Naquele momento, para qualquer
pessoa era apenas a suposição de uma jovem que em busca de suas origens e
levada por suas emoções, caminhava em uma direção equivocada. Mas, algo em seu
íntimo dizia que Benjamin era seu pai.
Perguntou-se, se aquele
‘assassinato misterioso’ havia sido solucionado. Quem havia destruído uma
vida tão promissora e iluminada como a de Benjamin? Haviam preso o assassino? Pelo que ela pode perceber aquele crime havia abalado
a cidade, e não havia se diluído por completo no tempo, pois a funcionária
ainda lembrava-se do nome e das circunstâncias. Talvez, ela tivesse conhecido
Benjamin. Procurou nos jornais dos dias seguintes ao crime, para verificar se havia mais
alguma referência ao caso. Uma solução, ou ao menos, pistas que levassem ao
assassino. Mas parecia que não. A voz de Benjamin foi calada sem que ninguém
mencionasse mais nada a seu respeito.
Levantou-se da escrivaninha e caminhou devagar até a funcionária. Pediu a Deus que sensibilizasse aquele coração para
que pudesse ter mais informações que a guiassem pelo caminho. Ana parou diante
do balcão. A funcionária estava sentada em uma cadeira por trás de uma mesa.
—Obrigada por sua ajuda, senhora.
A mulher apenas levantou os olhos para
ela, mas depois os baixou para o livro que lia, sem se dar o trabalho de
responder. Ana não desistiu. Sabia que ela não lhe era completamente
indiferente.
—Não quero incomodar, mas existe alguma
informação sobre o motivo do crime?
A mulher novamente levantou seus olhos,
e para alívio de Ana não havia neles hostilidade. Ela caminhou até o balcão e
parou diante de Ana.
—Por que a curiosidade sobre algo que
aconteceu a tantos anos atrás? Provavelmente, você nem era nascida.
—Arte — a palavra saiu fácil de seus
lábios — Amo sua arte. Conheci um pouco dela, e estou trabalhando na Galeria do
centro da cidade agora. Então... comecei a tentar elucidar um pouco este
‘enigma’ chamado Benjamin.
A mulher olhou-a de forma aguda, como se
quisesse averiguar a veracidade de suas palavras e sentimentos, então
respondeu.
—A arte dele tinha este efeito sobre as
pessoas — ela suspirou. — Pelo jeito ainda as afeta. Fico um pouco surpresa que
alguém de sua idade e que não teve contato com ele, tenha buscado conhecê-lo.
Sempre acreditei que ele era uma ‘artista injustiçado’ por ter desaparecido tão
jovem. Sua morte, foi um choque para todos nós, que
o conhecemos. Ele era cheio de vida.
—A senhora o conheceu?
Pela primeira vez uma sorriso se formou
nos lábios daquela mulher. Incrível,
Ana pensou. Ele deveria ter sido um homem e tanto para ter o poder de
transformar um rosto sério e hostil em iluminado, mesmo anos após sua morte.
—Quem não conhecia Benjamin Bachman? Ele
era um ser humano amável e criativo. Dessas pessoas que transformam um
ambiente. Sua arte vinha da alma.
Os olhos de Ana brilharam.
—Mas, não. Nunca encontraram seu
assassino, ainda que tivéssemos suspeitas de quem cometeu o crime. O caso foi
encerrado, e virou o ‘assassinato misterioso’ desta cidade.
—Quem? Quero dizer, de quem vocês
suspeitavam?
—De um ‘todo-poderoso’ desta cidade, que
odiava Benjamin. Mas... isso foi a muito tempo atrás. Não vale mais à pena
tocar nesse assunto.
—Mas... a senhora não acha que deve-se
buscar justiça? Mesmo anos depois...as coisas não podem ser deixadas assim. Não
é bom para ninguém.
—Sim...acho sim. Mas, isso é algo que
você deve dizer para a polícia.
Ela voltou a sua mesa e Ana decidiu não
fazer mais perguntas por hora.
—Obrigada. Muito obrigada por sua ajuda.
Ao sair da Biblioteca ficou imaginando
como continuar por sua procura. Já havia percebido que Benjamin não era
desconhecido na cidade, muito menos ali, na Universidade. As pessoas sabiam.
Sabiam de tudo. Só precisavam de um estímulo para falar, para colocar para fora
a verdade sobre aquele assassinato brutal e sem sentido, aí então, acreditava
que estaria mais próxima de suas origens. Será que o silêncio ainda era uma
imposição do medo? Será que o assassino de Benjamin era tão poderoso, que
ainda, mantinha a todos sob vigilância? Mas, Ana estava mais do que disposta a
cutucá-las para que falassem.
Já sabia até, qual seria seu próximo
passo.
****
Ana caminhava rapidamente pela calçada
da área residencial arborizada e elitizada. Algumas daquelas casas tinham
estilo gótico, que ela considerava um tanto pesado, apesar da exuberância em
seus traços rebuscados. Eram como os castelos de contos de fadas, que eram tão
encantadores quando admirados ao longe, mas que em seu interior guardavam segredos sombrios de conspirações e ganância.
O cheiro fresco que exalava das árvores centenárias
ao longo do passeio encheu seus pulmões. Lá estava ela, novamente, refazendo aquele
trajeto. Chegou diante orfanato e ao invés de parar diante do pesado portão de
ferro, dirigiu-se ao portão que ficava diante do corredor lateral à igreja. Por
anos, aquele pequeno portão, ficara trancado, à semelhança do grande, mas à
medida que os tempos foram se tornando menos densos, as freiras removeram o
pesado cadeado que o trancava, e impedia a entrada de visitantes não
anunciados. Para ser fiel à verdade dos fatos, ela não compreendera aquela
transição, mas quando aconteceu, ela percebeu. Algo havia mudado. A atmosfera
ficou mais leve.
Cobriu a distância que ela já conhecia.
Entrou nos jardins exuberantes e bem cuidados do convento. Viu duas freiras que
se inclinavam, para a poda das roseiras. Levantaram o rosto quando notaram sua
presença e sorriram. Ela não podia negar que, às vezes, sentia saudades daquele
lugar. Seus jardins a acalentavam. Caminhou pela alameda circular que rodeava a
pequena fonte e olhou para a janela em arco que olhava para o jardim e viu uma face contemplativa. Lá está ela, pensou ao ver a Madre, deve ter pressentido problemas. Sorriu
para si mesma.
Ela foi em direção à sala da freira e ao
bater na grande porta de madeira ouviu um ‘entre’.
—Bom dia, Madre!
Ela lançou-lhe um olhar arguto.
—Bom dia, Ana! O que a traz aqui?
—Vim visitá-las, matar um pouco a
saudade. Saber como está de saúde.
—Minha saúde... ela de vez em quando
quer me deixar, mas acho que se arrepende e volta. Tão comum em minha idade.
Mas, e você? Parece que está bem. Seu aspecto está bem melhor que da última vez
em que esteve aqui — ela olhou para a moça esperando alguma confidência.
—Mudei de emprego — Ana sorriu. —Estou
trabalhando na Galeria de Arte. Estou muito feliz com a mudança. É mais
prazeroso e menos cansativo.
A freira sorriu.
—Fico feliz por você. Tem amigos?
Ela deu um suspiro.
—Poucos. Bem poucos. Mas são bons
comigo.
A mulher recostou-se à cadeira e seu
rosto demonstrou satisfação.
—Então, agora diga-me, qual o verdadeiro
motivo de sua visita.
Ana sentiu-se culpada com suas palavras,
mas não fez rodeios.
—Acho que sei quem foi meu pai.
Benjamin. Ele foi assassinado, a senhora sabia disso?
As palavras deveriam sair de forma
natural, mas o peso daquela sentença fez com que sua voz tremesse, e lágrimas
começaram a descer de seus olhos.
—Ele foi assassinado covardemente, e eu
queria entender o porquê. Provavelmente, este foi o motivo de eu ter vindo
parar aqui. Ele era um designer
talentoso — as palavras começaram a sair atropeladas de seus lábios. — Eu tenho
quase certeza que ele é o meu pai. Talvez, eu não tenha sido abandonada. Não
havia com quem me deixar e me largaram aqui. Não sei, provavelmente, ele era
viúvo... mas ele era jovem. Minha mãe... Ele é meu pai, não é? Pode falar.
A mulher ficou olhando para ela com
compaixão. Ficou a imaginar se havia feito bem em espalhar migalhas de pão no
caminho para que ela as seguisse. Não estava surpresa com a descoberta de Ana.
Ela era esperta. Encontraria o que queria, ainda que acabasse na China. Mas,
não sabia se deveria dizer-lhe tudo. Talvez, fosse pesado demais para ela
naquele momento. Ela já tinha o que queria. O pai. Para quê saber tudo?
—É verdade, Ana. Seu pai é Benjamin.
Ela cruzou os braços sobre a pesada
escrivaninha, recostou a cabeça sobre eles e chorou. Não eram mais
lágrimas silenciosas, mas soluços.
A mulher levantou-se, foi até ela e
abraçou-a. Ela acabou por levantar a cabeça. Enxugou as lágrimas com as costas
das mãos, mas estas teimavam em escapar-lhe dos olhos.
A freira colocou um copo de água diante
dela, que ela pegou com mãos trêmulas e engoliu para tentar afastar as lágrimas.
—Quem matou meu pai?
—O caso de seu pai nunca foi
solucionado. A polícia nunca pegou o assassino.
—Isso eu sei! Mas as pessoas sabem quem
foi. Dizem por aí que foi um ricaço dessa cidade. E por isso deve estar por aí,
solto até hoje. Quem foi, Madre? Me diz.
—As pessoas falam muitas coisas, Ana.
Isso não quer dizer nada, minha filha.
—A senhora não vai me dizer, não é? Tudo
bem, eu vou descobrir. Tem muita língua solta por aí. O que eu queria da
senhora era só que me confirmasse o que eu já sabia. E minha mãe?
A freira respirou fundo.
—Eu sinto muito. Sua mãe também não está
mais conosco, foi por isso que foi deixada aqui. Seu pai faleceu e não haviam familiares para cuidar de você. Sinto muito.
—Sabe o nome de minha mãe?
Oh, como ela gostaria de não ter
revelado nada a Ana!
—Ana, eu não posso fazer isso. Sinto
muito. Você ‘descobriu’ de alguma forma uma maneira de chegar a seu pai, e
sinto muito pelas circunstâncias que encontrou, mas espero que entenda, que sou
guardiã de informações que não posso revelar. São situações que não envolvem
apenas você.
—Não sinta pelas circunstâncias que eu
encontrei, Madre. Por mais dolorosas que sejam, eu encontrei um ser humano que
admirei, mesmo antes de ter certeza de quem era. Apesar de saber, que
ele...está morto, estou feliz por saber que ele era meu pai.
Ana olhou ao redor.
—Acho que tenho que ir agora. Preciso ir
para o trabalho. Volto para visitá-las.
—Vou te esperar.
Elas se levantaram e abraçaram-se.
—Ana, vá devagar. Não tem que saber de
tudo de uma vez.
‘Preciso!’, ela pensou.
—Está bem, Madre.
Ana deixou o orfanato aliviada. Agora
não era mais uma suposição. Benjamin Bachman era seu pai.
****
João parou o carro diante do portão, e
quando ia sair do veículo para abri-lo, viu-a passar.
Deixou o carro, abriu o portão e quando
ia chamá-la, calou. Ao invés disso, ficou a imaginar o que ela fazia por ali.
Por outro lado teve a impressão de que aquela cena lhe era familiar. Aquela não
era a primeira vez que Ana passava em sua rua. Esperou que ela se afastasse um
pouco, então a seguiu. Ela virou a esquina e ele se apressou. Alguns minutos
depois estavam andando ao longo do muro alto do Orfanato. Ela passou pelo
primeiro portão e depois entrou pelo segundo, mais estreito, ao lado da Igreja.
Ficou curioso para saber o que ela fazia
ali, e teve vontade de ir atrás, mas aquilo lhe causaria problemas. Subiu os
degraus da Igreja, e esperou no pórtico. Uma série de perguntas começaram a
rondar sua mente. E histórias mirabolantes tomaram forma. Ele queria saber: o
que ela fazia ali? Perguntaria. Pressionaria até que lhe contasse. Então, uma
vozinha o alertou que ela sairia pela tangente. Ana sabia ser escorregadia. Usaria
de outra estratégia. Em breve ele saberia tudo o que ela havia escondido dele.
Ao saber da verdade, ele a confrontaria.
Ela usara aquela história de traição
para terminar o namoro. Não tivera a dignidade de olhar em seu olhos e dizer
que havia apenas se divertido um pouquinho com ele, o havia acusado de algo que
não fizera. Enquanto ele levava a sério os sentimentos que tinha por ela, ela cinicamente
o fazia de idiota. Queria ver o que ela diria quando ele revelasse a ela que conhecia
sua vida e seus segredinhos.
Ouviu quando o ferrolho do portão foi
aberto. Ele recuou para trás de uma pilastra e esperou ela passar, depois foi
atrás.
Então, foi ela, que ele viu aquele dia,
diante de sua casa, pensou quase fascinado com a coincidência. Ela rodopiava
numa dança hipnótica. Ele nunca tinha visto uma expressão tão espontânea de
alegria, em plena calçada pública antes. Se não tivesse certeza agora que era
ela, duvidaria, pois com ele, ela era sempre contida. Porém, naquele dia, não
enxergou os detalhes de seu rosto. Apenas na loja, alguns dias depois, a viu. E
soube que a conhecia, que era familiar. Familiar demais.
Jamais admitiria para ela, que entrara
na exposição de vitrais por tê-la visto subindo os degraus da galeria naquele
dia. Inventou toda a história de seu gosto por vitrais a partir de seus parcos
conhecimentos, embora tivesse que admitir, gostava de alguns deles. Apenas de
alguns.
Vivia entre o dilema de esquecê-la e
construir algo duradouro e confiável com Eduarda — bem mais confortável —, e ir
até ela e obrigá-la para que dissesse por que o havia feito de tolo. Havia
engolido seu orgulho e fora trás dela durante a SEMANA DE ARTE. Praticamente
implorara para que reatassem o relacionamento e ela usou aquela historinha fictícia
de traição como desculpa. Jurou a si mesmo que nunca mais a procuraria, mas
agora, precisava entender aquela mulher, que parecia ter duas personalidades. A
Ana com quem havia namorado e que demonstrara afeto e respeito por ele e esta
outra, que o espicaçara e confundiu.
Gardenia Yud
Gardenia Yud
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