1970
Clara caminhou até o portão da frente para receber Melissa e João.
Percebeu que o menino ficou espantado com sua barriga. Caminharam em
silêncio até o jardim e sentaram-se diante da estufa.
—Onde está tio Benjamin?
—Ele precisou sair para trabalhar, João. Mas, vê? O quebra-cabeça já
ficou pronto. Ele estava ansioso para você voltar e ver o resultado.
—Eu falei para minha mãe me trazer — disse zangado. —Queria ter ajudado
a terminar.
Melissa fez um muxoxo com os lábios.
Eles haviam voltado uma vez mais depois da primeira, mas Melissa e Clara
discutiram e ela evitou voltar.
—O que aconteceu com a sua barriga? — perguntou João.
—Tem um presente aqui.
Ele riu.
—Não, tia Clara comeu muito.
Clara gargalhou.
—Tem um bebê aqui.
—Um bebê?
—Isso.
Ele pousou a mão no ventre de Clara.
—Não toque na barriga dela, João!
—Não seja dramática, Melissa.
—Pode ser uma princesinha, João. Você quer vê-la?
Ele inclinou a cabeça de lado e ficou olhando para o ventre de Clara,
depois deu de ombros e correu para a estufa.
—Já sabe para quando é?
—Dezembro.
—Que horas Benjamin chega?
—Por que?
—Não acho bom você ficar aqui sozinha neste estado.
—Estou bem.
Clara tinha medo de sentir as dores e Benjamin não estar ali a seu lado,
mas não compartilhava aquilo com ele, e menos ainda com Melissa. Não tinha a
mínima ideia de como comportar-se na hora do parto. Procurara ler alguma coisa
sobre o assunto, mas os livros que tinham à disposição eram mais técnicos.
Ajudaram-na pouco.
—Posso falar com sua avó. Quem sabe ela não se oferece para receber você
lá até o nascimento do bebê?
Clara enrugou a testa.
—Quantas vezes tenho que te dizer que jamais voltarei para aquela casa?
Prefiro a morte!
Exaltou-se de tal forma que João a ouviu e olhou-a assombrado com suas
palavras. Clara logo se arrependeu por causa do bebê. Acariciou a barriga num
instinto protetor e sussurrou palavras de conforto para o ser que ainda ia
chegar.
—Não quero que fale mais sobre esse assunto, está bem?
Melissa anuiu.
****
—Dr. Otho quer falar com você Benjamin.
Ele olhou para o lado, viu o motorista esperando-a dentro do carro e depois
voltou-se para ela. Seu olhar era sombrio.
O papel de Melissa na família de Clara sempre lhe parecera um tanto
grotesco. Ela parecia uma mistura de espiã, lambe-botas e tinha lá suas
suspeitas de outras atribuições. Mas aquilo já era demais. Esperar que chegasse
do trabalho e sorrateiramente abordá-lo na esquina de casa, trancando seu
carro era demais.
—Preciso falar-lhe longe de Clara, para não aborrecê-la.
Ao ver que ele continuava de cenho fechado, ela insistiu.
—É para o bem dela. Ele quer uma trégua.
Benjamin deu um sorriso irônico.
—Duvido!
—Dê uma chance a ele, Benjamin. Por Clara e por essa criança que está por
chegar. Eu percebo que ela está bastante ansiosa. Não é bom para ela.
Ele suspirou.
—Onde?
****
—Mamãe, onde vai? Deixe eu ir? Não quero ficar em casa só!
Ela foi até ele, que já estava de pijamas.
—Meu amor, já devia estar dormindo.
Virou-se para a babá.
—Conte uma história para ele dormir e coloque-o na cama.
—Já o fiz Dona Melissa, pensei que ele já dormia.
—Conte outra história e outra e quantas forem necessárias até que ele
durma — exasperou-se.
—Sim, senhora!
—Quero o papai!
—Seu pai está viajando, já te disse isso.
—Quando chega?
—Semana que vem?
—Quanto tempo é semana que vem?
Ela se virou em direção a porta impaciente.
—Deixa eu ir, mãe?
A babá o tomou pela mão e levou-o escada acima.
Melissa entrou no carro, mas então lembrou-se que havia esquecido algo.
Desceu, entrou na casa e foi em direção a seu quarto. Ao vê-la entrar o motorista
saiu do carro por um instante e esgueirou-se pelas árvores da alameda. Ela o
mataria se soubesse daquilo, mas estava apertado e não daria tempo de ir ao
banheiro.
João ouviu os passos da mãe subindo as escadas. A babá apenas o colocara
na cama de forma impaciente, ordenando-o que dormisse após ameaçar chamar o
lobisomem se ele não a obedecesse. Apagou a luz e saiu de seu quarto.
Ele saiu da cama e viu através da brecha da porta entreaberta quando a mãe entrou no quarto. Desceu as escadas,
saiu pela porta da frente e viu a porta traseira do carro aberta.
Entrou no veículo e esgueirou-se pelo compartimento da bagagem. Permaneceu
calado e quando percebeu que a porta abria-se prendeu a respiração.
Ouviu a voz da mãe.
—Aqui! Vá até este local.
Ela ia visitar tia Clara e tio Benjamin.
****
Ao chegar no local, Melissa viu Benjamin encostado no fusca.
Ele foi até ela.
—Logo ele estará aqui. Vocês resolvem isso e fica tudo bem.
Ele abaixou a cabeça e depois levantou-a, olhando para o lado. Melissa
percebeu que ele aparentava impaciência.
O terceiro carro chegou e o pai de Clara desceu. O motorista manteve os
faróis acesos enquanto Otho Braun caminhava em direção a eles.
O pai de Clara se aproximou, olhou para Benjamin e deu um sorriso
cínico.
—Sabe, você apareceu bastante às minha custas, não foi? Entrou na minha
casa, levou minha filha. E agora fico imaginando o que vai querer depois.
Benjamin olhou para Melissa confuso.
—Não quero nada do senhor. Estou aqui por causa de Clara.
—É meu dinheiro, não é? Foi isso que você desejou desde o início.
Benjamin o olhou sarcástico.
—Eu não preciso de seu dinheiro. Nem eu nem Clara.
—Nem sua cria! O que quer que seja não vai ver um centavo
meu. Tá pensando que vou aceitar meu sangue misturado ao seu?
Benjamin ficou sério, de repente, um temor cresceu em seu peito por seu
filho... ou filha.
—Não se preocupe. Não o procuraremos, jamais.
—Não me procurarão mesmo. Bem... minha filha eu quero de volta. Não a
criei para dá-la a um ser abjeto como você.
Benjamin estreitou os olhos e virou a face, suas mãos estavam no bolso.
Então, ele olhou para o sogro e disse:
—Clara é minha esposa, minha família.
Passou por ele e foi em direção à seu veículo.
Foi quando ouviu um clique metálico. Benjamin voltou-se para ele e viu a
arma apontada em sua direção.
—Dr. Braun, o senhor ainda não falou da proposta que tem para ele.
Ofereça-o dinheiro. Clara voltará para casa — Melissa pediu.
—Jamais aceitarei um centavo dele, Melissa.
Foi então que ouviram a voz infantil e Melissa sentiu-se esmorecer.
—Mamãe!
—João!? João, volte para o carro.
—Tio Benjamin!
Ele correu em direção ao grupo sem dar ouvidos a voz da mãe. Foi quando
um estampido soou na noite. Melissa voltou-se para Benjamin e cobriu a boca com
a mão ao vê-lo estendido no chão, com uma mancha vermelha espalhando-se sobre
sua camisa branca.
Otho Braun guardou a arma em seu bolso e caminhou calmamente em direção
ao carro. Ao chegar diante da criança que estava paralisada sem entender ainda
a realidade que estava diante de si, afagou seus cabelos. Agachou-se diante de
João e falou, para que apenas ele ouvisse:
—Esse será nosso segredinho, campeão.
João encarou o dono da mansão escura. O homem que ele temia, e sua mãe o
mandava chamar de senhor. O homem que ela dizia ser bom, mas ele sabia que não
era. Começou a tremer e desejou que seu pai estivesse ali.
Viu ele olhar em direção à sua mãe e colocar o dedo indicador diante dos
lábios.
Melissa não sabia o que fazer: socorrer Benjamin ou pegar o filho e
fugir dali? Optou pela segunda alternativa. Foi até João pegou-o no colo e
esquivou-se para dentro de seu carro.
—Vá! — ordenou ao motorista.
Já no carro, ela abraçou o menino que estava trêmulo. Depois levantou o
queixo do menino e olhou-o bem dentro dos olhos castanhos. As pupilas ainda
estavam hipnotizadas pelo cenário diante dele. Ela respirou fundo e sorriu:
—Meu querido, o que você viu... foi só uma brincadeirinha. Não foi real.
Acariciou o rosto dele.
—Vamos... coloque um sorriso no rosto, está bem. Você já é um
homenzinho.
—Tio Benjamim...— ele conseguiu balbuciar.
Ela olhou-o sério e disse.
—Não fale mais nesse nome.
****
Clara andava de um lado para outro. Sentia-se angustiada.
Por que ele demorava? Será que o carro havia quebrado novamente? Oh, meu
Deus! Ela olhou para o relógio. 1:30 h da madrugada.
Foi em direção a porta e saiu da casa. Foi até a calçada. A rua escura
estava deserta. ‘Oh, Benjamin, onde você está?’
Ela levou a mão à barriga e depois ao coração.
Voltou para dentro de casa. Tentou se acalmar. Se ele chegasse e ela
estivesse nervosa, ficaria zangado. Sentou-se no sofá e adormeceu.
Ele sentou-se a seu lado e sorriu. ‘Já disse para você não se preocupar,
eu sei me cuidar.’
Ela acordou com uma batida na porta. Olhou para o relógio. 6:15 h.
Por que ele estava batendo na porta?
Foi até lá e abriu-a. Um policial estava à porta. O coração dela
disparou. Ele olhou para a barriga dela e pareceu incomodado.
—Bom dia, senhora. Não quero que se preocupe, mas precisa nos acompanhar
até o hospital, seu marido sofreu um acidente.
Clara levou a mão ao coração e começou a respirar com dificuldade.
—Está tudo bem! A senhora só tem que vir conosco até o hospital.
—Ele o mandou aqui?
—Sim.
Ela o acompanhou exatamente como estava e entrou no banco de trás do
veículo. Ao chegar ao hospital ele saiu e pediu:
—Espere só um momento.
Clara o viu caminhar até a recepção e falar com uma enfermeira que olhou
em direção ao veículo. Ela fez um aceno com a cabeça e desapareceu pelos corredores hospital.
Alguns minutos depois voltou à recepção e acompanhou o policial até o carro.
Ele abriu o carro para que ela saísse.
—Venha, senhora.
Clara saiu e se dirigiu a enfermeira.
—Meu marido está bem?
—Venha, minha querida. Vamos entrar.
Ajudou-a a entrar no hospital e pediu que sentasse.
—Até logo, senhora — despediu-se o policial.
—Até logo. Obrigada.
Ele a olhou pela última vez e se foi.
A enfermeira sentou-se ao lado de Clara e tomou a mão dela. Um
sentimento nefasto se apoderou dela, apenas de olhar para a mulher.
—Quero ver meu marido, agora — pediu com sua respiração acelerada — Por
favor! Por favor!
—Eu sinto muito! Seu marido não está mais entre nós.
****
Clara gritava diante das dores das contrações uterinas.
—Tente respirar de forma regular — uma voz calma falava ao seu lado.
Lágrimas rolavam sobre sua face ruborizada. Ela gritou novamente.
—Querida, vamos ajudar essa criança a vir ao mundo? Ela precisa de sua
força.
Clara olhou para a mulher. Seus olhos estavam marejados de lágrimas e
ela deu um soluço profundo, depois respirou fundo e murmurou:
—Está bem!
—Quando eu disser para fazer força, você faz. Do contrário apenas
respire.
Então deu-lhe a mão.
Meia–hora depois ouviram o choro de um bebê.
—Parabéns, Clara. Você tem uma linda menininha.
Limparam a criança, trouxeram-na para Clara e a aconchegaram a seu
peito. Ela chorava desconsolada. Então, quando a boca pequena e perfeita
encontrou o seio, começou a sugá-lo.
Lágrimas desciam da face de Clara quando ela aconchegou a face sobre a
cabecinha do bebê. Buscava conforto no pequeno ser.
Foi então que percebeu alguém entrar na enfermaria e parar próximo a seu
leito. Ao levantar o olhar viu Obedina.
Ela não aguentou e começou a soluçar. A mulher colocou a bolsa sobre a
mesinha ao lado do leito de Clara e foi até ela.
—Benjamin se foi!
—Eu sei minha querida. Eu sinto muito.
O bebê soltou o seio e começou a chorar.
—Querida, você precisa ser forte por ele — olhando para o bebê.
Clara olhou para o bebê e disse:
—Ela. É uma menina.
****
Exausta Clara pegou no sono. Obedina olhou para a menina e comoveu-se.
‘O que será desta criança?’ O pai de Clara deixara claro que
receberia a filha. Caso ela tivesse um menino ele estaria disposto a
recebê-lo, mas uma menina jamais.
Uma enfermeira entrou no quarto e pediu que Obedina a acompanhasse para
assinar alguns papéis. O bebê dormia, então ela não se preocupou.
Clara dormia profundamente, mas acordou ao ouvir vozes. Parecia que sua
companheira de enfermaria recebia visitas. Ela permaneceu com os olhos fechados
e tentou conciliar o sono novamente.
—Essa aí é que é a mulher do homem que foi assassinado?
—Ela mesma. Coitada, teve que lidar com a dor da perda e a do parto.
Pensei que não aguentaria.
Clara abriu os olhos. Assassinado? Benjamin não morrera em um acidente?
Ela olhou em direção as duas mulheres que se calaram.
—O que vocês estão falando sobre assassinato? Meu marido morreu em um
acidente.
As mulheres se entreolharam e uma delas comentou.
—Desculpe-nos. Pensei que você era a mulher do homem que foi encontrado
na ponte com um tiro no peito.
Os olhos de Clara se arregalaram. Ela removeu o lençol e levantou-se da
cama. A visitante tentou impedi-la, mas não conseguiu.
Ela foi até a porta da enfermaria e olhou em direção a Obedina que
voltava acompanhada da freira.
—Aquele assassino matou meu marido! — gritou histérica.
Obedina correu até ela.
—Calma, Clara!
—Assassino! Meu pai é um assassino!
Como se não houvessem mais gestos para expressar sua angústia, rasgou a
camisola e caiu de joelhos. A visitante ficou apavorada com o estado de
Clara, sentia-se culpada por ter falado demais. O bebê começou a chorar. A
freira e Obedina levantaram-na e a carregaram de volta ao leito.
—Por que aquele homem vil não nos deixou em paz?
—Minha filha, tenha calma. Você está assustando o bebê.
Então Obedina olhou apavorada para o lençol que se ensopava de sangue.
—Pare, Clara. Por favor! — implorou Obedina.
—Ele matou Benjamin! Por que?
A freira correu para chamar o médico. Ao chegar e olhar para os lençóis
seu olhar tornou-se sombrio.
Obedina tentava acalmá-la enquanto o médico e as enfermeiras realizavam
procedimentos para estancar a hemorragia. A respiração de Clara foi se tornando
cada vez mais fraca. Obedina segurava suas mãos frias e tentava transmitir-lhe
um pouco de calor vital. Clara aquietou-se e olhou para a filha, depois para
Obedina.
—Não o deixe chegar perto dela.
—Por favor, pare.
—Não o deixe chegar perto dela.
Ela fechou os olhos.
****
Obedina chegou a mansão e foi ver Edwina.
A mulher olhou-a de forma dura.
—Onde está ela?
—Sinto muito, senhora. Sua neta faleceu.
A mulher levantou o queixo.
—E o bebê?
—O bebê também não sobreviveu.
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