Ao descer do bonde,
ficou parada na calçada por um instante, orientando-se no bairro, buscando os
sinais que indicariam em qual direção deveria ir. Os pés doloridos e calejados
tentavam-na a remover os sapatos e massagear os pés, mas se o fizesse não os
colocaria mais. Encontrou seu ponto de referência e continuou em sua missão,
até que parou diante do palacete em estilo neoclássico da Madalena, onde um
grande portão de ferro separava os transeuntes de seu pórtico. Um sino estava
pendurado na entrada, inalcançável para alguém de pequenas proporções, como se
para selecionar pela altura quem poderia incomodar os habitantes daquele lugar.
Ela deu um pequeno salto e alcançou o badalo, fazendo o bronze soar.
Viu
quando uma cabeça a espiou da lateral da casa. Com passos curtos, cabelos cuidadosamente
arrumados e presos em uma fita negra, um anão vestido com atilamento dirigiu-se
a ela. Olhou-a com altivez e frieza calculada. Não disse uma palavra, fazendo
pouco caso de sua pessoa, como se não merecesse que ele lhe dirigisse a
palavra.
—Fui
enviada pela Sra. Eudóxia Soares de Alcântara e pela Madre do Convento Santo
Ignácio. Fui recomendada para a posição de camareira — falou com firmeza na voz.
Esperava que o nome que acabara de mencionar tivesse soado respeitável o
suficiente e que ele o reconhecesse.
Meio
contrafeito, ele abriu o portão e levou-a até os fundos, de onde entraram na
cozinha.
—Espere
aqui! — ordenou pomposo com sua voz anasalada, abandonando-a com sua ansiedade.
Ela
permaneceu em pé no canto da cozinha, apertando a bolsinha de cetim rosa. Avaliou
admirada as torneiras douradas, o grande balcão de mármore branco, pedra que
ela achava mais apropriada para um cemitério, e a mesa de madeira de lei
lustrosa e escura. Uma janela grande abria-se para o jardim dos fundos de onde
podia ser visto um caramanchão rodeado de rosas amarelas e vermelhas. Cada
elemento, cuidadosamente criado para aquela casa, inspirava conforto desmedido.
Luxo. E ela ainda estava na cozinha.
O
mordomo voltou, e do alto de sua arrogância emprestada, pediu que o seguisse a
outro cômodo, com decoração rococó, onde uma mulher estava sentada em uma
poltrona Luiz XV, próxima à janela.
A
luz rarefeita do sol iluminava a figura encorpada e de seios fartos. A cabeça
pequena e bem feita parecia que havia sido colocada naquele corpo por engano,
enterrada nele, sem pescoço visível. Os cabelos finos e loiros estavam puxados
em um coque distinto, evidenciando a rigidez dos traços de seu rosto,
emoldurados pela renda alta que se erguia da blusa bege. A pele branca era
quase translúcida, deixando entrever pequenos vasos avermelhados nas asas
laterais de seu nariz, pontudo e aristocrático.
Ela
não levantou os olhos da xícara de porcelana, que levava aos lábios. Bebericou
o líquido fumegante lentamente. E no silêncio, quase sepulcral daquele
instante, Maria Gentil ficou observando aquele quadro sofisticado, pintado em
aquarelas cujas cores não tocavam seu mundo. A mulher de atitudes monárquicas agia
como se ela não estivesse ali, ou fosse insignificante demais para que lhe
prestasse atenção. Estava solitária e exilada daquele momento, apenas
assistindo de fora todos os detalhes que se desenrolava diante dela, sem ela.
Ficou
esperando que a personagem daquele quadro, por fim se desse conta de sua
presença e a convidasse para dele fazer parte. Aguardando em silêncio, com a
respiração suspensa, pela palavra que poderia mudar seu destino.
Quando,
finalmente ela fez uma pausa em seu ritual do chá, virou o rosto e fitou Maria.
Os olhos escuros e pequenos a atingiram em cheio. Havia enfado e desprezo
neles.
Maria
sentiu-se desconfortável diante do exame. Apertou sua bolsinha com nervosismo,
como se fosse sua tábua de salvação. Embora houvesse chegado ali com grandes
esperanças, começava a duvidar da possibilidade de ficar com a posição.
—Você
é muito jovem, — a voz aguda, quase esganiçada ecoou na sala. —Tem mesmo
experiência como camareira?
—Sim,
senhora. Trabalhei com a família Van Deelens por oito meses, mas eles voltaram à
Holanda e não pude acompanhá-los devido à saúde frágil de minha mãe que...
A
mulher levantou a mão num gesto autoritário, interrompendo o resto de sua
explicação, deixando claro, que não estava ali para ouvir desabafos. Pegou a
xícara e recomeçou seu ritual, como se apenas o som da voz da moça tivesse
exaurido suas forças. Maria ficou a imaginar quanto tempo mais deveria esperar
para que se dirigisse a ela novamente. Dessa vez, a xícara ainda estava diante
dos lábios da mulher quando ela falou.
Pousou
a xícara no aparador e tocou um sininho para que o mordomo viesse reconduzi-la
à rua.
Maria,
embora intimidada pelas palavras e atitude esnobes da mulher foi rápida ‘Senhora,
posso acompanhá-la. Minha mãe faleceu e preciso do emprego. ’
O
mordomo num instante estava à porta, mas foi dispensado por um gesto impaciente
da mulher.
—Quero
alguém que cuide das minhas necessidades e das de minha filha.
Mal
terminou de falar e uma moça fidalga, de beleza irretocável entrou na sala.
O
semblante da mulher mudou. Se era possível que aquela face soturna se
iluminasse, foi exatamente isso que aconteceu.
—Adelaide,
querida! Que bom que chegou para me ajudar nessa tarefa desgastante de escolher
novos serviçais.
A
moça, uma polegada mais alta que Maria, começou a avaliá-la com minucioso desdém.
A pele clara como a da mãe, era viçosa, e tinha o brilho de uma pérola. Os
cabelos negros, longos e fartos estavam presos em ambas as laterais por
preciosas e lerdas presilhas de tartarugas. Segurava nas mãos um pequeno chapéu
com detalhes em cetim azul. O pescoço longo — e que faltava à mãe — fazia com
que Maria pensasse em um cisne, como os das gravuras de livros que lia. Os
olhos eram escuros e amendoados. Toda a sua aparência era a de uma princesa de
contos de fada, no mundo real. E as palavras que vieram depois acabaram por
confirmar sua magnificência, tão alheia ao mundo mesquinho dos homens.
—Duvido
que ela saiba desempenhar as tarefas, mamãe. Não estou disposta a aturar
serviçais preguiçosas e inábeis. Vamos esperar pela que serviu a família
holandesa.
—Ora,
querida! E não é esta mesmo, que nos foi recomendada por Irmã Gretchen? Fico
até a duvidar.
—Senhora,
posso garantir que trabalho com dedicação. — atreveu-se a emitir um som.
Adelaide
ficou irritada com o atrevimento e intromissão no diálogo que transcorria entre
ela e sua mãe.
—A
senhora é quem decide, mamãe. Mas não aceito ajuda de segunda qualidade. E
assim dizendo, deixou a sala sem se despedir da mãe ou lançar um segundo olhar
a Maria.
—Permaneceremos
por mais alguns dias em Recife, você nos servirá e decidiremos se é capaz de
nos satisfazer. Esses estrangeiros, além de serem pouco exigentes, não sabem
avaliar como se deve. Veremos se realmente é dedicada.
Os
oito meses, durante os quais servira a família holandesa, foi para Maria, um
despertar em um mundo onde só conhecera nos livros. Seus ouvidos foram abertos
para o idioma gutural. Seu paladar se acostumou a novos sabores onde o doce se
misturava ao salgado. A fragrância de Chipre do velho mundo despertou sua
imaginação.
Seus
patrões eram ricos e cultivavam a arte e literatura em seus salões, mas a
despeito de sua vantagem social, não eram desagradáveis. Não a elogiavam, e
tampouco a desprezavam. A senhora da casa havia desejado levar Maria com ela
para a Europa, mas o sentimento de obrigação para com a mãe doente havia falado
mais alto. Seus irmãos pouco ajudavam e a irmã já casada havia se recusado a
auxiliá-la.
Quando
a família partiu, Maria viu o conto de fadas do qual fizera parte por apenas um
instante se esvair. Após quatro meses a mãe faleceu. Maria foi viver de favor
na casa da irmã que vivia a insistir que devia casar-se, pois não poderia
alimentar mais uma boca por muito tempo. Encontrou para ela um pretendente. Era
um ferreiro rude, meio surdo e que estava disposto a aliviar os ombros da irmã
da responsabilidade. Sem falar que, para ele, seria extremamente difícil
encontrar uma moça com sua aparência e que o quisesse que não fosse por grande
necessidade. Os cabelos escuros de Maria destacavam sua pele de porcelana. E
misteriosamente, apesar do berço simples era polida e culta. Um troféu para
exibir.
Maria
começava a ficar sem saída, a irmã a constrangia o tempo todo, ainda que ela a
servisse sem reclamar. Ao descobrir-se grávida, passou a precisar mais de
Maria, mas deu um ultimato. ‘Quando o bebê nascer terá que seguir seu rumo. ’
Maria
procurou Irmã Gretchen no Convento Santo Ignácio e pediu-lhe auxílio. Por anos
sua mãe servira na igreja e levava Maria para ajudá-la. Fora Irmã Gretchen quem
a havia introduzido na casa dos holandeses anos antes. ‘Irmã, preciso de
trabalho’, a voz trêmula sussurrou diante das lápides com nomes de famílias
nobres e de religiosos, que empilhavam-se ao longo da parede monástica até o
teto.
—Calma,
Maria. Tenha fé! Vou procurar uma família para você — disse a idosa com as mãos
escondidas debaixo do hábito escuro. — Já tenho uma em mente. Apenas tenha
paciência.
Maria
deixou o convento mais aliviada, porém, apenas três meses depois, foi que Maria
Gentil acabou entre os ramos da nobre família do Conselheiro Caldas Brandão.