— É isso que eu acho, Ana. Você
precisa encontrar uma forma de acreditar mais em você, melhorar sua auto-estima. Ou
então, você não vai sobreviver tão bem aqui fora, sabe. Vão sempre tentar tirar
de você alguma coisa, e sem confiança, você vai acabar entregando tudo. Não foi
legal o que você fez ao João, e menos ainda com você mesma! Espero que você não
descubra isso tarde demais!
Diante da expressão fechada de Ana, Jeane tocou seu
braço gentilmente e disse:
— É só um conselho de amiga! Não estou tentando me
intrometer em sua vida.
Jeane deu as costas para ela e foi embora, deixando-a no
ponto de ônibus.
Ana estava confusa. Realmente achou Jeane invasiva. Havia
passado anos com as freiras tomando decisões por ela, escolhendo o que deveria
vestir, como se comportar. E agora
esperava fazer isso por ela mesma. Não acreditava que deveria ficar ao lado de
alguém que não lhe demonstrava lealdade. Mas sua nova amiga, dizia que ela
deveria ouvir João. Agora, porém, era tarde demais. Duvidava que ele queria
vê-la. E não tinha coragem de falar com ele sobre sua história. E se a rejeitasse? Não sabia se aguentaria lidar com seu desprezo.
O ônibus da Universidade parou e ela entrou.
Estava desconfortável com a conversa que havia tido.
Precisava ouvir conselhos de alguém que realmente se importasse com ela. Mas,
quem? Não tinha ninguém. Sentia-se a pessoa mais solitária do mundo. Às vezes, era como se estivesse rodeada por
uma atmosfera fria, olhando as pessoas além dela com suas vidas ensolaradas.
Apenas quando estivera com João sentira-se consolada. Suspirou melancólica.
Ana desceu do ônibus e apressou-se até o
Departamento de Artes.
Ao chegar à sala do Professor Mauro, viu através do
vidro que ele estava sentado em sua mesa com algumas fotos diante de si. Quando
a viu, abriu um sorriso e fez um gesto para que entrasse.
—Nossa! — ele exclamou. — Fiz uma viagem no tempo
por sua causa. Velhas e boas lembranças, embora tenham me deixado um pouco
nostálgico. Sente-se, Ana.
—Obrigado, Professor!
—Aqui, estão os trabalhos de meu velho amigo.
Raridades que infelizmente só posso contemplar através destas fotos. O colorido destes vitrais se desvaneceram em minha mente com o tempo. Mas me emocionavam.
As mãos de Ana estavam frias. Quando pegou a
primeira foto apreciou os detalhes dos desenhos nos vidros. Embora as fotos não fossem
coloridas, a beleza deles era incontestável. Todos os
elementos que faziam parte de sua individualidade como artista estavam lá.
Então, mais uma vez, viu um vitral com o rosto de mulher. Algo a comoveu.
Ao perceber que ela estava hipnotizada por aquela
foto, ele sorriu:
—Percebeu, não foi?
—O quê? — ela perguntou acordando de seu êxtase.
—A semelhança entre a mulher do vidro e você.
Ana engoliu em seco, e olhou novamente para a
imagem. Então era isso! Ela havia visto a si mesma naquela mulher. Talvez fosse
o formato dos olhos. Os lábios. As maçãs do rosto. Ou todo o conjunto. O rosto da mulher parecia
com o dela. Quando a avistara na casa, havia sentido algo, quase transcendente,
mas não percebera aquela semelhança. Não era uma pessoa apegada a espelhos.
Aprendera a renunciar aquelas ‘superficialidades’ no convento. Não estudava os
próprios traços com frequência. Quando afastava-se do espelho não se lembrava
muito de sua expressão. Às vezes, quando dava de cara consigo mesma nos
espelhos da loja, se surpreendia com a imagem. Parecia estar olhando para outra
pessoa.
—Parece com você.
—É... parece mesmo.
—Agora, olhe esta aqui.
Ele entregou a ela uma foto onde viu o Professor
mais jovem com um rapaz. Eles sorriam para a câmera. Estavam encostados em um
Fusca. As roupas eram no estilo dos anos 70. Por algum motivo o coração dela
deu um pulo, e sua respiração ficou suspensa.
—Esse aí era Benjamin.
O sorriso dele era límpido. Mesmo através das lentes
podia perceber a vivacidade e brilho de seus olhos.
—Um grande homem e artista, mas infelizmente
deixou-nos cedo.
—O que aconteceu?
O semblante de Professor Mauro, repentinamente
tornou-se sombrio.
—Forças das trevas, minhas querida — disse
amargurado. — O mundo está cheio delas. Mas não vamos falar nisso. Vamos focar nas
artes.
Ana segurou a foto firmemente, sem querer se separar
dela.
—O que pretende, Ana?
—Como?
—Você me disse que é uma entusiasta das artes e sei
que sua área é bem diferente, mas acredito que esteja com disposição para
divulgar esse trabalho. Que tal?
—Eu?
—Por que não? Preciso de uma entusiasta das artes —
disse sorrindo. — Veja bem. Não é todo dia que alguém chega aqui interessada em
vitrais e que me pede informações de um designer em especial, que coincidentemente, também é meu preferido. E foi meu amigo.
—Mas... como eu poderia ajudá-lo? —questionou
incerta.
—Divulgue os vitrais entre seu colegas. Preciso de
voluntários aqui e na galeria. Pessoas que amem a arte. Que saiam de seu
caminho por ela.
Ana sentiu-se um pouco culpada por ele pensar nela
daquela forma. Gostava da arte, mas seus motivos para estar ali, eram mais
pessoais. Menos elevados do que ele imaginava. Mas de certa forma, viu naquele
convite uma forma de estar mais próxima da história de Benjamin, aquele
desconhecido, que sentia como se fosse alguém próximo à ela.
—Está bem! — sorriu. Seu coração pareceu mais leve.
Quase entusiasmado.
—Daqui a duas semanas estaremos realizando A SEMANA
DA ARTE aqui na Universidade e na terça-feira realizaremos palestras e
exibições de vitrais. À noite, será a palestra sobre Vitrais Religiosos. O
evento será no Auditório do Departamento. Preciso de alguém para me ajudar com slides e
também com a recepção, entre outros detalhes. Sei que é ocupada, mas se tiver
um tempinho, poderia me ajudar. E então?
— Claro!
Finalmente um objetivo! Ainda que não tivesse tempo,
o criaria! Precisava fazer parte de algo que a inspirasse ou acabaria enfurnada
em seu apartamento e afundando em pensamentos pessimistas.
Combinaram que ele deixaria o material a ser
organizado no departamento com as orientações escritas e ela passaria lá para
pegá-los. Às quartas à noite se reuniriam em sua sala para decidirem a relevância
do material a ser divulgado.
—Obrigado pela oportunidade, Professor.
— Eu que agradeço pela ajuda.
—Tenho que ir agora. Minha primeira aula já vai
começar. Até mais.
Professor Mauro ficou olhando a moça deixando sua
sala e depois olhou a foto diante de si.
Recostou-se na cadeira de espaldar alto e seus olhos se perderam em um
outro lugar e outro tempo, muito longe dali.
Ana pensou nos vitrais da casa. Quase deixava
escapar para o Professor Mauro sua descoberta, mas algo a impediu. Precisava
descobrir mais, antes de expô-la. Será que Benjamin havia conhecido seus pais?
E a mulher do vitral? Um pensamento absurdo perpassou seus pensamentos. Absurdo
demais para ela deixar ir adiante. Precisava de mais informações, só então,
teria como tirar conclusões.
Como esperara, o final de semana se arrastava, pensou
João.
Graziela a todo tempo ‘jogava’ Eduarda para cima
dele. E por um momento, ele até pensou em participar daquele ‘jogo’, mas então,
percebeu que acabaria se abominando. Se ao menos começasse a gostar dela de
verdade. Não era má ideia. Estava livre, não estava? Podia muito bem começar a
investir em outro relacionamento, um em que não estivesse só.
Geovanni não perdia a oportunidade de falar em sua
experiência na Europa, e a princípio, ele teve interesse de ouvir seus relatos,
mas a forma arrogante como o irmão de Eduarda falava com ele, acabou por levantar
algumas barreiras.
—Não ligue para o jeito de meu irmão, João. Ele é
assim desde criança — Eduarda falou constrangida.
João a olhou longamente. Ela não era apenas bonita. Era
inteligente e amável. Pegou-se comparando-a à Ana. Lembrou-se de como ela podia tornar-se distante
e até fria. Havia algo nela que não deixava que ele chegasse perto demais. Já
havia pensado naquilo milhares de vezes. Talvez ela tivesse um segredo, ou
simplesmente, ela não conseguia corresponder a seus sentimentos. Por que não
aceitava e a esquecia?
Eduarda demonstrava, ainda que, com timidez que
tinha interesse nele. Percebia em seu olhar. Decidiu que poderia dar à ela uma
chance.
—Se você está me pedindo, eu não ligo — ele sorriu. —
Como está indo na Universidade?
—Estou gostando bastante. É um mundo diferente do
que eu estava acostumada — ela sorriu.
Ele divagou. Seus pensamentos voaram para longe. Mas
ela continuava falando e ele se obrigava a acompanhar a conversa. Então,
decidiu colocar um fim aquele emaranhado confuso que Ana criara em seus sentimentos.
—Quer ir comigo ao cinema no final da semana que
vem, Eduarda?
—Claro!
Seu pedido não ficou em segredo por muito tempo. Ele
percebeu pelo olhar de vitória da mãe.
A semana passou voando para Ana. Os preparativos da
SEMANA DE ARTE a envolveram de tal forma que ela não se importou com seu
cansaço. Havia planejado voltar a casa naquela semana, mas acabou deixando a
ideia de lado para descansar.
Pensou em voltar ao assunto ‘Benjamin’ com o
Professor Mauro, pensou até, em compartilhar com ele sua história e revelar
suas suspeitas ,de que talvez, o designer
estivesse de alguma forma ligado a seus pais. A sua casa. Talvez assim, ele lhe
contasse mais à respeito dele, das ‘forças das trevas’, que havia mencionado
antes. Precisava de nomes. Coordenadas. Pistas.
Mas, os preparativos para a SEMANA DE ARTE se
avolumavam. Alunos de Universidades de cidades vizinhas, bem como palestrantes compareceriam
e precisavam de alojamentos. O Professor não havia parado um só instante, e Ana
percebeu que ele realmente precisava de ajuda, pois apesar de ser muito
solicitado, não era muito organizado. A última coisa que ele precisava naquele
momento era ouvir confidências. Poderia até soar estranho a seus ouvidos.
Deveria esperar o momento certo.
O evento finalmente chegou. Ela não iria trabalhar
na terça, mas havia combinado com sua gerente que faria hora extra para compensá-lo.
Queria saborear ao máximo o resultado de seus esforços.
A Universidade estava em um clima festivo. Os alunos
do Departamento de Arte pintaram murais e espalharam um colorido especial por
todo o Campus. Mas, assim que chegou, Ana dirigiu-se ao espaço que a atraia
verdadeiramente. Os vitrais haviam sido dispostos no Auditório sob sua inspeção.
Os visitantes começaram a chegar, às vezes, aos pares, outras em grupos. Ela
os recepcionava, entregava folders explicativos e conversava com os mais
interessados, quando era questionada.
Às 10:30 hs, quando um grupo saiu e o Auditório
ficou vazio, Ana afastou-se um momento da entrada para abrir mais uma das
cortinas que impedia que o sol batesse completamente sobre um dos vitrais.
Quando voltava, o viu na entrada. Seu sangue gelou ao perceber que não estava
só. Ela viu que ele segurava levemente o braço da moça que o acompanhava e estava
a um passo adiante dele. Quando seus olhos se encontraram, a primeira reação
dela foi correr, fugir dali. Instintivamente,
ele deixou de tocar moça e baixou os olhos.
Eduarda pegou um dos folders que estavam sobre a
mesa e perguntou:
—Posso pegar?
—Claro — Ana respondeu seca.
A moça entregou um para João e manteve outro para
si mesma. Ele agradeceu-a, ainda constrangido com a situação. Ana saiu de sua
paralisia e foi na direção deles, mas não o olhou mais. Pegou os folders e se
postou na porta de costas para o casal. Apenas ouvia as exclamações da moça,
que estava encantada com os vitrais. Nunca imaginou que ele fosse capaz de
fazer aquilo com ela. Trazer a namorada ali. Com certeza ele sabia que poderia encontrá-la
naquele local e decidiu humilhá-la. Então, estava certa! Agora tinha a
confirmação de sua traição. Sentia uma dor terrível em seu coração. Sua
garganta doía, por prender o choro que queria deixar escapar para lavar sua
alma.
Ouviu quando os passos deles se aproximavam da saída
e respirou fundo.
—Obrigada! — disse Eduarda. —Realmente encantador
este trabalho.
—Que bom que gostou — Ana respondeu séria e seca,
pois se esboçasse, ainda que fosse a sombra de um sorriso educado, desmoronaria
diante deles. As emoções, à todo custo, aprisionadas sairiam em cascata. Ela
deu-lhes às costas e foi até o vitral onde o Cristo estava sangrando na cruz e
o contemplou. Concentrou-se em todos os detalhes. Em cada cor. Ele olhava para
o céu, pedindo clemência, mas ela sabia a história. Seu Pai não O ouviria e Ele
derramaria até a última gota de sangue vermelho no cumprimento de sua pesada
missão.
Ana virou-se para a porta e descobriu-se só.
Foi até a entrada e terminou aquele turno destruída.
Recebeu as outras pessoas sem nenhum entusiasmo. Um aluno veio substituí-la
para que fosse à cantina almoçar. Ela foi até o banheiro e chorou.
—Moça esquisita, aquela da recepção, não?
João não respondeu.
—Cara amarrada.
—Sua mãe me convidou para jantar com vocês hoje.
Ele continuou em silêncio.
Parou o carro na frente da casa dela e esperou ela
sair, mas ao invés disso, ela perguntou:
—O que foi? Você ficou calado de repente.
—Nada. Não é nada.
—Então, nos vemos hoje à noite?
—Claro.
Ela olhou para ele e esperou. Então, ele a beijou de
leve nos lábios.
João olhou para o folder que Eduarda deixou no banco
e o pegou. Leu-o minuciosamente, depois, deu partida no carro e saiu.
Não haviam tantas pessoas na palestra sobre Vitrais
Religiosos. Umas vinte no máximo. Espalhavam-se aleatoriamente nos assentos do
auditório. Ana deixou a recepção e sentou-se em uma cadeira da última fileira
para apreciar o conhecimento do palestrante. Alguns minutos depois, uma pessoa
sentou-se ao seu lado. Ela não olhou de pronto, mas o sentimento de que era
observada a fez virar a cabeça. João estava lá. Olhava fixamente para ela.
Ana levantou-se e saiu do auditório. O frio da noite
atingiu sua face aliviando suas emoções tumultuadas.
Ele pegou-a pelo braço e obrigou-a a encará-lo:
—Isso tudo é culpa sua!
Aquelas palavras despertaram a raiva dela.
—Minha culpa! Quando ainda namorávamos você saia com
ela! Você me traía e a culpa é minha?
—Eu não traí você enquanto estávamos juntos!
—Não foi ninguém que me disse. Eu vi! Eu vi vocês
juntos.
O olhar dele pareceu confuso.
—Eu vi, João!
—O que foi que você viu? Eu nunca traí você!
—Eu te vi passando com ela de carro no centro da
cidade. Hoje tive a confirmação daquele dia.
—Hã! Você me viu dando uma carona para ela e
concluiu que eu te traí? — Ele passou a mão nos cabelos nervoso. —Por que não falou
comigo? Por que não me perguntou? Você é imatura, mesmo, hein?
—Sou? Você só estava dando carona para ela hoje,
também?
—Não, Ana. Mas quando você terminou comigo sem me
dar nenhuma chance, as coisas mudaram.
—Você é rápido!
—E você é insensível! Quando eu percebi isso, agi
como deveria.
—Então, me deixa em paz! — ela se desvencilhou dele
e foi em direção a porta, mas ele a impediu e novamente a obrigou a olhá-lo nos olhos, então sussurrou.
—Se você pedir... eu termino tudo com ela hoje
mesmo. Você só tem que pedir.
Ela soltou o braço que ele segurava e entrou no
auditório.
₢Gardenia Yud
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