Vinte e quatro horas de felicidade. Eram assim os seus dias. Bendito o
dia em que havia pulado aquela janela e deixado o passado para trás.
Clara observava Benjamin no quintal trabalhando na pequena estufa que
estava construindo. O pequeno pavilhão hexagonal de vidro estava se tornando
encantador. Ele o montava como a um quebra cabeça. Em cada face haveria um
vitral. O rosto ruborizado pelo esforço, de vez em quando abandonava o ar
concentrado e olhava para ela sentada sobre o degrau da porta da
cozinha. Ele demorou seu olhar sobre ela, porém foram interrompidos
por palmas que vinham da frente da casa.
Ele se levantou e fez um gesto para que ela permanecesse onde estava.
Andou pela lateral externa da casa e um minuto depois estava de volta. Cruzou
os braços encostou-se à parede e disse à ela:
—Acho que você tem visita.
Ele a acompanhou até a frente da casa, mas não se aproximou. Ficou olhando
Clara ir até o portão sozinha.
—Como nos encontrou, Melissa? — o tom demonstrava impaciência.
—Não somos mais amigas? É isso? Você não está feliz por me ver.
—Não gosto do papel que faz de espiã de meu pai.
—Ora Clara! Sabe que não fui eu que a delatei. Seu pai tem muitas
maneiras de descobrir o que quer — debochou —, vim te visitar.
Olha quem eu trouxe.
Pegou a mão de uma criança que estava por trás do muro baixo, mas que
Clara ainda não havia se dado conta da presença.
—Fala ‘oi’ para tia Clara, João!
Ele abriu o sorriso que sempre tinha para ela.
—Oi, tia Clara!
Ela abriu o portão, abaixou-se e abraçou o menino.
—Oi, meu amor! Como você cresceu! Daqui à pouco já vai ser um
homenzinho.
Levantou-se, pegou o menino pela mão e o trouxe através da alameda da
casa, sem convidar Melissa, pois sabia que ela não necessitava de
encorajamentos.
—Vai conhecer, tio Benjamin. O amor de tia Clara.
—É seu namorado?
—Namorado e marido.
Benjamin sorriu para a criança.
—Ei, como vai?
Ele cumprimentou a criança apertando sua mãozinha.
—Quer ver um jogo que estou fazendo?
Ele acenou.
—É um quebra-cabeça gigante.
—Eu gosto de quebra-cabeças. Tenho vários em minha casa.
Clara esperou Melissa alcançá-la. Cruzou os braços esperando que ela
contasse as novidades da mansão.
—Seu pai está preocupado com você.
Clara fez cara de enfado.
—Preocupado, Melissa? Por favor, esse não é meu pai. Ele apresenta uma
série de sentimentos, mas preocupação não é um deles.
Percebeu que a outra avaliava tudo a seu redor, inclusive os trajes de
Clara: uma calça bege manchada de tinta e uma camisa que pertencia ao marido.
Os cabelos estavam cobertos por um lenço nada elegante e os fios que escapavam
provavelmente lhe davam um ar desmazelado. Não havia seda sobre Clara. Fazia um
contraste gritante com relação à Melissa, bem vestida e maquiada.
—Terminamos de pintar a casa à pouco tempo — explicou.
Percebeu que os olhos dela pararam sobre a aliança em seu dedo.
—Vocês estão casados? Quero dizer, você está casada com um homem que faz
você pintar casa e ainda por cima permite que você se mostre vestida assim por
aí?
Puxou Clara num canto e sussurrou, alertando-a com o olhar:
—Você cometeu um erro grave.
—Se veio aqui para isso, acredito que não há mais necessidade de me
visitar.
No olhar de Melissa havia um misto de surpresa e deboche. Clara era uma
mulher inocente que havia nascido em um berço de ouro. Caiu de amores pelo
primeiro homem com quem flertou, e ele, com interesses desonestos, aproveitou-se
da situação. Ela balançou a cabeça de um lado para o outro para afastar o
pensamento e tocou no braço de Clara.
—Desculpe-me.
Clara convidou-a a entrar na casa e Melissa chocou-se mais ainda com o
que viu. Simples e medíocre. Assim era a casa. O mobiliário bem que tentava
imitar algo elegante e clássico, mas era na verdade de segunda mão.
— Vou fazer um chá para nós.
Melissa sentou-se no sofá e Clara perguntou-lhe:
—Não quer me acompanhar?
A outra riu sem graça.
—Sim...
Levantou-se e foi à cozinha.
Melissa observou a cena diante de si. Clara colocou uma chaleira de
ferro sobre o fogão, pegou duas xícaras cor de rosa de material fajuto e
colocou sobre a mesa redonda e pequena, onde no máximo quatro pessoas se
sentiriam confortáveis. Haviam alguns biscoitos dentro de um
recipiente de vidro, ela abriu e chamou João, que veio correndo a seu encontro.
—Quer?
O menino colocou a mão dentro do vidro e a removeu cheia.
—Tenha modos, João — repreendeu Melissa.
—Tudo bem — Clara disse. — Se quiser mais pode vir pegar.
—Estou ajudando Tio Benjamin a montar o quebra-cabeça.
—Você é um menino esperto! — Clara acariciou seus cabelos.
—Cuidado para não se machucar — exasperou-se Melissa.
—Não se preocupe. Benjamin é muito cuidadoso.
Melissa a olhou crítica.
Se Edwina soubesse que Clara fazia chá em uma cozinha de quinta
categoria, quando sempre fora servida em bandeja de prata por empregados e que
seu marido parecia um peão de obras ficaria mortificada. Faria questão de
contar à ela.
—Seu pai está de braços abertos para recebê-la de volta.
Clara sorriu do talento de Melissa em descrever coisas absurdas como se
fossem as mais triviais possíveis.
—Não vou deixar meu marido — fez questão de ressaltar a última palavra.
—Estou satisfeita com ele.
Não usou a palavra feliz, já que eles não a entendiam. Também não
comentou que estava grávida.
Serviu o chá para Melissa.
—De que vocês vivem? Quero dizer, como ele paga para manter vocês? Ele
ainda estuda não é mesmo? Arquitetura? Você me disse uma vez...
Clara não gostou da especulação. Benjamin cursava Arquitetura, mas já
havia terminado o curso de Engenharia e trabalhava em alguns projetos.
—É... ele ainda estuda. Mas também trabalha. Damos nosso jeito.
—Quem sabe seu pai não o ajuda? Ele tem conexões muito importantes.
—Acho que não.
—Clara... você se precipitou. Sei que não quer ouvir isso, mas é
verdade. Mas, ainda há tempo.
— Isso mesmo, não quero ouvir isto.
Melissa levantou-se:
—Está bem. Preciso ir.
Foi à porta da cozinha e chamou João.
—Querido, vamos.
O menino veio até ela.
—Viremos visitar Tia Clara novamente?
—Se ela quiser?
—Claro que sim! Venham me ver sempre.
Clara despediu-se de Melissa. O motorista a esperava diante da casa. Não
era o motorista de Melissa, mas o de seu pai. Clara se preocupou e comentou com
Benjamin. Ele a beijou e acalmou-a.
—Ele não vai fazer nada conosco, amor.
—Como pode ter tanta certeza, não conhece meu pai?
—Ele não pode tirar você de mim, e eu sei me defender.
Clara exasperou-se com a atitude dele. Mas ele colocou os dedos sobre os
lábios dela e disse:
—Pense apenas no nosso bebê agora, está bem?
Ela suspirou.
****
Ela fez um círculo vermelho ao redor do número no calendário. 35 semanas
e 3 dias.
Acariciou o ventre e se perguntou se era uma menina ou menino. Benjamin
entrou na cozinha e trouxe-lhe um ramalhete de flores.
—Como está esse menininho? — perguntou beijando sua barriga.
Ela sorriu.
—E se for uma menina?
Ele fez uma cara de contrito e colocou a cabeça sobre o ventre de Clara.
—Oh, minha princesinha, desculpa o papai, fiz uma pequena confusão.
Levantou-se e perguntou:
—Você acha que ela me perdoou?
—Com certeza.
Ele beijou os lábios de Clara.
—Como
está?
—Melhor impossível.
—Você demorou. O que houve?
—Tivemos alguns contratempos na obra, e para piorar meu
guerreiro teve um problema no caminho.
—Oh, Ben...
—Sem problemas, dona Clara, já está na oficina.
—Não estou falando do carro, seu bobo, mas de você. Quando te imagino
naquela rodovia só, fico doente de preocupação.
Ele a abraçou e sussurrou.
—Eu não quero que se preocupe comigo. Eu sei me virar, está bem? Assim
que Clarinha nascer decidiremos se nos mudaremos para lá ou ficamos aqui.
Benjamin começara a trabalhar para uma Construtora na cidade vizinha e
fazia o trajeto de uma hora e meia, para ir e voltar todos os dias. Todas as
suas tentativas de trabalhar ali mesmo, para ficar perto da esposa resultaram
em rejeição. Fora dispensado de seu antigo emprego no segundo mês do contrato e
sabia que o dedo do pai da esposa estava por trás de seu revés. Não a
preocupava com estas questões, mas acreditava que teriam de se mudar para
melhorar suas chances de conseguir uma colocação melhor. Trancara a faculdade
de Arquitetura e dedicava-se apenas ao trabalho e a Clara. Temia não estar por
perto quando o bebê chegasse.
Naquela noite, jantaram e depois sentaram-se no jardim sob o luar.
Benjamin havia terminado a pequena estufa, e às vezes, ela ficava
admirando a sua própria imagem desenhada pelas mãos dele em um dos vitrais.
Ficou triste quando ele abandonou a faculdade de Arquitetura. Ele tinha um
talento especial para arte.
—O que vamos fazer?
Benjamin sabia que ela falava do pai. Tentava esquivar-se do assunto
para evitar-lhe preocupações, mas percebeu que ela precisava conversar sobre
aquilo.
—Não podemos fazer nada com relação a seu pai. Apenas com nossas
próprias vidas. Vamos esperar o bebê nascer e depois nos mudaremos desta
cidade. Mas, enquanto ela não vem, vamos olhar a lua?
Tentou aliviar o assunto.
Ela passou o braço no dele e pensou que nunca havia feito uma oração em
toda sua vida. Seu pai acreditava apenas em si mesmo. E ela, naquela época,
acreditava apenas no pai. Mas, talvez Deus existisse, pois os caminhos pelos
quais Benjamin entrara em sua vida descrente lhe eram misteriosos demais.
Talvez até —por algum motivo que ela desconhecia—, Deus gostasse dela, pois seu
marido era uma dádiva.
—Está bem, vamos contemplar a lua.
****
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