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quinta-feira, 30 de julho de 2015

A CASA - CAPÍTULO 10


Benjamin Bachman era seu pai.

Parada diante do vitral que havia sido idealizado e tocado pelas mãos do pai, ela avaliou cada cor selecionada. Refletiu nos motivos de ele as ter escolhido tão cuidadosamente. O que significariam os lírios para Benjamin, para que houvessem se tornado uma marca registrada de sua arte?

Pensou na casa onde ele havia vivido. Estava abandonada, mas pertenceria a alguém? Queria que o professor soubesse dos vitrais que estavam lá. Era importante que fossem catalogados. Era uma coleção rara. E mais importante, contavam uma história.

Mas antes, precisava voltar lá mais uma vez. Rever a casa com a informação que tinha agora. Senti-la mais uma vez sem outras impressões, que não fossem as de seus pais. 

Na hora do almoço, dirigiu-se ao restaurante onde sempre encontrava Jeanne. O tempo era instável. Abril estava às portas. O cheirinho de chuva a agradava. Viu a casa amarela simples onde eram servidas refeições por uma casal de aposentados. Estava sempre lotado, principalmente pelos funcionário do comércio daquela região. O cheiro da comida caseira bem temperada deu-lhe água na boca. Jeanne já a esperava.

Colocou a sombrinha ao lado da mesa e cumprimentou a amiga. Um senhor aproximou-se, e colocou uma terrina com salada sobre a mesa. Perguntou-lhe a carne de sua escolha e foi até a cozinha.

—Tenho uma novidade para contar-lhe.

Jeanne levava uma garfada a boca, mas parou no meio do caminho e perguntou:

—Boa? — e colocou o alimento na boca.

Ana sorriu.

—Maravilhosa! Encontrei meu pai.

A outra arregalou os olhos e praticamente engoliu a comida de um bocado só.

—Você encontrou seu pai? Falou com ele?

Ana conteve um pouco a animação.

—Eu o encontrei, mas ele está morto.

Pronunciar aquelas palavras ainda a emocionava. Seu almoço foi trazido e colocado diante dela. Não sabia se comia ou falava. Mas como Jeanne estava em suspenso ela resolveu iniciar a narrativa. De vez em quando, enquanto a amiga digeria suas palavras ela levava uma garfada à boca.

—Ana, essa história é incrível. Quase sobrenatural. A forma como os pedaços foram se encaixando. Sua ligação com a galeria, o professor Mauro que te ajudou com um emprego lá e o conhecia. Estou impressionada!

—Eu também...

Ao terminarem a refeição, pagaram, se despediram, e foi cada uma para um lado. A chuva havia estiado e ela caminhou através da praça central. Alguns pombos voavam à medida que ela passava. Quis sentar-se em um banco antes de ir para a galeria, mas estavam todos molhados.  Foi quando o viu. Estava lá parado diante dela. Sua primeira reação foi ir até ele. A segunda, desviar-se, ir em outra direção. E foi o que fez, mas ele foi mais rápido e a alcançou.

—Não podemos nem conversar um instante? —perguntou João.

—Para quê? Já dissemos tudo o que precisava ser dito um ao outro.

—Não é verdade, Ana.

Ela não sabia o que dizer. Queria ficar e contar tudo para ele, inclusive sobre seu pai. Seria tão bom poder partilhar aquela novidade com ele. Mas, como ele a receberia? Em meio a seus devaneios ouviram uma voz de mulher chamá-lo.

—João? Meu filho?

Viraram a cabeça juntos e Ana se deparou com uma mulher que ela acreditou não pertencer aquele cenário. Era uma mulher bonita, mas acima de tudo, elegante. Vestia um tailleur verde musgo de bom corte. Seus sapatos pretos de salto alto eram de grife cara. Os cabelos escuros estavam puxados em um coque elegante. Uma leve maquiagem cobria seu rosto. Irretocável. Uma boneca de luxo em um dia nublado, em meio à praça lamacenta da cidade.

Ana percebeu que havia um carro preto parado bem no contorno da praça, de onde ela parecia ter saído, pois o motorista a olhava entre impaciente e indeciso. Provavelmente esperava que ela voltasse logo, para que ele removesse o carro do local inadequado.

Então os olhos dela a encontraram, e o que veio a seguir estarreceu Ana.

A mulher arregalou os olhos, colocou as mãos sobre a boca e começou a arfar. Parecia ter visto uma fantasma.

—Mãe? O que há? — perguntou ele preocupado e aproximou-se dela para ajudá-la.

Ela não falava, apenas encarava Ana com um olhar assustador. Segurou o pulso de João com uma força descomunal e finalmente declarou:

—Vamos embora daqui! Venha!

—A senhora está bem?

—Não! — gritou com ele, que assustou-se com a reação dela.  

Ele olhou para Ana preocupado e disse:

—Te vejo depois.

Ana o viu acompanhar a mãe até o carro, e depois entrar junto com ela.

Um mal-estar tomou conta de Ana. O olhar daquela mulher em direção à ela a desconcertou. Pousou a mão embaixo da garganta e a esfregou na esperança que aquele sentimento nefasto a deixasse. A mãe de João não havia gostado dela. O pensamento a perturbou mais ainda.

Voltou para a galeria e mergulhou no trabalho.  


*****


—Não quero que veja aquela moça! Nunca mais!

—Por que? — ele perguntou frio.

Ela pareceu confusa por um instante.

  —Porque não gostei dela. Não me pareceu uma pessoa de classe e tem uma coisa nela que... parece maligna. É uma aproveitadora, tenho certeza.

Ele levantou as duas mãos.

—Para. Eu nem sei porque perguntei sua opinião. Você está se ouvindo? — ele deu um sorriso sarcástico. —Claro que está! É a Dona Melissa falando. Acha que ligo para esse seu pensamento mesquinho sobre ‘classe’? Maligna? Nunca! E aproveitadora menos ainda.

—Você é um inocente, meu filho. Ela viu que você tem carro, mora em uma mansão de um bairro luxuoso e decidiu se aproveitar. Então, era por ela que você ia deixar de namorar Eduarda? — debochou. — Está louco!

—Ela não sabe onde moro. Mas isso não importa, se soubesse não mudaria nada. Ela não é ligada nisso.

—Não ouse trazê-la a minha casa.

João a olhou ressentido.

—Esta casa também pertence a meu pai, e tenho certeza que ele não se oporia à presença dela aqui.

—Não ouse me contrariar, João! E outra, você não vai deixar Eduarda por causa dela.

A isso, ele não respondeu, até porque Ana o havia dispensado friamente. Ele deu as costas para a mãe, que aparentemente havia melhorado e ainda a ouviu ameaçá-lo.

—Eu não estou brincando!

Ao ficar sozinha, Melissa foi tomada por pensamentos tortuosos. ‘Não podia ser’. Andava de um lado para o outro na sala e de repente parou diante do grande espelho com moldura de prata. Olhou para a mulher de rosto assustado. Nem parecia com ela.

‘O passado não podia estar de volta.’


*****


Ana segurou-se durante aqueles dias para não dar com a língua nos dentes. Queria contar tudo para o professor Mauro. Mas algo em seu íntimo a fez esperar.

No sábado, ao sair da galeria foi direto para o ponto de ônibus. Estava disposta a passar toda a tarde nos jardins da casa. Queria pensar em Benjamin. Imaginar como havia sido sua mãe. Qual seria seu nome? Sabia que se parecia com ela. Com a mulher dos vitrais. Até mesmo o professor Mauro vira a semelhança através das fotos antigas, sem ter conhecimento do vínculo que existia entre elas.

O ônibus parou e ela entrou. Trazia à mão um pacote de papel onde continha um sanduíche de queijo e presunto e uma garrafa com suco. Comeria seu almoço sentada dentro da estufa encantada construída por seu pai. Ah, se pudesse! Dormiria lá! Passaria dias a fio naquele lugar se reencontrando.

Chegaram ao ponto onde ela deveria descer.

Ela caminhou devagar pelas ruas até chegar a sua. Algumas crianças pulavam amarelinha na calçada. Uma mulher baixa e rechonchuda estava debruçada em um muro baixo assistindo e vigiando a tudo. Ana preocupou-se pois ela poderia estranhar ao vê-la entrar na casa abandonada. Já começou a imaginar uma desculpa. Pelo menos não viu a mulher que havia dito à ela que a casa era amaldiçoada. Pensou um pouco melhor e decidiu. Não precisava de desculpas. A casa era de seu pai.

Ao chegar diante do portão da casa do final da rua percebeu que alguém havia removido a fita branca. Havia sido as crianças? Caminhou devagar pela alameda frontal e foi arrodeando a casa até chegar aos jardins. Num momento fora do tempo, ela viu e foi vista. Uma mulher de rosto enrugado, cabelos brancos e vestido preto simples deu um sorriso quase tímido. Era um pouco encurvada. Levantou os braços cansados para ela.

—Eu sabia que viria.


****


Quando viu o ônibus parar e Ana descer, João esperou um momento. Estacionou o carro e desceu. Atravessou até a calçada onde ela caminhava lentamente e seguiu-a.  Não morava por ali, disso ele sabia. Ultimamente ela andava por lugares onde não a imaginava. De repente ficou temeroso do que poderia ver. Será que a veria nos braços de outro homem?

Viu-a virar a esquina e adiantou o passo indeciso. Manteve uma distância segura do que poderia ver. A brisa soprava sobre os cabelos dela. Quando passou por uma árvore levantou a mão para alcançar um galho mais baixo e puxou uma folha. Apreciava o caminho. Ficou a imaginar se sua leveza se devia a um encontro ansiado. Com outro.

Novamente virou a esquina.

E ele mais uma vez apressou-se.

Foi então que uma sensação de dejà vu o atingiu. Conhecia aquela rua. Aquelas árvores que lançavam longas sombras sobre as calçadas e mantinham uma postura vigilante em frente de cada uma das casas lhe causavam uma sensação de familiaridade. O cheiro de verde fresco misturado a deserto — definição tão paradoxal de sua percepção—, que emanavam das Cycas lhe despertaram uma nostalgia agridoce. As crianças que pulavam amarelinha davam risadas entusiasmadas e ele lembrou-se que havia um dia sido uma criança, mas não tão feliz. Por quê? A mulher debruçada sobre o muro riu para ele, cumprimentou-o e ele respondeu. 

Viu Ana entrar na casa. A casa. Aquela casa logo no final da rua. Seu coração disparou. Sentiu-se inseguro, com medo até. Olhou para trás. Encontrou o olhar da mulher sorridente. Sua respiração estava rápida e ele pensou em correr de volta para seu carro. Precisava de um abrigo que o protegesse da súbita sensação de perigo. Uma das crianças o olhou como se percebesse que havia algo de errado com ele. Controlou a respiração e decidiu enfrentar o que estava adiante. Caminhou para algo que ele conhecia, mas não lembrava o que era.

Diante do portão suas pernas ficaram paralisadas.

Não podia ir adiante com aquilo. Não queria.

‘Seu rosto olhando através da grade do portão para a mulher com um longo vestido azul que ondulava a cada passo que dava. Os cabelos longos e claros brilhavam sob à luz vespertina de um sábado... tão longe... Caminhava em sua direção com um sorriso nos lábios. Havia tanta doçura em seu olhos. Sua mão estava sobre o ventre proeminente.’

Era tão vívido para ele. Era apenas uma criança, mas já correra até ali, contente por escapar de sua casa e esperara com o rosto colado naquelas grades até que ela os viesse receber.

‘Não toque, João!’, ele removeu a mão pequena da barriga que acariciava, embaraçado por ter feito algo vergonhoso. ‘Não seja tão dramática, Melissa, ele só está curioso. Há um bebê morando aqui, e logo vai sair para te conhecer.’  

As batidas enlouquecidas de seu coração o instigavam a correr dali. Nunca mais queria voltar. Nunca mais queria ver a mulher que lhe inspirara tanta doçura e agora lhe trazia dor e medo. Não podia nunca mais ver Ana. Aquele era um lugar de dor.

O homem de terno preto levou o dedo sob os lábios de linhas duras, decretando sua lei de silêncio. Paralisando sua alma.’


João levou a mão aos lábios e fechou os olhos. Não podia ser. Aquilo não havia acontecido de verdade. Aquelas pessoas não existiam. Aquela casa não existia. Era tudo uma invenção de sua mente.




quinta-feira, 2 de julho de 2015

A CASA - CAPÍTULO 9

Naquele momento, para qualquer pessoa era apenas a suposição de uma jovem que em busca de suas origens e levada por suas emoções, caminhava em uma direção equivocada. Mas, algo em seu íntimo dizia que Benjamin era seu pai.

Perguntou-se, se aquele ‘assassinato misterioso’ havia sido solucionado. Quem havia destruído uma vida tão promissora e iluminada como a de Benjamin? Haviam preso o assassino? Pelo que ela pode perceber aquele crime havia abalado a cidade, e não havia se diluído por completo no tempo, pois a funcionária ainda lembrava-se do nome e das circunstâncias. Talvez, ela tivesse conhecido Benjamin. Procurou nos jornais dos dias seguintes ao crime, para verificar se havia mais alguma referência ao caso. Uma solução, ou ao menos, pistas que levassem ao assassino. Mas parecia que não. A voz de Benjamin foi calada sem que ninguém mencionasse mais nada a seu respeito.

Levantou-se da escrivaninha e caminhou devagar até a funcionária. Pediu a Deus que sensibilizasse aquele coração para que pudesse ter mais informações que a guiassem pelo caminho. Ana parou diante do balcão. A funcionária estava sentada em uma cadeira por trás de uma mesa.

—Obrigada por sua ajuda, senhora.

A mulher apenas levantou os olhos para ela, mas depois os baixou para o livro que lia, sem se dar o trabalho de responder. Ana não desistiu. Sabia que ela não lhe era completamente indiferente.

—Não quero incomodar, mas existe alguma informação sobre o motivo do crime?

A mulher novamente levantou seus olhos, e para alívio de Ana não havia neles hostilidade. Ela caminhou até o balcão e parou diante de Ana.

—Por que a curiosidade sobre algo que aconteceu a tantos anos atrás? Provavelmente, você nem era nascida.

—Arte — a palavra saiu fácil de seus lábios — Amo sua arte. Conheci um pouco dela, e estou trabalhando na Galeria do centro da cidade agora. Então... comecei a tentar elucidar um pouco este ‘enigma’ chamado Benjamin.

A mulher olhou-a de forma aguda, como se quisesse averiguar a veracidade de suas palavras e sentimentos, então respondeu.

—A arte dele tinha este efeito sobre as pessoas — ela suspirou. — Pelo jeito ainda as afeta. Fico um pouco surpresa que alguém de sua idade e que não teve contato com ele, tenha buscado conhecê-lo. Sempre acreditei que ele era uma ‘artista injustiçado’ por ter desaparecido tão jovem. Sua morte, foi um choque para todos nós, que o conhecemos. Ele era cheio de vida.

—A senhora o conheceu?

Pela primeira vez uma sorriso se formou nos lábios daquela mulher. Incrível, Ana pensou. Ele deveria ter sido um homem e tanto para ter o poder de transformar um rosto sério e hostil em iluminado, mesmo anos após sua morte.

—Quem não conhecia Benjamin Bachman? Ele era um ser humano amável e criativo. Dessas pessoas que transformam um ambiente. Sua arte vinha da alma. 

Os olhos de Ana brilharam.

—Mas, não. Nunca encontraram seu assassino, ainda que tivéssemos suspeitas de quem  cometeu o crime. O caso foi encerrado, e virou o ‘assassinato misterioso’ desta cidade.

—Quem? Quero dizer, de quem vocês suspeitavam?

—De um ‘todo-poderoso’ desta cidade, que odiava Benjamin. Mas... isso foi a muito tempo atrás. Não vale mais à pena tocar nesse assunto.

—Mas... a senhora não acha que deve-se buscar justiça? Mesmo anos depois...as coisas não podem ser deixadas assim. Não é bom para ninguém.

—Sim...acho sim. Mas, isso é algo que você deve dizer para a polícia.

Ela voltou a sua mesa e Ana decidiu não fazer mais perguntas por hora.

—Obrigada. Muito obrigada por sua ajuda.

Ao sair da Biblioteca ficou imaginando como continuar por sua procura. Já havia percebido que Benjamin não era desconhecido na cidade, muito menos ali, na Universidade. As pessoas sabiam. Sabiam de tudo. Só precisavam de um estímulo para falar, para colocar para fora a verdade sobre aquele assassinato brutal e sem sentido, aí então, acreditava que estaria mais próxima de suas origens. Será que o silêncio ainda era uma imposição do medo? Será que o assassino de Benjamin era tão poderoso, que ainda, mantinha a todos sob vigilância? Mas, Ana estava mais do que disposta a cutucá-las para que falassem.

Já sabia até, qual seria seu próximo passo.


****


Ana caminhava rapidamente pela calçada da área residencial arborizada e elitizada. Algumas daquelas casas tinham estilo gótico, que ela considerava um tanto pesado, apesar da exuberância em seus traços rebuscados. Eram como os castelos de contos de fadas, que eram tão encantadores quando admirados ao longe, mas que em seu interior guardavam segredos sombrios de conspirações e ganância.

O cheiro fresco que exalava das árvores centenárias ao longo do passeio encheu seus pulmões. Lá estava ela, novamente, refazendo aquele trajeto. Chegou diante orfanato e ao invés de parar diante do pesado portão de ferro, dirigiu-se ao portão que ficava diante do corredor lateral à igreja. Por anos, aquele pequeno portão, ficara trancado, à semelhança do grande, mas à medida que os tempos foram se tornando menos densos, as freiras removeram o pesado cadeado que o trancava, e impedia a entrada de visitantes não anunciados. Para ser fiel à verdade dos fatos, ela não compreendera aquela transição, mas quando aconteceu, ela percebeu. Algo havia mudado. A atmosfera ficou mais leve.

Cobriu a distância que ela já conhecia. Entrou nos jardins exuberantes e bem cuidados do convento. Viu duas freiras que se inclinavam, para a poda das roseiras. Levantaram o rosto quando notaram sua presença e sorriram. Ela não podia negar que, às vezes, sentia saudades daquele lugar. Seus jardins a acalentavam. Caminhou pela alameda circular que rodeava a pequena fonte e olhou para a janela em arco que olhava para o jardim e viu uma face contemplativa. Lá está ela, pensou ao ver a Madre, deve ter pressentido problemas. Sorriu para si mesma.

Ela foi em direção à sala da freira e ao bater na grande porta de madeira ouviu um ‘entre’.

—Bom dia, Madre!

Ela lançou-lhe um olhar arguto.

—Bom dia, Ana! O que a traz aqui?

—Vim visitá-las, matar um pouco a saudade. Saber como está de saúde.

—Minha saúde... ela de vez em quando quer me deixar, mas acho que se arrepende e volta. Tão comum em minha idade. Mas, e você? Parece que está bem. Seu aspecto está bem melhor que da última vez em que esteve aqui — ela olhou para a moça esperando alguma confidência.

—Mudei de emprego — Ana sorriu. —Estou trabalhando na Galeria de Arte. Estou muito feliz com a mudança. É mais prazeroso e menos cansativo.

A freira sorriu.

—Fico feliz por você. Tem amigos?

Ela deu um suspiro.

—Poucos. Bem poucos. Mas são bons comigo.

A mulher recostou-se à cadeira e seu rosto demonstrou satisfação.

—Então, agora diga-me, qual o verdadeiro motivo de sua visita.

Ana sentiu-se culpada com suas palavras, mas não fez rodeios.

—Acho que sei quem foi meu pai. Benjamin. Ele foi assassinado, a senhora sabia disso?

As palavras deveriam sair de forma natural, mas o peso daquela sentença fez com que sua voz tremesse, e lágrimas começaram a descer de seus olhos.

—Ele foi assassinado covardemente, e eu queria entender o porquê. Provavelmente, este foi o motivo de eu ter vindo parar aqui. Ele era um designer talentoso — as palavras começaram a sair atropeladas de seus lábios. — Eu tenho quase certeza que ele é o meu pai. Talvez, eu não tenha sido abandonada. Não havia com quem me deixar e me largaram aqui. Não sei, provavelmente, ele era viúvo... mas ele era jovem. Minha mãe... Ele é meu pai, não é? Pode falar.

A mulher ficou olhando para ela com compaixão. Ficou a imaginar se havia feito bem em espalhar migalhas de pão no caminho para que ela as seguisse. Não estava surpresa com a descoberta de Ana. Ela era esperta. Encontraria o que queria, ainda que acabasse na China. Mas, não sabia se deveria dizer-lhe tudo. Talvez, fosse pesado demais para ela naquele momento. Ela já tinha o que queria. O pai. Para quê saber tudo?

—É verdade, Ana. Seu pai é Benjamin.

Ela cruzou os braços sobre a pesada escrivaninha, recostou a cabeça sobre eles e chorou. Não eram mais lágrimas silenciosas, mas soluços.

A mulher levantou-se, foi até ela e abraçou-a. Ela acabou por levantar a cabeça. Enxugou as lágrimas com as costas das mãos, mas estas teimavam em escapar-lhe dos olhos.

A freira colocou um copo de água diante dela, que ela pegou com mãos trêmulas e engoliu para tentar afastar as lágrimas.

—Quem matou meu pai?

—O caso de seu pai nunca foi solucionado. A polícia nunca pegou o assassino.

—Isso eu sei! Mas as pessoas sabem quem foi. Dizem por aí que foi um ricaço dessa cidade. E por isso deve estar por aí, solto até hoje. Quem foi, Madre? Me diz.

—As pessoas falam muitas coisas, Ana. Isso não quer dizer nada, minha filha.

—A senhora não vai me dizer, não é? Tudo bem, eu vou descobrir. Tem muita língua solta por aí. O que eu queria da senhora era só que me confirmasse o que eu já sabia. E minha mãe?

A freira respirou fundo.

—Eu sinto muito. Sua mãe também não está mais conosco, foi por isso que foi deixada aqui. Seu pai faleceu e não haviam familiares para cuidar de você. Sinto muito.

—Sabe o nome de minha mãe?

Oh, como ela gostaria de não ter revelado nada a Ana!

—Ana, eu não posso fazer isso. Sinto muito. Você ‘descobriu’ de alguma forma uma maneira de chegar a seu pai, e sinto muito pelas circunstâncias que encontrou, mas espero que entenda, que sou guardiã de informações que não posso revelar. São situações que não envolvem apenas você.

—Não sinta pelas circunstâncias que eu encontrei, Madre. Por mais dolorosas que sejam, eu encontrei um ser humano que admirei, mesmo antes de ter certeza de quem era. Apesar de saber, que ele...está morto, estou feliz por saber que ele era meu pai.

Ana olhou ao redor.

—Acho que tenho que ir agora. Preciso ir para o trabalho. Volto para visitá-las.

—Vou te esperar.

Elas se levantaram e abraçaram-se.

—Ana, vá devagar. Não tem que saber de tudo de uma vez.

‘Preciso!’, ela pensou.

—Está bem, Madre.

Ana deixou o orfanato aliviada. Agora não era mais uma suposição. Benjamin Bachman era seu pai.



****


João parou o carro diante do portão, e quando ia sair do veículo para abri-lo, viu-a passar.

Deixou o carro, abriu o portão e quando ia chamá-la, calou. Ao invés disso, ficou a imaginar o que ela fazia por ali. Por outro lado teve a impressão de que aquela cena lhe era familiar. Aquela não era a primeira vez que Ana passava em sua rua. Esperou que ela se afastasse um pouco, então a seguiu. Ela virou a esquina e ele se apressou. Alguns minutos depois estavam andando ao longo do muro alto do Orfanato. Ela passou pelo primeiro portão e depois entrou pelo segundo, mais estreito, ao lado da Igreja.

Ficou curioso para saber o que ela fazia ali, e teve vontade de ir atrás, mas aquilo lhe causaria problemas. Subiu os degraus da Igreja, e esperou no pórtico. Uma série de perguntas começaram a rondar sua mente. E histórias mirabolantes tomaram forma. Ele queria saber: o que ela fazia ali? Perguntaria. Pressionaria até que lhe contasse. Então, uma vozinha o alertou que ela sairia pela tangente. Ana sabia ser escorregadia. Usaria de outra estratégia. Em breve ele saberia tudo o que ela havia escondido dele. Ao saber da verdade, ele a confrontaria.

Ela usara aquela história de traição para terminar o namoro. Não tivera a dignidade de olhar em seu olhos e dizer que havia apenas se divertido um pouquinho com ele, o havia acusado de algo que não fizera. Enquanto ele levava a sério os sentimentos que tinha por ela, ela cinicamente o fazia de idiota. Queria ver o que ela diria quando ele revelasse a ela que conhecia sua vida e seus segredinhos.

Ouviu quando o ferrolho do portão foi aberto. Ele recuou para trás de uma pilastra e esperou ela passar, depois foi atrás.

Então, foi ela, que ele viu aquele dia, diante de sua casa, pensou quase fascinado com a coincidência. Ela rodopiava numa dança hipnótica. Ele nunca tinha visto uma expressão tão espontânea de alegria, em plena calçada pública antes. Se não tivesse certeza agora que era ela, duvidaria, pois com ele, ela era sempre contida. Porém, naquele dia, não enxergou os detalhes de seu rosto. Apenas na loja, alguns dias depois, a viu. E soube que a conhecia, que era familiar. Familiar demais.

Jamais admitiria para ela, que entrara na exposição de vitrais por tê-la visto subindo os degraus da galeria naquele dia. Inventou toda a história de seu gosto por vitrais a partir de seus parcos conhecimentos, embora tivesse que admitir, gostava de alguns deles. Apenas de alguns.


Vivia entre o dilema de esquecê-la e construir algo duradouro e confiável com Eduarda — bem mais confortável —, e ir até ela e obrigá-la para que dissesse por que o havia feito de tolo. Havia engolido seu orgulho e fora trás dela durante a SEMANA DE ARTE. Praticamente implorara para que reatassem o relacionamento e ela usou aquela historinha fictícia de traição como desculpa. Jurou a si mesmo que nunca mais a procuraria, mas agora, precisava entender aquela mulher, que parecia ter duas personalidades. A Ana com quem havia namorado e que demonstrara afeto e respeito por ele e esta outra, que o espicaçara e confundiu.


Gardenia Yud