sábado, 19 de março de 2016

AS AVENTURAS DE LADY BEATRIX



NAVEGAR POR TERRA,


CÉU,


E MAR


É SEU DESTINO.





AS AVENTURAS DE LADY BEATRIX - PRÓLOGO

ESTE É O PRIMEIRO CAPÍTULO DE UMA SÉRIE INFANTO JUVENIL CHAMADA 
AS AVENTURAS DE LADY BEATRIX.

AS POSTAGENS DO BLOG SÃO GRATUITAS.

ESPERO QUE APRECIEM A LEITURA!






Lady Beatrix como alguns podem pensar não era de nobre estirpe, sangue azul não corria em suas veias. Era filha de um homem que já havia passado, e de cuja genealogia não se podia contar, um nômade, criador de poções, inventor de esquisitices imprestáveis, e adivinhador do tempo sem muito prestígio e exatidão.

Vivia a chamar-lhe de Lady pois dizia que num passado muito distante um nobre fizera parte da família. E seu batismo de Beatrix, ele a olhava com um brilho de afeição, era porque ela era sua estrela de navegação para a felicidade. Ela era uma viajante.

Sua mãe, ele declarou-lhe uma vez a título de explicações sobre laços familiares, morreu no parto.

— Mas antes me fez muitas recomendações sobre sua educação.

Porém, um tempo depois, Lady Beatrix ouviu uns buchichos, e começou a desconfiar que a mãe havia batido asas depois de cansar da vida de cigana que levava ao lado do marido.

Em uma noite fatídica depois de beber muito hidromel e cantar ao redor de uma fogueira, seu pai foi dormir e nunca mais acordou. Lady Beatrix entrou em choque. Estava só no mundo dos homens. Chorou, chorou sem saber como continuar, mas acabou por pegar o legado do pai — seu carroção e as muitas tranqueiras que carregava —, e continuou a peregrinar pelo mundo.

Prosseguiu em preparar as poções para fazer crescer os cabelos dos carecas. Fórmula esta, que de acordo com seu pai ativava a árvore capilar adormecida por causa de sustos mal resolvidos. Outras das poções de Lady Beatrix era a de fazer os magros engordarem e os gordos emagrecerem. É claro, que nunca ficava muito tempo em um lugar para ver se faziam efeito ou não. E de acordo com a posologia medicamentosa era necessário no mínimo sete luas novas fazendo uso do bálsamo para se verem os resultados, e dar tempo de ela sair estrategicamente da cidade.

Apesar de ter sentido muito a partida do pai, a menina superou a dor, afinal como dizia seu pai, o mundo não dá par quem precisa, só para quem abasta.

Lady Beatrix, do alto de seus quatorze anos erguia a barra do seu vestido lilás, único que tinha, jogava para trás os cachos castanhos, subia no carroção e fazia o velho pangaré andar.

Em uma de suas andanças, ao entrar em uma aldeia para vender uma de suas poções, viu-se em meio a uma algazarra. A população procurava por um malfeitor que havia roubado dois pães da padaria de Monsieur Pierre. Lady Beatrix teve pena do pobre coitado quando caísse nas mãos de tão ruidosa turba. Devido à comoção popular que queria de toda forma levar o gatuno a juízo, Lady Beatriz não teve muita sorte ao vender suas poções, o que a aborreceu, já que após uma rápida sondagem das pessoas que se aglomeravam na praça prospectou muitos clientes.

Conde Pauli, prefeito do vilarejo, discorria longo discurso sobre a necessidade de livrar a aldeia de gente de nível suspeitoso. Apesar de seu bigode fino e de pontas voltadas para cima, Lady Beatrix logo percebeu a ausência capilar do prefeito que tentava disfarçar o defeito com uma peruca longa, com cachos pretos que lhe dava uma aura de poder sombrio. Seu discurso estava recheado de palavras que lhe causaram certo desconforto, pois algumas perpassavam justamente pela natureza itinerante de Lady Beatrix

Esses errantes! Andarilhos! Todo cuidado é pouco!

O dono da padaria era um sujeito alto e magro, e a fórmula super vitaminada de seu pai lhe acrescentaria um bom recheio. Já o reverendo faria bom uso de sua receita de emagrecimento que para fazer efeito e misturar-se bem aos humores do corpo, fazia necessário que o usuário corresse 3000 braças após 1 colherada.

Sentiu muito, pois daquela vez perderia a oportunidade de fazer uma boa venda.

                                                                         ****


Logo será postado o próximo capítulo!




domingo, 13 de março de 2016

segunda-feira, 4 de janeiro de 2016

CALDAS BRANDÃO - UM PEQUENO CONTO DO DESTINO - CAPÍTULO 1

Recife - 1911

Os saltos de madeira emitiam um ruído oco sobre o chão lamacento, por causa da chuva da madrugada. Gotículas saltavam por todos os lados e salpicavam de pingos marrons a barra de sua saia. Comerciantes abriam as portas dos armazéns e feirantes expunham seus víveres em quitandas sobre a calçada, esperando os fiéis compradores. Em pouco tempo o local estaria abarrotado de gente. Mulheres em busca de uma pechinha e empregados, com cestos sobre a cabeça, enviados por seus patrões para conseguirem frutas e verduras mais frescas e carnes vermelhas, ainda cheirando a sangue fresco.

Os pés de Maria Gentil doíam. Estava desacostumada a usar aqueles sapatos, mas por desejar causar uma boa impressão, decidiu-se por carregá-los.

Apressou o passo quando chegou à rua onde os vestígios das mudanças aceleradas e atravancadas a deixavam irritada. A era das demolições e reconfigurações parecia não ter mais fim, ouvia-se, até, que estava apenas em seu começo. Era o começo do fim. Tudo seria rearranjado. O velho substituído pelo novo, pois o propósito era avançar, se para o bem ou para o mal, só o oráculo do futuro é quem poderia dizer. Ela seguiu pela Rua Bom Jesus e passou diante do Banco, que escondia em suas bases, fragmentos de uma cultura e fé execradas, como sua mãe costumava sussurrar aos seus ouvidos, entre as quatro paredes do quarto onde viviam, para que ninguém soubesse, sequer imaginasse, que elas, também, eram restos, que haviam sobrevivido teimosamente na superfície da vida através do tempo. As histórias ficavam amalgamadas no cerne da alma, mas se constituíam em um segredo a ser guardado e mentido no mundo dos homens. Um longo silêncio debaixo de pedras, que talvez, um dia, clamassem.

Suas vidas continuaram. Um reino decadente, diante do que um dia haviam sido e da promessa irrealizável do que poderiam voltar a ser. A mãe, viúva, com quatro filhos para criar só, vivera entre a lealdade a história de seus antepassados e a amargura, mas morrera de olhos abertos, enxergando um tempo de glória que nunca viveu, apenas ouvira falar, e que fez parte de suas fantasias de criança. Todos os dias, confrontada pela realidade da pobreza, à espera de dias melhores que nunca bateram a sua porta, chegou a confidenciar à filha, que talvez, o sangue deles afinasse ao longo dos anos, e, quem sabe, ela seria mais feliz. Deveria apenas calar.

O sol já ia alto, despistando o dia da atmosfera chuvosa, que havia tomado a noite anterior. Ela atravessou o largo do Corpo Santo com pressa, constatando num relance, o fim que se avizinhava, com a força inexorável de um juízo final.  O mundo ao seu redor desabava diante da ferocidade do progresso. Os pequenos seres que dele faziam parte, indefesos e assombrados diante do cenário apocalíptico que os abatia, corriam em busca de outro abrigo, como ratos, que acabam de ter seu valhacouto descoberto. Ela, também, corria em busca de amparo, antes que acabasse enterrada ali, debaixo dos escombros da desesperança, sem que houvesse bocas para contar sua história.

Seu salto ficou preso entre dois paralelepípedos de pedra portuguesa fixadas toscamente no passeio. Seu pé deslizou para fora do sapato e ela pisou no chão com a meia branca e fina, — a sua melhor —, deixando sua base úmida e marrom. Uma exclamação exasperada escapou de seus lábios.

Voltou dois passos para recolocar o pé no calçado, quando percebeu o brilho fosco, debaixo da água lamacenta e mal cheirosa. Removeu a luva e contendo o asco, enfiou os dedos através do líquido frio, trazendo consigo uma moeda de bronze. 40 réis. Os dizeres em filigranas rodeavam o número, num conselho, para quem tinha a geleia da cabeça laureada com esperteza: a economia faz a prosperidade. Sorriu agradecida para a sorte. Colocou o donativo na bolsinha e seguiu em frente, mais animada, mas não distraída. Queria impressionar pela pontualidade, por isso, saíra bem mais cedo de casa. Precisava ainda pegar o bonde, e as mulas não estavam mais a andar lépidas, como se também pressentissem que estavam a caminhar em direção a seu fim. A efemeridade coalhava o ar.

Fixou os olhos ao longe, em busca do movimento dos bondes, quando, inesperadamente, sentiu um puxão violento em seu braço, e seu chapéu caiu. ‘Aonde vai com tanta pressa, boneca?’

Seu coração disparou e a boca secou. Ainda que soubesse que aquele lugar era habitado por todo o tipo de gente, e ela estivesse andando sozinha, — vulnerável a todo o tipo de atenção desagradável —, em todas as suas idas e vindas, jamais fora abordada daquela forma por ninguém, ainda que percebesse alguns olhares de malícia vez ou outra.

O homem vestido em um terno escuro, não era qualquer. Embora estivesse com a barba por fazer e hálito alcoólico, suas roupas eram bem cortadas. Duvidava que fosse um boêmio, já que esses voltavam para casa ao raiar da luz da matina. Era na verdade um gatuno oportunista em busca de presas fáceis. E ela estava na vez.

Seu olhar feroz a arrepiou.

— Deixe-me! — ela puxou o braço, levada pelo sentimento de pavor e abaixou rapidamente para pegar seu chapéu.

Mas ao invés de se sentir acuado pelas pessoas que voltavam-se para eles com curiosidade, aproveitou o movimento que ela fez para recolocar o chapéu e puxou a bolsinha de tecido que segurava.

—Não! — gritou ela.

Ele a abriu, removeu todas as moedas, inclusive a que ela acabara de achar, desmanchou a dobra de um papel, que estava entre os parcos pertences encerrados na bolsinha, e leu atrevidamente seu conteúdo, — o endereço rabiscado do destino de Maria. Amassou-o desdenhoso e jogou longe.

Com o coração desfalecido, ela correu em busca do papel amassado e o resgatou com mãos trêmulas.

Ressentido pelo atrevimento dela em dar-lhe as costas, agarrou-apelo braço e arrastou-a, empurrando-a violentamente contra uma parede. O medo e o choque a impediram de falar. Seus olhos se arregalaram diante do rosto retorcido pela maldade.

— Não deves sair por aí, sozinha! — cuspiu contra seu rosto enquanto o segurava com mãos sujas e rudes.

Ela reagiu, empurrando-o com toda sua força e escapou dele. Mas como que para afrontá-la, perseguiu-a, beliscou sua nádega e deu uma gargalhada zombeteira.

Maria correu com o coração na mão. Os sapatos horríveis a maltratavam e por pouco ela não os deixou no meio do caminho. Ainda podia ouvir atrás de si o ranço maldoso de sua risada. Só parou quando chegou diante do arco arquitetônico amarelado que fazia fronteira com a longa escadaria da igreja. Olhou para trás ofegante e percebeu que estava segura.

Sua mão direita segurava a bolsinha vazia e a esquerda apertava furiosamente o papel amassado. Imaginou que sua aparência estaria deplorável. Todos os fios de cabelo que ela havia cuidadosamente arranjado, desalinhados. E se sua face espelhava o que estava em seu interior, as pessoas poderiam enxergar o assombro.

Quando finalmente seu coração não mais pulsava em sua garganta, ela enxugou a face com o lenço perfumado com lavanda, que para sua sorte havia deixado no bolso da saia verde musgo e as mãos grosseiras não haviam tocado. Respirou profundamente a fragrância, para que ela invadisse seus sentidos. Um soluço quis escapar de seus lábios, mas ela o abafou. Não era o momento para sentir pena de si mesma.


Tentou arrumar os cabelos como pôde e marchou como um soldado diante da guerra iminente e inevitável, sabendo que nada mais o espera adiante, a não ser, a morte. O bonde vinha lentamente. Ela o parou, entrou e não pagou. O guia, com seu bigode escuro de pontas viradas para cima e chapéu da Pernambuco Street Railway ficou olhando para ela inquisidoramente, esperando pelo tilintar das moedas. Ela baixou os olhos, deixando metade da face encoberta pelo chapeuzinho ornamentado com minúsculas flores, lilás e rosa, como se assim pudesse ficar invisível. Ele fez um muxoxo com a boca e enrugou a testa. Murmurou palavras ininteligíveis consigo mesmo e seguiu adiante com a direção. 


CALDAS BRANDÃO - CAPÍTULO 2

Ao descer do bonde, ficou parada na calçada por um instante, orientando-se no bairro, buscando os sinais que indicariam em qual direção deveria ir. Os pés doloridos e calejados tentavam-na a remover os sapatos e massagear os pés, mas se o fizesse não os colocaria mais. Encontrou seu ponto de referência e continuou em sua missão, até que parou diante do palacete em estilo neoclássico da Madalena, onde um grande portão de ferro separava os transeuntes de seu pórtico. Um sino estava pendurado na entrada, inalcançável para alguém de pequenas proporções, como se para selecionar pela altura quem poderia incomodar os habitantes daquele lugar. Ela deu um pequeno salto e alcançou o badalo, fazendo o bronze soar.

Viu quando uma cabeça a espiou da lateral da casa. Com passos curtos, cabelos cuidadosamente arrumados e presos em uma fita negra, um anão vestido com atilamento dirigiu-se a ela. Olhou-a com altivez e frieza calculada. Não disse uma palavra, fazendo pouco caso de sua pessoa, como se não merecesse que ele lhe dirigisse a palavra.

—Fui enviada pela Sra. Eudóxia Soares de Alcântara e pela Madre do Convento Santo Ignácio. Fui recomendada para a posição de camareira — falou com firmeza na voz. Esperava que o nome que acabara de mencionar tivesse soado respeitável o suficiente e que ele o reconhecesse.

Meio contrafeito, ele abriu o portão e levou-a até os fundos, de onde entraram na cozinha.

—Espere aqui! — ordenou pomposo com sua voz anasalada, abandonando-a com sua ansiedade.

Ela permaneceu em pé no canto da cozinha, apertando a bolsinha de cetim rosa. Avaliou admirada as torneiras douradas, o grande balcão de mármore branco, pedra que ela achava mais apropriada para um cemitério, e a mesa de madeira de lei lustrosa e escura. Uma janela grande abria-se para o jardim dos fundos de onde podia ser visto um caramanchão rodeado de rosas amarelas e vermelhas. Cada elemento, cuidadosamente criado para aquela casa, inspirava conforto desmedido. Luxo. E ela ainda estava na cozinha.

O mordomo voltou, e do alto de sua arrogância emprestada, pediu que o seguisse a outro cômodo, com decoração rococó, onde uma mulher estava sentada em uma poltrona Luiz XV, próxima à janela.

A luz rarefeita do sol iluminava a figura encorpada e de seios fartos. A cabeça pequena e bem feita parecia que havia sido colocada naquele corpo por engano, enterrada nele, sem pescoço visível. Os cabelos finos e loiros estavam puxados em um coque distinto, evidenciando a rigidez dos traços de seu rosto, emoldurados pela renda alta que se erguia da blusa bege. A pele branca era quase translúcida, deixando entrever pequenos vasos avermelhados nas asas laterais de seu nariz, pontudo e aristocrático.

Ela não levantou os olhos da xícara de porcelana, que levava aos lábios. Bebericou o líquido fumegante lentamente. E no silêncio, quase sepulcral daquele instante, Maria Gentil ficou observando aquele quadro sofisticado, pintado em aquarelas cujas cores não tocavam seu mundo. A mulher de atitudes monárquicas agia como se ela não estivesse ali, ou fosse insignificante demais para que lhe prestasse atenção. Estava solitária e exilada daquele momento, apenas assistindo de fora todos os detalhes que se desenrolava diante dela, sem ela.

Ficou esperando que a personagem daquele quadro, por fim se desse conta de sua presença e a convidasse para dele fazer parte. Aguardando em silêncio, com a respiração suspensa, pela palavra que poderia mudar seu destino.

Quando, finalmente ela fez uma pausa em seu ritual do chá, virou o rosto e fitou Maria. Os olhos escuros e pequenos a atingiram em cheio. Havia enfado e desprezo neles.

Maria sentiu-se desconfortável diante do exame. Apertou sua bolsinha com nervosismo, como se fosse sua tábua de salvação. Embora houvesse chegado ali com grandes esperanças, começava a duvidar da possibilidade de ficar com a posição.

—Você é muito jovem, — a voz aguda, quase esganiçada ecoou na sala. —Tem mesmo experiência como camareira?

—Sim, senhora. Trabalhei com a família Van Deelens por oito meses, mas eles voltaram à Holanda e não pude acompanhá-los devido à saúde frágil de minha mãe que...

A mulher levantou a mão num gesto autoritário, interrompendo o resto de sua explicação, deixando claro, que não estava ali para ouvir desabafos. Pegou a xícara e recomeçou seu ritual, como se apenas o som da voz da moça tivesse exaurido suas forças. Maria ficou a imaginar quanto tempo mais deveria esperar para que se dirigisse a ela novamente. Dessa vez, a xícara ainda estava diante dos lábios da mulher quando ela falou.

—Irmã Gretchen recomendou-me você. Disse-me que é disciplinada, e que acima de tudo, não é dada a mexericos e conhece seu lugar, ainda que eu esperasse alguém com o dobro de sua idade. O senhor meu marido foi nomeado Conselheiro da cidade de Filgueiras, e logo partiremos. Se não pode nos acompanhar por causa da saúde frágil de sua mãe, acredito que não nos serve. Portanto pode se retirar.

Pousou a xícara no aparador e tocou um sininho para que o mordomo viesse reconduzi-la à rua.

Maria, embora intimidada pelas palavras e atitude esnobes da mulher foi rápida ‘Senhora, posso acompanhá-la. Minha mãe faleceu e preciso do emprego. ’
O mordomo num instante estava à porta, mas foi dispensado por um gesto impaciente da mulher.

—Quero alguém que cuide das minhas necessidades e das de minha filha.

Mal terminou de falar e uma moça fidalga, de beleza irretocável entrou na sala.

O semblante da mulher mudou. Se era possível que aquela face soturna se iluminasse, foi exatamente isso que aconteceu.

—Adelaide, querida! Que bom que chegou para me ajudar nessa tarefa desgastante de escolher novos serviçais.

A moça, uma polegada mais alta que Maria, começou a avaliá-la com minucioso desdém. A pele clara como a da mãe, era viçosa, e tinha o brilho de uma pérola. Os cabelos negros, longos e fartos estavam presos em ambas as laterais por preciosas e lerdas presilhas de tartarugas. Segurava nas mãos um pequeno chapéu com detalhes em cetim azul. O pescoço longo — e que faltava à mãe — fazia com que Maria pensasse em um cisne, como os das gravuras de livros que lia. Os olhos eram escuros e amendoados. Toda a sua aparência era a de uma princesa de contos de fada, no mundo real. E as palavras que vieram depois acabaram por confirmar sua magnificência, tão alheia ao mundo mesquinho dos homens.

—Duvido que ela saiba desempenhar as tarefas, mamãe. Não estou disposta a aturar serviçais preguiçosas e inábeis. Vamos esperar pela que serviu a família holandesa.

—Ora, querida! E não é esta mesmo, que nos foi recomendada por Irmã Gretchen? Fico até a duvidar.

—Senhora, posso garantir que trabalho com dedicação. — atreveu-se a emitir um som.
Adelaide ficou irritada com o atrevimento e intromissão no diálogo que transcorria entre ela e sua mãe.

—A senhora é quem decide, mamãe. Mas não aceito ajuda de segunda qualidade. E assim dizendo, deixou a sala sem se despedir da mãe ou lançar um segundo olhar a Maria.

—Permaneceremos por mais alguns dias em Recife, você nos servirá e decidiremos se é capaz de nos satisfazer. Esses estrangeiros, além de serem pouco exigentes, não sabem avaliar como se deve. Veremos se realmente é dedicada.

Os oito meses, durante os quais servira a família holandesa, foi para Maria, um despertar em um mundo onde só conhecera nos livros. Seus ouvidos foram abertos para o idioma gutural. Seu paladar se acostumou a novos sabores onde o doce se misturava ao salgado. A fragrância de Chipre do velho mundo despertou sua imaginação.

Seus patrões eram ricos e cultivavam a arte e literatura em seus salões, mas a despeito de sua vantagem social, não eram desagradáveis. Não a elogiavam, e tampouco a desprezavam. A senhora da casa havia desejado levar Maria com ela para a Europa, mas o sentimento de obrigação para com a mãe doente havia falado mais alto. Seus irmãos pouco ajudavam e a irmã já casada havia se recusado a auxiliá-la.

Quando a família partiu, Maria viu o conto de fadas do qual fizera parte por apenas um instante se esvair. Após quatro meses a mãe faleceu. Maria foi viver de favor na casa da irmã que vivia a insistir que devia casar-se, pois não poderia alimentar mais uma boca por muito tempo. Encontrou para ela um pretendente. Era um ferreiro rude, meio surdo e que estava disposto a aliviar os ombros da irmã da responsabilidade. Sem falar que, para ele, seria extremamente difícil encontrar uma moça com sua aparência e que o quisesse que não fosse por grande necessidade. Os cabelos escuros de Maria destacavam sua pele de porcelana. E misteriosamente, apesar do berço simples era polida e culta. Um troféu para exibir.

Maria começava a ficar sem saída, a irmã a constrangia o tempo todo, ainda que ela a servisse sem reclamar. Ao descobrir-se grávida, passou a precisar mais de Maria, mas deu um ultimato. ‘Quando o bebê nascer terá que seguir seu rumo. ’

Maria procurou Irmã Gretchen no Convento Santo Ignácio e pediu-lhe auxílio. Por anos sua mãe servira na igreja e levava Maria para ajudá-la. Fora Irmã Gretchen quem a havia introduzido na casa dos holandeses anos antes. ‘Irmã, preciso de trabalho’, a voz trêmula sussurrou diante das lápides com nomes de famílias nobres e de religiosos, que empilhavam-se ao longo da parede monástica até o teto.

—Calma, Maria. Tenha fé! Vou procurar uma família para você — disse a idosa com as mãos escondidas debaixo do hábito escuro. — Já tenho uma em mente. Apenas tenha paciência.


Maria deixou o convento mais aliviada, porém, apenas três meses depois, foi que Maria Gentil acabou entre os ramos da nobre família do Conselheiro Caldas Brandão. 


CALDAS BRANDÃO - CAPÍTULO 3

A viagem de trem para a nova cidade onde o Conselheiro se instalaria para desempenhar sua função não foi desagradável, ainda que sua patroa não conseguisse parar de bufar um segundo por causa do calor e da monotonia. Agitava seu leque polonês diante da face ruborizada e revirava os olhos, como se fosse ter um colapso a qualquer instante. Adelaide mantinha os olhos fechados por causa de sua enxaqueca, e de vez em quando, aspirava seus sais que pouco operavam em sua indisposição. O Conselheiro, homem de baixa estatura, taciturno e calado, lançou à Maria apenas um olhar, através das lentes de seu pince-nez, e depois cochilou com as costas eretas, cartola sobre a cabeça e mãos apoiadas sobre a bengala florete. Nem mesmo seus bigodes brancos tremiam, quando ele suspirava em seu calmo sono.

Quando o apito do trem soou anunciando sua chegada à plataforma, Adelaide se contorceu, e Dona Ana suspirou em aflição. O Conselheiro por sua vez, abriu os olhos tranquilamente e esperou até que Onofre Portaglia, o anão, viesse ajudá-lo com seus poucos pertences de mão.

Chacoalharam durante mais uma hora, dentro de uma carruagem que os levou por uma estrada sinuosa e esburacada para a pequena cidade de Filgueiras. A cada sopapo da carruagem, eles eram lançados um sobre os outros e Dona Ana agitava-se mais, murmurando e reclamando diante do marido fleumático.

Ao olhar, através da janela, Maria Gentil enxergou em um campo à beira da estrada um homem a derrubar árvores. Colocava o machado à raiz e desferia golpes violentos contra a madeira. Um rastro de tocos enfileirava-se atrás dele. A cidade aproximava-se. Não parecia muito promissora. Apesar de possuir um casario colorido e atraente, com um comercio central fervilhante, era pequena e poeirenta.

A carruagem atravessou a cidade sob os olhos curiosos dos moradores. E quando parou diante de uma casa muito parecida com a dos Caldas Brandão no Recife, mas em proporções bem menores, teve a impressão — com o empréstimo da hipérbole —, que o cenário era bastante semelhante com aquele que se dera com a chegada da família real ao Brasil. Uma banda tocava, para tormento de Adelaide, que ameaçava vomitar. Um grupo de homens usando chapéus-panamás e bengalas estava acompanhado de suas senhoras com chapéus de penas na cabeça à moda parisiense e saias longas tubulares. Abanavam-se esbaforidas e impacientes devido ao calor sufocante, enquanto esperavam para prestigiar o novo Conselheiro.

Angustiada pelo desconforto, Adelaide recolheu-se a casa com o auxílio de Maria Gentil. Mas Dona Ana obrigou-se a permanecer ao lado do Conselheiro.

Após um longo e torturante jogo de cena, para conhecimento e agrado dos figurões da cidade, a família retirou-se. Dona Ana estava atordoada por sua função de matrona da sociedade. Aquelas atividades lhe eram terrivelmente desgastantes, mas tinha que encará-las com a dignidade devida a posição proeminente do marido. Sempre que chegava de uma dessas cerimônias ou celebrações, ela removia o vestido e ficava apenas com suas combinações francesas. Sentava-se próximo à janela, colocava as perninhas roliças em cima de um banquinho, e Maria tinha que abaná-la, como um escravo asiático fazia com seus senhores, até que suas faces rosada e suadas voltassem à cor normal e ela adormecesse. Servir Adelaide era bem mais fácil, ela só se tornava realmente intratável quando Augusto Barros, um bem-nascido sem talento de família importante da cidade vinha cortejá-la.

—Ai, sua ignorante! — reclamava Adelaide todas as vezes que Maria apertava os cordões de seu corpete por sua própria insistência, para destacar ainda mais a cintura mais vespiana da cidade.

—Me desculpe, senhora.

Adelaide ignorou seu pedido.

—Dê-me a escova — ordenou ela. Maria acabara de escovar e arrumar seus cabelos, mas a jovem patroa pegou o espelho de prata incrustado com ametistas, contemplou sua imagem e passou a escova nos cachos que haviam sido elaborados com cuidado.

—Precisa melhorar suas habilidades se quer mesmo ficar com este trabalho. Não está cuidando de qualquer cabelo — suspirou exasperada. —Infelizmente, não peguei o tempo das negras, que realizavam seu trabalho com mais afinco. Vovó e mamãe tiveram mais sorte que eu. Aquela princesa nos prestou um desfavor!

—Vou melhorar, senhora.

—Pegue meu vestido!

Maria ajudou-a com o vestido rosa pastel com excesso de rendas e babados comprado na modista francesa da Rua Imperatriz. A despeito de sua bela aparência, seu gosto por moda, voz e atitudes eram infantis. Adelaide era um bibelô, cujas vontades eram todas satisfeitas.

Após ajeitar o chapéu sobre seus cabelos, e pegar as luvas que ela colocou com má vontade, Adelaide deixou o quarto com a cara azeda, mas colocou um sorriso doce nos lábios ao encontrar o Sr. Augusto Barros que a esperava na sala principal. O jovem demonstrava muito gosto em galanteá-la e as famílias já começavam a fazer planos para os dois e possivelmente dentro de alguns meses estariam casados.

O tempo transcorria como sempre em Filgueiras: enfastiante.

O anão Onofre era, na opinião de Maria, um prepotente, e tratava suas funções de mordomo como se estivesse desempenhando um cargo público. Vestia-se todos os dias como se fosse atuar em um espetáculo de criação de própria autoria, e neste, ele, Onofre e não o Conselheiro era o ator principal. Vivia a esquivar-se dele para não bater de frente com sua petulância. Certa vez, aproveitando-se de um raro tempo livre para si mesma, Maria sentou-se à mesa na cozinha para tomar café, quando ele surgiu.

—Porque está tomando chá na porcelana da casa? Já deveria conhecer seu lugar.

—Estou tomando café — confrontando-o com a resposta correta ao comentário errado.

—Não importa se é chá ou café — apontou com seu dedinho para um jogo de xícaras de vidro branco e barato que estava em uma prateleira acima da cabeça de Maria, — aquelas são as xícaras de seu uso.

Ela passou a nutrir um desprezo mudo por ele, e se digladiavam com olhares pouco lisonjeiros.

Certa manhã, do mês de março, como todo dia que começa ensolarado e embalado pelo canto dos pássaros prenuncia boas horas, aquele começou. Os empregados acordaram cedo para realizar suas tarefas, o Conselheiro tomou seu café da manhã e saiu de casa, enquanto, que as senhoras, ainda repousavam para descansarem o corpo, eternamente fatigado. 

Para estranheza dos que presenciaram o evento, uma nuvem escura, repentinamente encobriu a terra, tornando o dia em noite. Foi um fenômeno passageiro, mas de tão marcante, confundiu o galo, que cantou novamente no começo do novo dia, produzido artificialmente por aquele efeito anormal. O anão olhou pela janela, para ver do que se tratava. Uma das empregadas parou de varrer o quintal e olhou para cima, jurando depois de muitos ocorridos já passados, supostamente desencadeados por este, que havia enxergado um ser escuro a voar sobre a cidade. Maria passava alguns vestidos e parou, ao perceber que a luz do sol fora, de repente, apagada.

Aqueles minutos de misteriosa causa, observado pelos habitantes de Filgueiras, marcariam para sempre a mente dos supersticiosos como o começo do que veio depois.

O primeiro choro foi o de uma criança. A filha do dono da barbearia. E depois foram outras crianças, e daí, um adulto após o outro. Correu o boato que era a bubônica, e não sobraria nenhum vivo. O prefeito reuniu a comunidade para desmentir o rumor maldoso. O Conselheiro foi chamado para ajudar a apaziguar e informar os incautos. ‘Quem já se viu tamanha estupidez ser dita?  Não há peste em nossos dias. ’ Mas depois, veio a dúvida sobre suas palavras, e então a certeza de que ele estava mesmo errado.