o padre reverente diante de momento tão sagrado, declarando um epitáfio, que nem ela, havia pensado a respeito de si mesma. E por um momento, emocionada, pensou em acabar com a farsa e voltar a ser Maria Gentil.

—Melhor irmos, senhorita Adelaide ou perderemos o trem — o anão sussurrou a seu lado como se intuísse que ela estava a um passo de estragar seus planos.

—Vá com Deus, minha filha – o padre a abençoou.

Então, ela deixou o cemitério, acompanhada por Portaglia.

Enquanto chacoalhava na carruagem esburacada de volta a Recife, tentava afastar de sua mente quaisquer acusações de sua consciência. Como dizia o anão, não havia usurpado um nome e nem uma família, e dizê-lo, seria uma ofensa grave e imperdoável ao destino que colocou-a no seio daquela geração, a fim de que desse continuidade a ela — a levasse adiante —, não importando se havia nascido em seu meio, e se por força maior precisava calar o seu sangue.

As trocas de nome no mundo são diárias, o sangue se espalha, se aparta com o tempo. Nas estações da vida — quer por convenções sociais, necessidades, guerra, paz ou peste — perde sua identificação cartorial. Ninguém sabe, no final, de que raiz surgiu. Em alguns casos, depois de muito tempo, o sangue — não o nome — desperta ao reencontrar-se com seus semelhantes. Ele a si próprio se reconhece nas memórias, ainda que tênues, nas coincidências, nas afinidades, nas simpatias, na execução da justiça e na transcendência do déjà vu. É no íntimo da alma que o sangue realmente se sabe. E só neste recôndito está sua importância.

Mas nome - ah, o nome é importante para os homens! Não importa se fictícios, se uma ilusão, se herdados ou criados, se roubados ou carregados por direito de nascença. O que importa, é que sejam portados com dignidade.

Então, ficou estabelecido assim, que o destino caviloso salvou o digno nome Caldas Brandão, através da genialidade do anão Onofre Portaglia, ao inserir Maria Gentil em seu caule, para levá-lo adiante. Não por seu berço, mas por sua bravura, e talvez, por seu sangue. Deu-se ao trabalho de montar uma epopeia dantesca, e usou da malícia dos homens para beneficiar uma mulher.

Se é um mistério incompreensível como um ramo floresce em uma árvore, sabe-se que se é forte, se mantém e dá seus frutos, não importa se enxertado. Forte para os homens, não quer dizer incorrupto, mas perene. E forte para os arcanos de Deus quer dizer puro, e nada mais.


Então, segundo Portaglia, o destino, que estudou na escola de Budapeste, e fundou a Universidade da Basiléia, sabiamente preservando sua neutralidade, e ficando bem em cima da linha – nem lá nem cá -, juntou tudo em miúdos e satisfez o interesse de todos, maliciosos e puros, terrenos e celestes, ao fazer de Maria Gentil, a herdeira dos Caldas Brandão. 



domingo, 3 de janeiro de 2016

AJALON - MERGULHO - parte 2

Sirenes. Luzes vermelhas. Virou de leve a cabeça. Sangue! A quem pertencia aquele sangue espalhado sobre o asfalto? Deborah... Ele a viu. Seu peito subia e descia, profunda e rapidamente. Desesperado, numa busca por vida. Pessoas se debruçavam sobre ela, tentando ajudá-la. Luzes ofuscaram seus olhos, e ele não a viu mais.

─ Deborah! — ele gritou, levantando-se abruptamente, com o coração aos pulos. A angústia, sua velha conhecida, voltou!

Sua respiração ofegava, e ele tentou controlar as emoções perturbadoras.

Foi então, que sentiu a presença dela. Não, não a de Deborah e sim, outra.

Sentada, a mulher que havia resgatado do acidente na estrada, olhava para ele. Os olhos estavam assustados. Úmidos. Olhos cor de avelã. Desconcertantes.

─ Deborah, sou eu?

Ele apenas a encarou, ainda confuso, — pelo sonho, por ela e pelo momento.

─ É esse o meu nome?

Joshua estava sem palavras. Recuperava-se devagar e aquela nova presença exigia um rearranjo. Lentamente, foi relaxando, mas a tensão persistia na atmosfera.

Ela não lembrava o próprio nome?

─ Não... quero dizer. Não sei. Você não se lembra? — perguntou suavemente.

Ela assombrou-se com a pergunta.

Eram iridescentes, os seus olhos. Percebeu alguns poucos reflexos dourados espalhando-se na superfície brilhante e circular em ondas tumultuadas, à medida, que suas emoções afloravam.

─ Como assim? Você não sabe meu nome?

Joshua entendeu seu conflito e angústia. Havia levado uma pancada na cabeça e acabara de acordar ao lado de um desconhecido, e, talvez, imaginasse que tivessem algum tipo de vínculo. Esperava respostas dele.

─ Não, mas... — ele a tocou de leve no braço, numa tentativa de transmitir-lhe conforto, mas ela afastou-se.

Ela passou a analisar atentamente o ambiente, numa tentativa de reconhecer algo. Olhou para si mesma, notando o vestido de renda e cetim, e por fim, voltou o olhar para ele, o homem que presenciara seu irromper naquelas águas desconhecidas, em um nascimento espantoso. Sem perceber, sua respiração estava suspensa — numa apneia —, enquanto fazia seu mergulho de reconhecimento. Quem era? O que fazia ali? E quem era ele? Entreabriu os lábios e respirou profundamente. A única coisa, que sabia nesse instante de descobertas e imprecisão, era que, ele havia se tornado o elo, que a amarrava àquela nova realidade. O problema, refletiu, era que parecia tão perdido quanto ela própria.

─ Você sofreu um acidente. Eu a resgatei... mas como estamos em meio a uma nevasca não houve como transportá-la para o hospital ─ Joshua explicou, tentando ser o mais compreensível e breve possível para não confundi-la ainda mais. 

Ela mastigou suas palavras. Então, instintivamente levou a mão à cabeça, tocando o inchaço, e fez uma careta. O homem afastou sua mão da testa com gentileza.

─ Melhor não tocar isso. Dói muito?

Ela acenou.

Ele levantou-se da cama e voltou-se para ela. Pegou o travesseiro que havia usado e colocou sobre o dela, para que se recostasse.

─ É melhor  que descanse. Quer beber alguma coisa. Um chá? ─ de repente, se deu conta que poderia não ser uma boa ideia que ingerisse ou comesse qualquer coisa naquele estado.

Ao invés de responder, ela perguntou:

─ Quem é você?


─ Joshua. Joshua Ketch. Agora descanse.

AJALON - MERGULHO

Joshua colocou as provisões na caminhonete, e antes de entrar, levantou os olhos e deu uma última checada no céu. O espesso cobertor acinzentado encobria o azul celeste, e assim seria por um bom tempo. Aquela não era sua época preferida do ano.

Olhou para o velho relógio da praça — uma referência para os moradores da cidade, presenteado por seu fundador —, e depois para o seu. Surpreendentemente, havia sincronia entre eles, até mesmo nos segundos. Parecia estar, finalmente, fazendo as pazes com o tempo.

Sorriu para si mesmo por seu pensamento ingênuo. Mas nos últimos anos, estar na cadência da vida era-lhe tão incomum, que o fez refletir: não precisar ajustar seus ponteiros sempre que olhava para um relógio era uma novidade. Não sabia como conseguia manter seus compromissos em dia.

O vento começou a soprar mais forte e ele se apressou.

─ Josh, a previsão do tempo é péssima. Não teme ficar isolado naquela cabana no meio do nada, sem saber quanto tempo a nevasca vai durar? ─ abordou Baptiste com seu inconfundível sotaque francês.

─ Não se preocupe. Sinto-me confortável em minha “cabana no meio do nada".

─ Eu não tenho nada contra sua vida de recluso, mas pelo menos durante essa época você poderia ficar na cidade. Ao menos, mais próximo. Essas estradas são muito traiçoeiras, e mais ainda, durante tempestades.

─ Conheço bem esta estrada e consigo chegar em casa antes que a nevasca comece. Se o celular não funcionar, ainda tenho o rádio. Au revoir! — sorriu e tocou levemente a testa com o indicador em uma despedida.

Baptiste ficou olhando até a caminhonete virar na direção oeste da estrada Mount Zion. Então, também foi para casa, a fim de abrigar-se do frio intenso.

Josh pensava nas planilhas que ainda teria que imprimir e analisar. Orçamentos que precisavam ser revistos e pessoal novo que tinha que contratar. Os trabalhadores do ramo da construção eram constituídos por uma população bastante flutuante. Alguns funcionários, que haviam trabalhado com ele em seu último projeto haviam pedido demissão e precisava encontrar outros o quanto antes, para que não houvesse percalços na nova obra que começaria em algumas semanas. Tinha muito trabalho para aqueles dias, e sabia, que, se a meteorologia estivesse correta, provavelmente os ventos acabariam com a rede elétrica. Até que iniciassem os reparos, ele já teria perdido um bom tempo. A dependência da tecnologia tinha suas desvantagens e ele esperava chegar em casa logo e prevenir-se.

Ligou o rádio.

O Departamento de Trânsito da Geórgia informou que algumas vias secundárias da I-75 foram interditadas, em virtude de Projetos em andamento, tais como restauração de pontes e nova sinalização. E devido a uma previsão de nevasca que afetará a Interestadual nas próximas 48 h, é importante que seja evitada...
Aqueles que já estão na estrada devem ficar atentos...
... principalmente as vias que levam ao norte do Estado...

Seria um longo inverno, pensou.

Voos foram cancelados...

A neve começou a cair, porém, o que mais o preocupava, eram os ventos. Rajadas de alta velocidade não eram incomuns com aquele tempo. Não queria ser atingido por nenhuma árvore ou mesmo ter seu carro arrojado pelo ar como se fosse um brinquedo. Devia ter aceitado o conselho de Baptiste, pensou arrependido.

A voz do locutor começou a ser interrompida por chiados. Ele tentou sintonizar em outra estação, mas só conseguiu um ruído agudo de estática, então o desligou. Estava, agora, a dez minutos de sua cabana. Era um tempo relativamente longo, para quem encontrava-se na iminência de uma nevasca. Ao entrar na região de Ajalon, os ventos tornaram-se mais furiosos.

Ouviu um estalido e ao olhar pelo retrovisor, viu uma árvore bloqueando a estrada. Por um triz, pensou. Ficou inquieto.

Então, após uma curva bastante acentuada, ele o viu.

Um veículo havia derrapado, rodado e batido em uma árvore, bloqueando um terço da estrada a sua frente.

Reduziu a velocidade e parou seu carro. Ficou observando a cena por um instante.

Há muito tempo, havia superado o passado, mas por uma razão que não pode compreender seu coração se contorceu em angústia. Apertou o volante com força e manteve os olhos bem abertos, pois se os fechasse teria visões que não queria lembrar. Respirou fundo e controlou-se.

Pegou a lanterna no porta-luvas. Puxou a gola da blusa de lã sobre o nariz, o capuz de sua parka sobre a cabeça e saiu do carro rapidamente.

A rajada de vento cru o atingiu em cheio, fazendo-o enrijecer os músculos da mandíbula. Em sua alta velocidade, se opunha a que ele cobrisse a pequena distância entre os carros. Joshua baixou a cabeça forçando o corpo para frente até que, chegou a porta do condutor. Limpou a superfície do vidro velada pela neve com a blusa e ligou a lanterna. Havia uma pessoa com a cabeça pendida sobre o volante.

O vidro da janela do passageiro havia quebrado com a colisão. Dependendo do tempo em que estivesse ali, já poderia ter desenvolvido uma hipotermia, além do trauma sofrido, ponderou preocupado.

Abriu a porta, e percebeu que era uma mulher, a condutora do carro. Apoiou a cabeça dela no encosto do banco e colocou parte de seu corpo para dentro do carro, esticando a mão para acionar o botão vermelho que desafivelava o cinto. Pegou o corpo imóvel, e carregou-o até a caminhonete, deitando-a sobre o banco traseiro. Entrou no carro, e certificou-se que respirava. Ficou aliviado ao perceber o movimento leve do seu peito. Sem perder mais tempo, partiu, antes que a neve o atolasse, irremediavelmente.

Ao mesmo tempo em que dirigia, tentava entrar em contato com o Resgate pelo celular. Sem sucesso. Pegou o two way radio VHF e chamou por Baptiste.

‘Baptiste, Josh falando, copia?’

Esperou.

Repetiu a tentativa de contato por mais duas vezes sem êxito, e concluiu que ele deveria ter largado o rádio em algum lugar.

Olhou pelo espelho retrovisor e tentou enxergar na mulher alguma reação. Um sinal de vida. Percebeu, então, a imprudência de sua atitude, — completamente arriscada. Focou na estrada. Ao chegar em casa, tomaria as atitudes necessárias.

Deus, permita que eu chegue sem mais incidentes. Ajude-a a resistir.

Quando viu a estreita entrada à esquerda da estrada, que levava em direção a sua cabana, sentiu alívio.

A fumaça ainda saia da chaminé. Ele havia alimentado o fogão à lenha, pela manhã, antes de sair de casa.

Parou o carro, removeu a mulher e levou-a para dentro.

Dispôs suavemente o corpo imóvel sobre a cama.  Tirou as luvas, e colocou os dedos sobre a pele clara do pescoço dela buscando pulsação. Encontrou um ritmo tímido, quase imperceptível sobre seus dedos. Estava fria, os lábios azulados e seu casaco úmido. Se já não estivesse hipotérmica, estava próxima disso. Levantou-se, e alimentou o fogão com mais lenha, e só então, começou a remover o casaco que ela vestia.

Perplexo, percebeu que por baixo do casaco, ela usava um vestido de noiva. Encontrava-se precariamente vestida para enfrentar aquele tempo. Ele puxou-lhe as botas pesadas e só então, removeu seu próprio casaco, botas e enfiou-se debaixo do cobertor, abraçando a desconhecida. Esfregou seus braços por alguns instantes e esperou que aquilo ajudasse pelo menos um pouco.

Um sopro sutilmente doce e balsâmico envolveu seus sentidos. Canela. Era a fragrância que ela exalava. Ficou imóvel por um instante apenas sentindo. Ela respirava suavemente. Seu peito subia e descia. Sentiu alívio. Então, observou o perfil branco e suave e viu o inchaço na testa.

Ela pode ter tido uma concussão, preocupou-se

Saiu de debaixo do cobertor e pegou o celular.

O sinal continuava ruim. Não conseguia completar a ligação.

Vestiu novamente seu casaco e foi até o quarto do andar superior. Abriu uma janela e foi golpeado violentamente por uma lufada de vento gélido. Seu rosto ardeu e ele escondeu-se um pouco para bloquear a massa uivante que o atingiu frontalmente, então fez a ligação. Fez algumas tentativas, mas ou o sinal era fraco ou ausente e não completava sua ligação. O rádio tampouco funcionou.

Tentou lembrar-se de alguma recomendação de primeiros socorros sobre traumas na cabeça. Alguma manobra amadora, que pudesse salvar a vida de alguém em um momento daquele.

Ridículo. Ele não era médico’, racionalizou para lidar com a ansiedade que se avolumava e turbava sua percepção. Precisava esperar até que pudesse realizar algum contato com o resgate ou com Baptiste. Ela tinha pulso e respirava. Esperava que isso, por si só, fosse um bom sinal. Não acreditava que a nevasca duraria mais de 24 horas. Quando os ventos diminuíssem, ele tentaria contato novamente. Até lá, oraria para que ela ficasse viva. Não queria passar pela traumática experiência de lidar com a morte de alguém que estava tão perto de si. Não, de novo.

Voltou para o térreo e contemplou o embrulho humano embaixo de seus cobertores. Uma curiosidade imensa cresceu dentro dele. Teria ela fugido do próprio casamento? Tinha escolhido uma péssima data para se casar. A previsão do tempo para toda aquela semana era desencorajadora. Mas, de uma coisa estava certo, não fora o clima, que a havia impedido de ir adiante com a cerimônia.

Sabia que era de Atlanta, ou pelo menos, vivia lá. Viu a placa do carro. Sua fuga — era essa sua primeira teoria —, trouxe-a longe. Seu descaso em vestir roupas mais adequadas demonstrava a urgência em deixar para trás seus planos. Ou será que havia sido abandonada e esquivava-se da vergonha e da dor? 

Voltou para debaixo do cobertor e abraçou-a novamente. A pele estava morna. Compreendeu que ela não corria mais perigo de ficar hipotérmica. Afastou-se e rompeu o contato, que, de repente, pareceu-lhe íntimo demais. Deu-lhe as costas e focou-se nos elementos que se debatiam furiosamente fora da cabana, e, que por um instante, haviam convergido para colocá-lo ao lado daquela mulher: no vento que bramava assustadoramente, na neve. No carro de Atlanta... ou era Flórida? O acidente...

Sua respiração foi ficando mais regular e profunda, até que adormeceu...