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quinta-feira, 2 de julho de 2015

A CASA - CAPÍTULO 9

Naquele momento, para qualquer pessoa era apenas a suposição de uma jovem que em busca de suas origens e levada por suas emoções, caminhava em uma direção equivocada. Mas, algo em seu íntimo dizia que Benjamin era seu pai.

Perguntou-se, se aquele ‘assassinato misterioso’ havia sido solucionado. Quem havia destruído uma vida tão promissora e iluminada como a de Benjamin? Haviam preso o assassino? Pelo que ela pode perceber aquele crime havia abalado a cidade, e não havia se diluído por completo no tempo, pois a funcionária ainda lembrava-se do nome e das circunstâncias. Talvez, ela tivesse conhecido Benjamin. Procurou nos jornais dos dias seguintes ao crime, para verificar se havia mais alguma referência ao caso. Uma solução, ou ao menos, pistas que levassem ao assassino. Mas parecia que não. A voz de Benjamin foi calada sem que ninguém mencionasse mais nada a seu respeito.

Levantou-se da escrivaninha e caminhou devagar até a funcionária. Pediu a Deus que sensibilizasse aquele coração para que pudesse ter mais informações que a guiassem pelo caminho. Ana parou diante do balcão. A funcionária estava sentada em uma cadeira por trás de uma mesa.

—Obrigada por sua ajuda, senhora.

A mulher apenas levantou os olhos para ela, mas depois os baixou para o livro que lia, sem se dar o trabalho de responder. Ana não desistiu. Sabia que ela não lhe era completamente indiferente.

—Não quero incomodar, mas existe alguma informação sobre o motivo do crime?

A mulher novamente levantou seus olhos, e para alívio de Ana não havia neles hostilidade. Ela caminhou até o balcão e parou diante de Ana.

—Por que a curiosidade sobre algo que aconteceu a tantos anos atrás? Provavelmente, você nem era nascida.

—Arte — a palavra saiu fácil de seus lábios — Amo sua arte. Conheci um pouco dela, e estou trabalhando na Galeria do centro da cidade agora. Então... comecei a tentar elucidar um pouco este ‘enigma’ chamado Benjamin.

A mulher olhou-a de forma aguda, como se quisesse averiguar a veracidade de suas palavras e sentimentos, então respondeu.

—A arte dele tinha este efeito sobre as pessoas — ela suspirou. — Pelo jeito ainda as afeta. Fico um pouco surpresa que alguém de sua idade e que não teve contato com ele, tenha buscado conhecê-lo. Sempre acreditei que ele era uma ‘artista injustiçado’ por ter desaparecido tão jovem. Sua morte, foi um choque para todos nós, que o conhecemos. Ele era cheio de vida.

—A senhora o conheceu?

Pela primeira vez uma sorriso se formou nos lábios daquela mulher. Incrível, Ana pensou. Ele deveria ter sido um homem e tanto para ter o poder de transformar um rosto sério e hostil em iluminado, mesmo anos após sua morte.

—Quem não conhecia Benjamin Bachman? Ele era um ser humano amável e criativo. Dessas pessoas que transformam um ambiente. Sua arte vinha da alma. 

Os olhos de Ana brilharam.

—Mas, não. Nunca encontraram seu assassino, ainda que tivéssemos suspeitas de quem  cometeu o crime. O caso foi encerrado, e virou o ‘assassinato misterioso’ desta cidade.

—Quem? Quero dizer, de quem vocês suspeitavam?

—De um ‘todo-poderoso’ desta cidade, que odiava Benjamin. Mas... isso foi a muito tempo atrás. Não vale mais à pena tocar nesse assunto.

—Mas... a senhora não acha que deve-se buscar justiça? Mesmo anos depois...as coisas não podem ser deixadas assim. Não é bom para ninguém.

—Sim...acho sim. Mas, isso é algo que você deve dizer para a polícia.

Ela voltou a sua mesa e Ana decidiu não fazer mais perguntas por hora.

—Obrigada. Muito obrigada por sua ajuda.

Ao sair da Biblioteca ficou imaginando como continuar por sua procura. Já havia percebido que Benjamin não era desconhecido na cidade, muito menos ali, na Universidade. As pessoas sabiam. Sabiam de tudo. Só precisavam de um estímulo para falar, para colocar para fora a verdade sobre aquele assassinato brutal e sem sentido, aí então, acreditava que estaria mais próxima de suas origens. Será que o silêncio ainda era uma imposição do medo? Será que o assassino de Benjamin era tão poderoso, que ainda, mantinha a todos sob vigilância? Mas, Ana estava mais do que disposta a cutucá-las para que falassem.

Já sabia até, qual seria seu próximo passo.


****


Ana caminhava rapidamente pela calçada da área residencial arborizada e elitizada. Algumas daquelas casas tinham estilo gótico, que ela considerava um tanto pesado, apesar da exuberância em seus traços rebuscados. Eram como os castelos de contos de fadas, que eram tão encantadores quando admirados ao longe, mas que em seu interior guardavam segredos sombrios de conspirações e ganância.

O cheiro fresco que exalava das árvores centenárias ao longo do passeio encheu seus pulmões. Lá estava ela, novamente, refazendo aquele trajeto. Chegou diante orfanato e ao invés de parar diante do pesado portão de ferro, dirigiu-se ao portão que ficava diante do corredor lateral à igreja. Por anos, aquele pequeno portão, ficara trancado, à semelhança do grande, mas à medida que os tempos foram se tornando menos densos, as freiras removeram o pesado cadeado que o trancava, e impedia a entrada de visitantes não anunciados. Para ser fiel à verdade dos fatos, ela não compreendera aquela transição, mas quando aconteceu, ela percebeu. Algo havia mudado. A atmosfera ficou mais leve.

Cobriu a distância que ela já conhecia. Entrou nos jardins exuberantes e bem cuidados do convento. Viu duas freiras que se inclinavam, para a poda das roseiras. Levantaram o rosto quando notaram sua presença e sorriram. Ela não podia negar que, às vezes, sentia saudades daquele lugar. Seus jardins a acalentavam. Caminhou pela alameda circular que rodeava a pequena fonte e olhou para a janela em arco que olhava para o jardim e viu uma face contemplativa. Lá está ela, pensou ao ver a Madre, deve ter pressentido problemas. Sorriu para si mesma.

Ela foi em direção à sala da freira e ao bater na grande porta de madeira ouviu um ‘entre’.

—Bom dia, Madre!

Ela lançou-lhe um olhar arguto.

—Bom dia, Ana! O que a traz aqui?

—Vim visitá-las, matar um pouco a saudade. Saber como está de saúde.

—Minha saúde... ela de vez em quando quer me deixar, mas acho que se arrepende e volta. Tão comum em minha idade. Mas, e você? Parece que está bem. Seu aspecto está bem melhor que da última vez em que esteve aqui — ela olhou para a moça esperando alguma confidência.

—Mudei de emprego — Ana sorriu. —Estou trabalhando na Galeria de Arte. Estou muito feliz com a mudança. É mais prazeroso e menos cansativo.

A freira sorriu.

—Fico feliz por você. Tem amigos?

Ela deu um suspiro.

—Poucos. Bem poucos. Mas são bons comigo.

A mulher recostou-se à cadeira e seu rosto demonstrou satisfação.

—Então, agora diga-me, qual o verdadeiro motivo de sua visita.

Ana sentiu-se culpada com suas palavras, mas não fez rodeios.

—Acho que sei quem foi meu pai. Benjamin. Ele foi assassinado, a senhora sabia disso?

As palavras deveriam sair de forma natural, mas o peso daquela sentença fez com que sua voz tremesse, e lágrimas começaram a descer de seus olhos.

—Ele foi assassinado covardemente, e eu queria entender o porquê. Provavelmente, este foi o motivo de eu ter vindo parar aqui. Ele era um designer talentoso — as palavras começaram a sair atropeladas de seus lábios. — Eu tenho quase certeza que ele é o meu pai. Talvez, eu não tenha sido abandonada. Não havia com quem me deixar e me largaram aqui. Não sei, provavelmente, ele era viúvo... mas ele era jovem. Minha mãe... Ele é meu pai, não é? Pode falar.

A mulher ficou olhando para ela com compaixão. Ficou a imaginar se havia feito bem em espalhar migalhas de pão no caminho para que ela as seguisse. Não estava surpresa com a descoberta de Ana. Ela era esperta. Encontraria o que queria, ainda que acabasse na China. Mas, não sabia se deveria dizer-lhe tudo. Talvez, fosse pesado demais para ela naquele momento. Ela já tinha o que queria. O pai. Para quê saber tudo?

—É verdade, Ana. Seu pai é Benjamin.

Ela cruzou os braços sobre a pesada escrivaninha, recostou a cabeça sobre eles e chorou. Não eram mais lágrimas silenciosas, mas soluços.

A mulher levantou-se, foi até ela e abraçou-a. Ela acabou por levantar a cabeça. Enxugou as lágrimas com as costas das mãos, mas estas teimavam em escapar-lhe dos olhos.

A freira colocou um copo de água diante dela, que ela pegou com mãos trêmulas e engoliu para tentar afastar as lágrimas.

—Quem matou meu pai?

—O caso de seu pai nunca foi solucionado. A polícia nunca pegou o assassino.

—Isso eu sei! Mas as pessoas sabem quem foi. Dizem por aí que foi um ricaço dessa cidade. E por isso deve estar por aí, solto até hoje. Quem foi, Madre? Me diz.

—As pessoas falam muitas coisas, Ana. Isso não quer dizer nada, minha filha.

—A senhora não vai me dizer, não é? Tudo bem, eu vou descobrir. Tem muita língua solta por aí. O que eu queria da senhora era só que me confirmasse o que eu já sabia. E minha mãe?

A freira respirou fundo.

—Eu sinto muito. Sua mãe também não está mais conosco, foi por isso que foi deixada aqui. Seu pai faleceu e não haviam familiares para cuidar de você. Sinto muito.

—Sabe o nome de minha mãe?

Oh, como ela gostaria de não ter revelado nada a Ana!

—Ana, eu não posso fazer isso. Sinto muito. Você ‘descobriu’ de alguma forma uma maneira de chegar a seu pai, e sinto muito pelas circunstâncias que encontrou, mas espero que entenda, que sou guardiã de informações que não posso revelar. São situações que não envolvem apenas você.

—Não sinta pelas circunstâncias que eu encontrei, Madre. Por mais dolorosas que sejam, eu encontrei um ser humano que admirei, mesmo antes de ter certeza de quem era. Apesar de saber, que ele...está morto, estou feliz por saber que ele era meu pai.

Ana olhou ao redor.

—Acho que tenho que ir agora. Preciso ir para o trabalho. Volto para visitá-las.

—Vou te esperar.

Elas se levantaram e abraçaram-se.

—Ana, vá devagar. Não tem que saber de tudo de uma vez.

‘Preciso!’, ela pensou.

—Está bem, Madre.

Ana deixou o orfanato aliviada. Agora não era mais uma suposição. Benjamin Bachman era seu pai.



****


João parou o carro diante do portão, e quando ia sair do veículo para abri-lo, viu-a passar.

Deixou o carro, abriu o portão e quando ia chamá-la, calou. Ao invés disso, ficou a imaginar o que ela fazia por ali. Por outro lado teve a impressão de que aquela cena lhe era familiar. Aquela não era a primeira vez que Ana passava em sua rua. Esperou que ela se afastasse um pouco, então a seguiu. Ela virou a esquina e ele se apressou. Alguns minutos depois estavam andando ao longo do muro alto do Orfanato. Ela passou pelo primeiro portão e depois entrou pelo segundo, mais estreito, ao lado da Igreja.

Ficou curioso para saber o que ela fazia ali, e teve vontade de ir atrás, mas aquilo lhe causaria problemas. Subiu os degraus da Igreja, e esperou no pórtico. Uma série de perguntas começaram a rondar sua mente. E histórias mirabolantes tomaram forma. Ele queria saber: o que ela fazia ali? Perguntaria. Pressionaria até que lhe contasse. Então, uma vozinha o alertou que ela sairia pela tangente. Ana sabia ser escorregadia. Usaria de outra estratégia. Em breve ele saberia tudo o que ela havia escondido dele. Ao saber da verdade, ele a confrontaria.

Ela usara aquela história de traição para terminar o namoro. Não tivera a dignidade de olhar em seu olhos e dizer que havia apenas se divertido um pouquinho com ele, o havia acusado de algo que não fizera. Enquanto ele levava a sério os sentimentos que tinha por ela, ela cinicamente o fazia de idiota. Queria ver o que ela diria quando ele revelasse a ela que conhecia sua vida e seus segredinhos.

Ouviu quando o ferrolho do portão foi aberto. Ele recuou para trás de uma pilastra e esperou ela passar, depois foi atrás.

Então, foi ela, que ele viu aquele dia, diante de sua casa, pensou quase fascinado com a coincidência. Ela rodopiava numa dança hipnótica. Ele nunca tinha visto uma expressão tão espontânea de alegria, em plena calçada pública antes. Se não tivesse certeza agora que era ela, duvidaria, pois com ele, ela era sempre contida. Porém, naquele dia, não enxergou os detalhes de seu rosto. Apenas na loja, alguns dias depois, a viu. E soube que a conhecia, que era familiar. Familiar demais.

Jamais admitiria para ela, que entrara na exposição de vitrais por tê-la visto subindo os degraus da galeria naquele dia. Inventou toda a história de seu gosto por vitrais a partir de seus parcos conhecimentos, embora tivesse que admitir, gostava de alguns deles. Apenas de alguns.


Vivia entre o dilema de esquecê-la e construir algo duradouro e confiável com Eduarda — bem mais confortável —, e ir até ela e obrigá-la para que dissesse por que o havia feito de tolo. Havia engolido seu orgulho e fora trás dela durante a SEMANA DE ARTE. Praticamente implorara para que reatassem o relacionamento e ela usou aquela historinha fictícia de traição como desculpa. Jurou a si mesmo que nunca mais a procuraria, mas agora, precisava entender aquela mulher, que parecia ter duas personalidades. A Ana com quem havia namorado e que demonstrara afeto e respeito por ele e esta outra, que o espicaçara e confundiu.


Gardenia Yud