quinta-feira, 30 de julho de 2015

A CASA - CAPÍTULO 10


Benjamin Bachman era seu pai.

Parada diante do vitral que havia sido idealizado e tocado pelas mãos do pai, ela avaliou cada cor selecionada. Refletiu nos motivos de ele as ter escolhido tão cuidadosamente. O que significariam os lírios para Benjamin, para que houvessem se tornado uma marca registrada de sua arte?

Pensou na casa onde ele havia vivido. Estava abandonada, mas pertenceria a alguém? Queria que o professor soubesse dos vitrais que estavam lá. Era importante que fossem catalogados. Era uma coleção rara. E mais importante, contavam uma história.

Mas antes, precisava voltar lá mais uma vez. Rever a casa com a informação que tinha agora. Senti-la mais uma vez sem outras impressões, que não fossem as de seus pais. 

Na hora do almoço, dirigiu-se ao restaurante onde sempre encontrava Jeanne. O tempo era instável. Abril estava às portas. O cheirinho de chuva a agradava. Viu a casa amarela simples onde eram servidas refeições por uma casal de aposentados. Estava sempre lotado, principalmente pelos funcionário do comércio daquela região. O cheiro da comida caseira bem temperada deu-lhe água na boca. Jeanne já a esperava.

Colocou a sombrinha ao lado da mesa e cumprimentou a amiga. Um senhor aproximou-se, e colocou uma terrina com salada sobre a mesa. Perguntou-lhe a carne de sua escolha e foi até a cozinha.

—Tenho uma novidade para contar-lhe.

Jeanne levava uma garfada a boca, mas parou no meio do caminho e perguntou:

—Boa? — e colocou o alimento na boca.

Ana sorriu.

—Maravilhosa! Encontrei meu pai.

A outra arregalou os olhos e praticamente engoliu a comida de um bocado só.

—Você encontrou seu pai? Falou com ele?

Ana conteve um pouco a animação.

—Eu o encontrei, mas ele está morto.

Pronunciar aquelas palavras ainda a emocionava. Seu almoço foi trazido e colocado diante dela. Não sabia se comia ou falava. Mas como Jeanne estava em suspenso ela resolveu iniciar a narrativa. De vez em quando, enquanto a amiga digeria suas palavras ela levava uma garfada à boca.

—Ana, essa história é incrível. Quase sobrenatural. A forma como os pedaços foram se encaixando. Sua ligação com a galeria, o professor Mauro que te ajudou com um emprego lá e o conhecia. Estou impressionada!

—Eu também...

Ao terminarem a refeição, pagaram, se despediram, e foi cada uma para um lado. A chuva havia estiado e ela caminhou através da praça central. Alguns pombos voavam à medida que ela passava. Quis sentar-se em um banco antes de ir para a galeria, mas estavam todos molhados.  Foi quando o viu. Estava lá parado diante dela. Sua primeira reação foi ir até ele. A segunda, desviar-se, ir em outra direção. E foi o que fez, mas ele foi mais rápido e a alcançou.

—Não podemos nem conversar um instante? —perguntou João.

—Para quê? Já dissemos tudo o que precisava ser dito um ao outro.

—Não é verdade, Ana.

Ela não sabia o que dizer. Queria ficar e contar tudo para ele, inclusive sobre seu pai. Seria tão bom poder partilhar aquela novidade com ele. Mas, como ele a receberia? Em meio a seus devaneios ouviram uma voz de mulher chamá-lo.

—João? Meu filho?

Viraram a cabeça juntos e Ana se deparou com uma mulher que ela acreditou não pertencer aquele cenário. Era uma mulher bonita, mas acima de tudo, elegante. Vestia um tailleur verde musgo de bom corte. Seus sapatos pretos de salto alto eram de grife cara. Os cabelos escuros estavam puxados em um coque elegante. Uma leve maquiagem cobria seu rosto. Irretocável. Uma boneca de luxo em um dia nublado, em meio à praça lamacenta da cidade.

Ana percebeu que havia um carro preto parado bem no contorno da praça, de onde ela parecia ter saído, pois o motorista a olhava entre impaciente e indeciso. Provavelmente esperava que ela voltasse logo, para que ele removesse o carro do local inadequado.

Então os olhos dela a encontraram, e o que veio a seguir estarreceu Ana.

A mulher arregalou os olhos, colocou as mãos sobre a boca e começou a arfar. Parecia ter visto uma fantasma.

—Mãe? O que há? — perguntou ele preocupado e aproximou-se dela para ajudá-la.

Ela não falava, apenas encarava Ana com um olhar assustador. Segurou o pulso de João com uma força descomunal e finalmente declarou:

—Vamos embora daqui! Venha!

—A senhora está bem?

—Não! — gritou com ele, que assustou-se com a reação dela.  

Ele olhou para Ana preocupado e disse:

—Te vejo depois.

Ana o viu acompanhar a mãe até o carro, e depois entrar junto com ela.

Um mal-estar tomou conta de Ana. O olhar daquela mulher em direção à ela a desconcertou. Pousou a mão embaixo da garganta e a esfregou na esperança que aquele sentimento nefasto a deixasse. A mãe de João não havia gostado dela. O pensamento a perturbou mais ainda.

Voltou para a galeria e mergulhou no trabalho.  


*****


—Não quero que veja aquela moça! Nunca mais!

—Por que? — ele perguntou frio.

Ela pareceu confusa por um instante.

  —Porque não gostei dela. Não me pareceu uma pessoa de classe e tem uma coisa nela que... parece maligna. É uma aproveitadora, tenho certeza.

Ele levantou as duas mãos.

—Para. Eu nem sei porque perguntei sua opinião. Você está se ouvindo? — ele deu um sorriso sarcástico. —Claro que está! É a Dona Melissa falando. Acha que ligo para esse seu pensamento mesquinho sobre ‘classe’? Maligna? Nunca! E aproveitadora menos ainda.

—Você é um inocente, meu filho. Ela viu que você tem carro, mora em uma mansão de um bairro luxuoso e decidiu se aproveitar. Então, era por ela que você ia deixar de namorar Eduarda? — debochou. — Está louco!

—Ela não sabe onde moro. Mas isso não importa, se soubesse não mudaria nada. Ela não é ligada nisso.

—Não ouse trazê-la a minha casa.

João a olhou ressentido.

—Esta casa também pertence a meu pai, e tenho certeza que ele não se oporia à presença dela aqui.

—Não ouse me contrariar, João! E outra, você não vai deixar Eduarda por causa dela.

A isso, ele não respondeu, até porque Ana o havia dispensado friamente. Ele deu as costas para a mãe, que aparentemente havia melhorado e ainda a ouviu ameaçá-lo.

—Eu não estou brincando!

Ao ficar sozinha, Melissa foi tomada por pensamentos tortuosos. ‘Não podia ser’. Andava de um lado para o outro na sala e de repente parou diante do grande espelho com moldura de prata. Olhou para a mulher de rosto assustado. Nem parecia com ela.

‘O passado não podia estar de volta.’


*****


Ana segurou-se durante aqueles dias para não dar com a língua nos dentes. Queria contar tudo para o professor Mauro. Mas algo em seu íntimo a fez esperar.

No sábado, ao sair da galeria foi direto para o ponto de ônibus. Estava disposta a passar toda a tarde nos jardins da casa. Queria pensar em Benjamin. Imaginar como havia sido sua mãe. Qual seria seu nome? Sabia que se parecia com ela. Com a mulher dos vitrais. Até mesmo o professor Mauro vira a semelhança através das fotos antigas, sem ter conhecimento do vínculo que existia entre elas.

O ônibus parou e ela entrou. Trazia à mão um pacote de papel onde continha um sanduíche de queijo e presunto e uma garrafa com suco. Comeria seu almoço sentada dentro da estufa encantada construída por seu pai. Ah, se pudesse! Dormiria lá! Passaria dias a fio naquele lugar se reencontrando.

Chegaram ao ponto onde ela deveria descer.

Ela caminhou devagar pelas ruas até chegar a sua. Algumas crianças pulavam amarelinha na calçada. Uma mulher baixa e rechonchuda estava debruçada em um muro baixo assistindo e vigiando a tudo. Ana preocupou-se pois ela poderia estranhar ao vê-la entrar na casa abandonada. Já começou a imaginar uma desculpa. Pelo menos não viu a mulher que havia dito à ela que a casa era amaldiçoada. Pensou um pouco melhor e decidiu. Não precisava de desculpas. A casa era de seu pai.

Ao chegar diante do portão da casa do final da rua percebeu que alguém havia removido a fita branca. Havia sido as crianças? Caminhou devagar pela alameda frontal e foi arrodeando a casa até chegar aos jardins. Num momento fora do tempo, ela viu e foi vista. Uma mulher de rosto enrugado, cabelos brancos e vestido preto simples deu um sorriso quase tímido. Era um pouco encurvada. Levantou os braços cansados para ela.

—Eu sabia que viria.


****


Quando viu o ônibus parar e Ana descer, João esperou um momento. Estacionou o carro e desceu. Atravessou até a calçada onde ela caminhava lentamente e seguiu-a.  Não morava por ali, disso ele sabia. Ultimamente ela andava por lugares onde não a imaginava. De repente ficou temeroso do que poderia ver. Será que a veria nos braços de outro homem?

Viu-a virar a esquina e adiantou o passo indeciso. Manteve uma distância segura do que poderia ver. A brisa soprava sobre os cabelos dela. Quando passou por uma árvore levantou a mão para alcançar um galho mais baixo e puxou uma folha. Apreciava o caminho. Ficou a imaginar se sua leveza se devia a um encontro ansiado. Com outro.

Novamente virou a esquina.

E ele mais uma vez apressou-se.

Foi então que uma sensação de dejà vu o atingiu. Conhecia aquela rua. Aquelas árvores que lançavam longas sombras sobre as calçadas e mantinham uma postura vigilante em frente de cada uma das casas lhe causavam uma sensação de familiaridade. O cheiro de verde fresco misturado a deserto — definição tão paradoxal de sua percepção—, que emanavam das Cycas lhe despertaram uma nostalgia agridoce. As crianças que pulavam amarelinha davam risadas entusiasmadas e ele lembrou-se que havia um dia sido uma criança, mas não tão feliz. Por quê? A mulher debruçada sobre o muro riu para ele, cumprimentou-o e ele respondeu. 

Viu Ana entrar na casa. A casa. Aquela casa logo no final da rua. Seu coração disparou. Sentiu-se inseguro, com medo até. Olhou para trás. Encontrou o olhar da mulher sorridente. Sua respiração estava rápida e ele pensou em correr de volta para seu carro. Precisava de um abrigo que o protegesse da súbita sensação de perigo. Uma das crianças o olhou como se percebesse que havia algo de errado com ele. Controlou a respiração e decidiu enfrentar o que estava adiante. Caminhou para algo que ele conhecia, mas não lembrava o que era.

Diante do portão suas pernas ficaram paralisadas.

Não podia ir adiante com aquilo. Não queria.

‘Seu rosto olhando através da grade do portão para a mulher com um longo vestido azul que ondulava a cada passo que dava. Os cabelos longos e claros brilhavam sob à luz vespertina de um sábado... tão longe... Caminhava em sua direção com um sorriso nos lábios. Havia tanta doçura em seu olhos. Sua mão estava sobre o ventre proeminente.’

Era tão vívido para ele. Era apenas uma criança, mas já correra até ali, contente por escapar de sua casa e esperara com o rosto colado naquelas grades até que ela os viesse receber.

‘Não toque, João!’, ele removeu a mão pequena da barriga que acariciava, embaraçado por ter feito algo vergonhoso. ‘Não seja tão dramática, Melissa, ele só está curioso. Há um bebê morando aqui, e logo vai sair para te conhecer.’  

As batidas enlouquecidas de seu coração o instigavam a correr dali. Nunca mais queria voltar. Nunca mais queria ver a mulher que lhe inspirara tanta doçura e agora lhe trazia dor e medo. Não podia nunca mais ver Ana. Aquele era um lugar de dor.

O homem de terno preto levou o dedo sob os lábios de linhas duras, decretando sua lei de silêncio. Paralisando sua alma.’


João levou a mão aos lábios e fechou os olhos. Não podia ser. Aquilo não havia acontecido de verdade. Aquelas pessoas não existiam. Aquela casa não existia. Era tudo uma invenção de sua mente.




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