segunda-feira, 29 de junho de 2015

A CASA - CAPÍTULO 7

— É isso que eu acho, Ana. Você precisa encontrar uma forma de acreditar mais em você, melhorar sua auto-estima. Ou então, você não vai sobreviver tão bem aqui fora, sabe. Vão sempre tentar tirar de você alguma coisa, e sem confiança, você vai acabar entregando tudo. Não foi legal o que você fez ao João, e menos ainda com você mesma! Espero que você não descubra isso tarde demais!

Diante da expressão fechada de Ana, Jeane tocou seu braço gentilmente e disse:

— É só um conselho de amiga! Não estou tentando me intrometer em sua vida.

Jeane deu as costas para ela e foi embora, deixando-a no ponto de ônibus.

Ana estava confusa. Realmente achou Jeane invasiva. Havia passado anos com as freiras tomando decisões por ela, escolhendo o que deveria vestir, como se comportar.  E agora esperava fazer isso por ela mesma. Não acreditava que deveria ficar ao lado de alguém que não lhe demonstrava lealdade. Mas sua nova amiga, dizia que ela deveria ouvir João. Agora, porém, era tarde demais. Duvidava que ele queria vê-la. E não tinha coragem de falar com ele sobre sua história. E se a rejeitasse? Não sabia se aguentaria lidar com seu desprezo.

O ônibus da Universidade parou e ela entrou.

Estava desconfortável com a conversa que havia tido. Precisava ouvir conselhos de alguém que realmente se importasse com ela. Mas, quem? Não tinha ninguém. Sentia-se a pessoa mais solitária do mundo.  Às vezes, era como se estivesse rodeada por uma atmosfera fria, olhando as pessoas além dela com suas vidas ensolaradas. Apenas quando estivera com João sentira-se consolada. Suspirou melancólica.

Ana desceu do ônibus e apressou-se até o Departamento de Artes. 

Ao chegar à sala do Professor Mauro, viu através do vidro que ele estava sentado em sua mesa com algumas fotos diante de si. Quando a viu, abriu um sorriso e fez um gesto para que entrasse.

—Nossa! — ele exclamou. — Fiz uma viagem no tempo por sua causa. Velhas e boas lembranças, embora tenham me deixado um pouco nostálgico. Sente-se, Ana.

—Obrigado, Professor!

—Aqui, estão os trabalhos de meu velho amigo. Raridades que infelizmente só posso contemplar através destas fotos. O colorido destes vitrais se desvaneceram em minha mente com o tempo. Mas me emocionavam.

As mãos de Ana estavam frias. Quando pegou a primeira foto apreciou os detalhes dos desenhos nos vidros. Embora as fotos não fossem coloridas, a beleza deles era incontestável. Todos os elementos que faziam parte de sua individualidade como artista estavam lá. Então, mais uma vez, viu um vitral com o rosto de mulher. Algo a comoveu.

Ao perceber que ela estava hipnotizada por  aquela foto, ele sorriu:

—Percebeu, não foi?

—O quê? — ela perguntou acordando de seu êxtase.

—A semelhança entre a mulher do vidro e você.

Ana engoliu em seco, e olhou novamente para a imagem. Então era isso! Ela havia visto a si mesma naquela mulher. Talvez fosse o formato dos olhos. Os lábios. As maçãs do rosto. Ou todo o conjunto. O rosto da mulher parecia com o dela. Quando a avistara na casa, havia sentido algo, quase transcendente, mas não percebera aquela semelhança. Não era uma pessoa apegada a espelhos. Aprendera a renunciar aquelas ‘superficialidades’ no convento. Não estudava os próprios traços com frequência. Quando afastava-se do espelho não se lembrava muito de sua expressão. Às vezes, quando dava de cara consigo mesma nos espelhos da loja, se surpreendia com a imagem. Parecia estar olhando para outra pessoa.

—Parece com você.

—É... parece mesmo.

—Agora, olhe esta aqui.

Ele entregou a ela uma foto onde viu o Professor mais jovem com um rapaz. Eles sorriam para a câmera. Estavam encostados em um Fusca. As roupas eram no estilo dos anos 70. Por algum motivo o coração dela deu um pulo, e sua respiração ficou suspensa.

—Esse aí era Benjamin.

O sorriso dele era límpido. Mesmo através das lentes podia perceber a vivacidade e brilho de seus olhos.

—Um grande homem e artista, mas infelizmente deixou-nos cedo.

—O que aconteceu?

O semblante de Professor Mauro, repentinamente tornou-se sombrio.

—Forças das trevas, minhas querida — disse amargurado. — O mundo está cheio delas. Mas não vamos falar nisso. Vamos focar nas artes.

Ana segurou a foto firmemente, sem querer se separar dela.

—O que pretende, Ana?

—Como?

—Você me disse que é uma entusiasta das artes e sei que sua área é bem diferente, mas acredito que esteja com disposição para divulgar esse trabalho. Que tal?

—Eu?

—Por que não? Preciso de uma entusiasta das artes — disse sorrindo. — Veja bem. Não é todo dia que alguém chega aqui interessada em vitrais e que me pede informações de um designer em especial, que coincidentemente, também é meu preferido. E foi meu amigo.

—Mas... como eu poderia ajudá-lo? —questionou incerta.

—Divulgue os vitrais entre seu colegas. Preciso de voluntários aqui e na galeria. Pessoas que amem a arte. Que saiam de seu caminho por ela.

Ana sentiu-se um pouco culpada por ele pensar nela daquela forma. Gostava da arte, mas seus motivos para estar ali, eram mais pessoais. Menos elevados do que ele imaginava. Mas de certa forma, viu naquele convite uma forma de estar mais próxima da história de Benjamin, aquele desconhecido, que sentia como se fosse alguém próximo à ela.

—Está bem! — sorriu. Seu coração pareceu mais leve. Quase entusiasmado.

—Daqui a duas semanas estaremos realizando A SEMANA DA ARTE aqui na Universidade e na terça-feira realizaremos palestras e exibições de vitrais. À noite, será a palestra sobre Vitrais Religiosos. O evento será no Auditório do Departamento.  Preciso de alguém para me ajudar com slides e também com a recepção, entre outros detalhes. Sei que é ocupada, mas se tiver um tempinho, poderia me ajudar. E então?

— Claro!

Finalmente um objetivo! Ainda que não tivesse tempo, o criaria! Precisava fazer parte de algo que a inspirasse ou acabaria enfurnada em seu apartamento e afundando em pensamentos pessimistas.
Combinaram que ele deixaria o material a ser organizado no departamento com as orientações escritas e ela passaria lá para pegá-los. Às quartas à noite se reuniriam em sua sala para decidirem a relevância do material a ser divulgado.

—Obrigado pela oportunidade, Professor.

— Eu que agradeço pela ajuda.

—Tenho que ir agora. Minha primeira aula já vai começar. Até mais.

Professor Mauro ficou olhando a moça deixando sua sala e depois olhou a foto diante de si. 

Recostou-se na cadeira de espaldar alto e seus olhos se perderam em um outro lugar e outro tempo, muito longe dali.

Ana pensou nos vitrais da casa. Quase deixava escapar para o Professor Mauro sua descoberta, mas algo a impediu. Precisava descobrir mais, antes de expô-la. Será que Benjamin havia conhecido seus pais? E a mulher do vitral? Um pensamento absurdo perpassou seus pensamentos. Absurdo demais para ela deixar ir adiante. Precisava de mais informações, só então, teria como tirar conclusões.




Como esperara, o final de semana se arrastava, pensou João.

Graziela a todo tempo ‘jogava’ Eduarda para cima dele. E por um momento, ele até pensou em participar daquele ‘jogo’, mas então, percebeu que acabaria se abominando. Se ao menos começasse a gostar dela de verdade. Não era má ideia. Estava livre, não estava? Podia muito bem começar a investir em outro relacionamento, um em que não estivesse só.

Geovanni não perdia a oportunidade de falar em sua experiência na Europa, e a princípio, ele teve interesse de ouvir seus relatos, mas a forma arrogante como o irmão de Eduarda falava com ele, acabou por levantar algumas barreiras.

—Não ligue para o jeito de meu irmão, João. Ele é assim desde criança — Eduarda falou constrangida. 

João a olhou longamente. Ela não era apenas bonita. Era inteligente e amável. Pegou-se comparando-a à Ana. Lembrou-se de como ela podia tornar-se distante e até fria. Havia algo nela que não deixava que ele chegasse perto demais. Já havia pensado naquilo milhares de vezes. Talvez ela tivesse um segredo, ou simplesmente, ela não conseguia corresponder a seus sentimentos. Por que não aceitava e a esquecia?

Eduarda demonstrava, ainda que, com timidez que tinha interesse nele. Percebia em seu olhar. Decidiu que poderia dar à ela uma chance.

—Se você está me pedindo, eu não ligo — ele sorriu. — Como está indo na Universidade?

—Estou gostando bastante. É um mundo diferente do que eu estava acostumada — ela sorriu.

Ele divagou. Seus pensamentos voaram para longe. Mas ela continuava falando e ele se obrigava a acompanhar a conversa. Então, decidiu colocar um fim aquele emaranhado confuso que Ana criara em seus sentimentos.

—Quer ir comigo ao cinema no final da semana que vem, Eduarda?

—Claro!

Seu pedido não ficou em segredo por muito tempo. Ele percebeu pelo olhar de vitória da mãe.





A semana passou voando para Ana. Os preparativos da SEMANA DE ARTE a envolveram de tal forma que ela não se importou com seu cansaço. Havia planejado voltar a casa naquela semana, mas acabou deixando a ideia de lado para descansar.

Pensou em voltar ao assunto ‘Benjamin’ com o Professor Mauro, pensou até, em compartilhar com ele sua história e revelar suas suspeitas ,de que talvez, o designer estivesse de alguma forma ligado a seus pais. A sua casa. Talvez assim, ele lhe contasse mais à respeito dele, das ‘forças das trevas’, que havia mencionado antes. Precisava de nomes. Coordenadas.  Pistas.

Mas, os preparativos para a SEMANA DE ARTE se avolumavam. Alunos de Universidades de cidades vizinhas, bem como palestrantes compareceriam e precisavam de alojamentos. O Professor não havia parado um só instante, e Ana percebeu que ele realmente precisava de ajuda, pois apesar de ser muito solicitado, não era muito organizado. A última coisa que ele precisava naquele momento era ouvir confidências. Poderia até soar estranho a seus ouvidos. Deveria esperar o momento certo.

O evento finalmente chegou. Ela não iria trabalhar na terça, mas havia combinado com sua gerente que faria hora extra para compensá-lo. Queria saborear ao máximo o resultado de seus esforços.

A Universidade estava em um clima festivo. Os alunos do Departamento de Arte pintaram murais e espalharam um colorido especial por todo o Campus. Mas, assim que chegou, Ana dirigiu-se ao espaço que a atraia verdadeiramente. Os vitrais haviam sido dispostos no Auditório sob sua inspeção.

Os visitantes começaram a chegar, às vezes, aos pares, outras em grupos. Ela os recepcionava, entregava folders explicativos e conversava com os mais interessados, quando era questionada.  

Às 10:30 hs, quando um grupo saiu e o Auditório ficou vazio, Ana afastou-se um momento da entrada para abrir mais uma das cortinas que impedia que o sol batesse completamente sobre um dos vitrais. Quando voltava, o viu na entrada. Seu sangue gelou ao perceber que não estava só. Ela viu que ele segurava levemente o braço da moça que o acompanhava e estava a um passo adiante dele. Quando seus olhos se encontraram, a primeira reação dela foi correr, fugir dali.  Instintivamente, ele deixou de tocar moça e baixou os olhos.

Eduarda pegou um dos folders que estavam sobre a mesa e perguntou:

—Posso pegar?

—Claro — Ana respondeu seca.

A moça entregou um para João e manteve outro para si mesma. Ele agradeceu-a, ainda constrangido com a situação. Ana saiu de sua paralisia e foi na direção deles, mas não o olhou mais. Pegou os folders e se postou na porta de costas para o casal. Apenas ouvia as exclamações da moça, que estava encantada com os vitrais. Nunca imaginou que ele fosse capaz de fazer aquilo com ela. Trazer a namorada ali. Com certeza ele sabia que poderia encontrá-la naquele local e decidiu humilhá-la. Então, estava certa! Agora tinha a confirmação de sua traição. Sentia uma dor terrível em seu coração. Sua garganta doía, por prender o choro que queria deixar escapar para lavar sua alma.

Ouviu quando os passos deles se aproximavam da saída e respirou fundo.

—Obrigada! — disse Eduarda. —Realmente encantador este trabalho.

—Que bom que gostou — Ana respondeu séria e seca, pois se esboçasse, ainda que fosse a sombra de um sorriso educado, desmoronaria diante deles. As emoções, à todo custo, aprisionadas sairiam em cascata. Ela deu-lhes às costas e foi até o vitral onde o Cristo estava sangrando na cruz e o contemplou. Concentrou-se em todos os detalhes. Em cada cor. Ele olhava para o céu, pedindo clemência, mas ela sabia a história. Seu Pai não O ouviria e Ele derramaria até a última gota de sangue vermelho no cumprimento de sua pesada missão.

Ana virou-se para a porta e descobriu-se só.

Foi até a entrada e terminou aquele turno destruída. Recebeu as outras pessoas sem nenhum entusiasmo. Um aluno veio substituí-la para que fosse à cantina almoçar. Ela foi até o banheiro e chorou.




—Moça esquisita, aquela da recepção, não?

João não respondeu.

—Cara amarrada.

—Sua mãe me convidou para jantar com vocês hoje.

Ele continuou em silêncio.

Parou o carro na frente da casa dela e esperou ela sair, mas ao invés disso, ela perguntou:

—O que foi? Você ficou calado de repente.

—Nada. Não é nada.

—Então, nos vemos hoje à noite?

—Claro.

Ela olhou para ele e esperou. Então, ele a beijou de leve nos lábios.

João olhou para o folder que Eduarda deixou no banco e o pegou. Leu-o minuciosamente, depois, deu partida no carro e saiu.


Não haviam tantas pessoas na palestra sobre Vitrais Religiosos. Umas vinte no máximo. Espalhavam-se aleatoriamente nos assentos do auditório. Ana deixou a recepção e sentou-se em uma cadeira da última fileira para apreciar o conhecimento do palestrante. Alguns minutos depois, uma pessoa sentou-se ao seu lado. Ela não olhou de pronto, mas o sentimento de que era observada a fez virar a cabeça. João estava lá. Olhava fixamente para ela.

Ana levantou-se e saiu do auditório. O frio da noite atingiu sua face aliviando suas emoções tumultuadas.

Ele pegou-a pelo braço e obrigou-a a encará-lo:

—Isso tudo é culpa sua!

Aquelas palavras despertaram a raiva dela.

—Minha culpa! Quando ainda namorávamos você saia com ela! Você me traía e a culpa é minha?

—Eu não traí você enquanto estávamos juntos!

—Não foi ninguém que me disse. Eu vi! Eu vi vocês juntos.

O olhar dele pareceu confuso.

—Eu vi, João!

—O que foi que você viu? Eu nunca traí você!

—Eu te vi passando com ela de carro no centro da cidade. Hoje tive a confirmação daquele dia.

—Hã! Você me viu dando uma carona para ela e concluiu que eu te traí? — Ele passou a mão nos cabelos nervoso. —Por que não falou comigo? Por que não me perguntou? Você é imatura, mesmo, hein?

—Sou? Você só estava dando carona para ela hoje, também?

—Não, Ana. Mas quando você terminou comigo sem me dar nenhuma chance, as coisas mudaram.

—Você é rápido!

—E você é insensível! Quando eu percebi isso, agi como deveria.

—Então, me deixa em paz! — ela se desvencilhou dele e foi em direção a porta, mas ele a impediu e novamente a obrigou a olhá-lo nos olhos, então sussurrou.

—Se você pedir... eu termino tudo com ela hoje mesmo. Você só tem que pedir.

Ela soltou o braço que ele segurava e entrou no auditório.

₢Gardenia Yud







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