quinta-feira, 14 de maio de 2015

A CASA - CAPÍTULO 3

João chegou em casa e ao passar através do portão, percebeu que havia um carro estacionado diante do pórtico principal. Reconheceu o veículo de uma das amigas de sua mãe.

-Meu filho, que bom que chegou. Estávamos aqui, agora mesmo, falando em você.

Ela pousou a xícara de porcelana sobre a bandeja, levantou-se e foi até ele. Encaixou o braço no seu, e afetuosamente o atraiu até o centro da sala de visitas. Ele cumprimentou as amigas da mãe, e foi constrangido a sentar-se entre elas.

-Eduarda acabou de entrar na mesma faculdade que estuda. Você poderia ambientá-la no Campus. Ela ainda está um pouco perdida.

-Parabéns, Eduarda. Não tinha ideia que estava estudando para o vestibular.

-Quase não nos vemos, eu acredito que seja por isso.

-As primeiras semanas são meio turbulentas para calouros. Espero que não tenha tido nenhuma experiência difícil.

-Teve, sim! -Graziela interferiu. -Fiquei tão preocupada quando vi minha filha entrar em casa coberta de tinta e ovos. Você não tem ideia!

-Infelizmente, é de praxe.

-Meu filho, você poderia buscar Eduarda semana que vem, assim, poderiam ir juntos... pelo menos neste início de semestre.

-Claro... por que não? Geralmente saio de casa às oito da manhã, Eduarda. Não sei se o horário é bom para você pois, na verdade, já paguei todos os meus créditos. Agora só vou ao Campus para pesquisas, pois estou terminando minha monografia.

-Oito horas está ótimo para mim.

Melissa e Alexandra trocaram olhares conspirativos.

-Agora vocês vão me dar licença, infelizmente preciso ir.

-Mas já, filho? - Melissa perguntou descontente.

-Tenho um compromisso. Foi bom vê-las. E Eduarda, passo em sua casa segunda, às oito.

****

-Você trama as coisas... - desferiu cínico, enquanto fechava a porta da geladeira. 

- Eduarda é uma moça bonita, de boa família e educada.

- Ela é tudo isso, sim. Mas, é bem mais nova que eu, além disso...já estou vendo alguém.

Melissa o olhou surpresa.

- Eu não sabia!

- Conheço os pais dela?

- Não.

Melissa não conhecia ninguém fora de sua classe social.

- Você já os conheceu? São de boa família?

- Eu a conheço e para mim é o suficiente.

Melissa não quis iniciar uma discussão com o filho. Queria ao menos um momento de paz. Desde sua adolescência viviam às turras. Ela nada sabia sobre ele e suas conversas eram superficiais. Quando tentava adensar um pouco mais o relacionamento entre eles, nunca acabava bem. Ele a hostilizava e criticava. 

Mesmo contrariada com as informações vagas, pediu a ele que a trouxesse a fim de conhece-la. Sua abertura funcionou, fazendo-o relaxar. A nuvem de tensão sobre eles foi afrouxando. E parecia, que pela primeira vez teriam uma conversa sem que ele a deixasse, de forma tempestuosa, falando só.

-Talvez, eu faça isso.

Olhou para ela, tentando enxergar em suas palavras algum ardil. Então, colocou o copo sobre a bancada da cozinha.

-Vai jantar hoje em casa? - ela perguntou ansiosa.

-Vou sim, estou fazendo as últimas correções em minha monografia, pois vou me reunir com meu orientador na segunda-feira.

-Fico feliz que já esteja terminando seu curso...você nunca me fala sobre seus planos acadêmicos. Pretende tentar entrar em um mestrado?

-Não sei... no momento não estou fazendo nenhum plano.

Ia saindo da cozinha, mas então se virou para ela.

-Desço daqui a pouco para o jantar.

Ela seguiu o filho com o olhar. Planejava o relacionamento dele e Eduarda há algum tempo. Graziela era sua amiga à anos. Cinco anos antes, suas famílias, com exceção de João, haviam viajado juntos para a Europa, quando Eduarda estava entrando na adolescência, e naquela época já prometia ser uma beldade. Ela provocava Graziela ao dizer que faltava apenas um berço real para que fosse uma ‘puro sangue azul’.  Graziela respondia sorrindo:

-Não seja por isso, minha querida. Tenho um Conde italiano em minha ascendência.

Melissa anteviu uma potencial aliança entre suas famílias, mas sabia que tinha que conquistar o filho arredio. João parecia-se muito com o pai. Ensimesmado e indiferente ao prestígio e importância da família na sociedade. Com o passar do tempo, ao invés de abrir-se mais, ele tornou-se hostil as suas ideias. Em uma de suas discussões ele classificou sua ambições como ‘pretensão tupiniquim’.

Aquelas palavras a enfureceram. ‘Exijo que me respeite, sou sua mãe e dona desta casa onde mora.’ João se ressentiu-se e passou a evitá-la, a fim de não baterem de frente. Mas ela não desistia nunca de seus intentos.  

Ela ouviu a porta da frente sendo aberta e ao alcançar a sala de visitas viu o marido, desapertando o nó da gravata. Ele a cumprimentou de forma fria, e pousou sua maleta sobre uma das poltronas, coberta com tecido adamascado.

-Vou precisar sair esta noite. Alguns de nossos fornecedores americanos estão na cidade e vamos sair para discutir alguns negócios. Vou apenas comer algo leve, está bem?
Ia subindo as escadas, mas voltou rapidamente para pegar a maleta. Quando estava na metade da escadaria lançou um olhar indiferente em sua direção:

- Se o jantar demorar, infelizmente não poderei ficar.

Ela suspirou exasperada. ‘Estava rodeada de opositores em sua própria casa’.

O jantar transcorreu silencioso. O marido na cabeceira da mesa, não olhava para ela, e João estava absorto em seus pensamentos.

-Elizangela, você colocou o talher errado novamente. Já expliquei qual é o talher para peixe.

-Desculpe, Dona Melissa. Vou buscar.

-Agora que já iniciamos a refeição, não tem mais necessidade. Amanhã vou falar com Nazaré. Desisto de educar você.

João abandonou os talheres sobre o prato. Afastou a cadeira e começou a retirar-se.

-Você mal tocou a comida. Onde vai?

-Perdi a fome.

-Mas...

O marido olhou-a pela primeira vez, durante o jantar. E havia censura estampada em seu rosto. Eles terminaram a refeição, silenciosamente.

****

João não esperou muito diante do apartamento de Ana, até que ela saisse. Usava um vestido simples de algodão azul e o cabelo preso em um rabo de cavalo. Ele foi até ela e cumprimentou-a com dois beijos leves na face. Ela ainda sentia-se constrangida diante daquela etiqueta social com tantas demonstrações afetuosas.  Sempre imaginava o que Madre Justiça pensaria se a visse em uma daquelas situações. As religiosas, por viverem enclausuradas à vida no convento, não tinham a menor ideia do que se passava fora dos muros protetores e não sabiam preparar os órfãos que deixavam o convento. Ana usava sua sensibilidade para saber de quem se aproximar ou afastar, mas na maioria das vezes demonstrava frieza para com a maioria das pessoas. Ainda no orfanato, ouvira casos desastrosos de meninas, que por ingenuidade acabaram naufragando, enquanto tentavam viver fora dos limites do orfanato.


Creditava a seu hábito de leitura, seu maior discernimento. A vida de Fantini em Os Miseráveis de Victor Hugo despertaram nela compaixão e uma desconfiança, que levou a própria Madre a preocupar-se. ‘Se olhar apenas para o lado negativo das pessoas, não vai conseguir viver lá fora.’ Mas Ana já havia tido algumas lições extremamente desagradáveis durante aqueles dois anos. E sua desconfiança a salvou de muitos lobos.

João abriu a porta do carro para ela entrar e depois foi para o outro lado. Ao acomodar-se ele olhou para ela de relance, para depois abrir a porta luvas, de lá retirando uma fita cassete.

___Eu gravei uma seleção de músicas de Djavan para você...para aumentar seu repertório.

Ela sorriu.

__Obrigada, João. Nossa, vou ouvir assim que chegar em casa.

Ele deu partida.

__Para onde vamos?

__Surpresa!__ ele sorriu.

Enquanto ele dirigia, ela reconhecia o caminho. Estavam indo para o lago. De repente, os sentimentos que aquele passeio lhe provocava, enquanto ainda estava no orfanato, vieram à tona. ‘Ah, se os meus pais me vissem agora...e me reconhecessem.’

__Você já veio ao lago?

__Algumas vezes...

__Poxa! Eu pensava que esse passeio ia ser inédito __ disse desanimado.

__É o meu lugar da cidade favorito.

__Mesmo? Bem, então, acho que não errei.

Eles desceram do carro e caminharam pelo gramado. Haviam crianças, casais de namorado, carrinho de pipoca e algodão doce. Instintivamente ela removeu as sandálias, como tinha o hábito de fazer ali, e o gesto o surpreendeu.

Ela sorriu:


__Agora é sua vez.

Ele levantou o dedo indicador.

__Um momento. Pipoca ou algodão doce?

__Pipoca.

Ele saiu em direção ao carrinho e voltou com as mãos cheias, de pipoca e algodão doce. Estendeu a pipoca para ela e só então, começo a remover os sapatos.

__Meus pés não são tão bonitos, tá? __ ele alertou-a.

Então sentaram-se na grama de frente para o lago.

__Então...você é uma expert em vitrais...

Ela riu.

__Claro, que não! Eu peguei um livro na Biblioteca depois que fui à casa onde meus... eu passei em frente à essa casa, e vi um vitral muito bonito, que me despertou o interesse.

__Então era um vitral especial, para te levar a uma biblioteca e depois a uma exposição.

__Eu achei muito bonito, diferente dos que já tinha visto antes.

__Humm...
Uma fileira de patos barulhentos passou diante deles em direção ao lago.

__De onde você é?

__Daqui!

__Ah... é que eu achei que você havia dito que seus pais moravam em outra cidade, eu pensei que você não era daqui.

__Ah... nós somos daqui, mas quando ainda era bem pequena, nos mudamos. Meus pais queriam uma vida menos urbana e compraram um sítio. Aí, depois precisei estudar e vim para casa de minhas tias.


Ela não olhava para ele enquanto falava.

__Entendi.

__E você? Sempre gostou de vitrais.

__Não...mas acho interessante o processo de criação, principalmente a forma como eles descobriram como colorir vidros com minerais. Estou terminando Engenharia Química e ... não sei... talvez eu trabalhe com a área de tintas. É sempre bom conhecer a história de como as cores começaram a ser usadas e foram desenvolvidas.

__É uma área ampla, boa para ser explorada.

Ele estendeu a mão e tocou os cabelos dela. E de lá removeu uma pena branca.

__Os patinhos deixaram uma lembrança para você.

Ela começou a rir.

__Você tem o sorriso mais lindo que já vi... __ estendeu a mão e acariciou o rosto dela. Ela baixou os olhos tímida, mas ainda assim ele aproximou-se mais, até que encostou a testa de leve na dela e levantou seu queixo. 

Ela fechou os olhos, levada por um sentimento de acanhamento, mas assim que sentiu os lábios dele nos dela, deixou-se levar pela carícia doce.


Ele se afastou e ela suspirou, ainda com os olhos fechados. A mão dele ainda estava em seu rosto. Ela abriu os olhos e viu os dele brilhando, diante dela.

__Às vezes, eu tenho essa impressão... de que já te conheço. Mas acho que é porque na primeira vez que te vi, me senti  completamente atraído por você.



Ele voltou a beijá-la. E ela descobriu que era a

melhor sensação que já experimentara. 


Especialmente, por que eram os beijos dele.

Do homem que despertou nela, o amor, território, que até aquele momento desconhecia.

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terça-feira, 12 de maio de 2015

A CASA - CAPÍTULO 2

Ver Capítulo 1 em postagem anterior

Ela caminhou desanimada de volta para casa. Passou por todos os pontos de ônibus que viu no trajeto e não esperou por nenhum. Precisava espairecer, e caminhar a ajudaria. Quando chegou à praça central da cidade, próxima do local onde trabalhava, sentou-se em um banco de pedra ao redor da fonte.
Não conseguia, ainda, atinar com a trama que envolvia sua vida. Havia apenas uma grande interrogação em sua mente. Sonhara por toda a sua vida, e durante aquela semana, tivera certeza que encontraria seus pais, desvendaria seu passado, veria na face de outro traços de si mesma e quiçá, compreenderia sua razão de ser e estar no mundo. Mas então, uma reviravolta. Uma maldição? Seu nascimento envolvia um sinal nefasto? Quando imaginava que poderia de alguma forma ver o brilho de sua existência restituído, uma palavra recheada de desgosto eclipsava sua esperança, e o medo penetrou nas vielas penumbrosas de sua mente.
Viu seu projeto de construção de si mesma abalar-se.
Talvez Madre Justiça estivesse certa. Ela precisava esquecer as partes de sua história que eram insondáveis e ir em frente.
Levantou-se e decidiu ir para casa e mergulhar nos livros de Direito. Tinha muito que estudar e seria uma forma de tirar seu foco das experiências daquele dia. Os reflexos dourados do sol do fim de tarde atravessavam as folhas das amendoeiras em flor e tocavam suavemente seu rosto. A imagem da casa surgiu em sua mente, persistentemente, tentando criar raízes e florar quimeras.  Mas, a casa encantadora, onde ela podia ter dado seus primeiros passos e balbuciado suas primeiras palavras diante de pais extasiados com seu brilhantismo infantil, era mais um capítulo no livro de ausências de sua vida. Entretanto, agora, dava um tom de morbidez a seu mistério.
Relanceou os olhos no prédio da Galeria de Arte da cidade. Havia uma escadaria de uns quinze degraus, que sugeria monumentalidade e abraçava sua fachada elevada, onde alguns jovens estavam displicentemente sentados. Uns conversavam animadamente, outros liam e alguns poucos a usavam unicamente como um descanso para esperar ônibus, cujo ponto ficava logo em frente.  
Instintivamente, atravessou a rua para ver no quadro expositor os próximos eventos de arte. Subiu a cascata de degraus lentamente e parou diante do retângulo de madeira envidraçada, onde estavam destacados alguns eventos. Mas apenas um chamou sua atenção: Exposição de Vitrais Antigos Restaurados, com curadoria de Mauro Cartaxo Leme. À partir de sexta-feira (10 ) até dia 30.
A casa com seu primoroso vitral voltou a sua mente com a velocidade da luz. Valeria à pena comparecer, decidiu. Por um motivo incompreensível, uma leveza a envolveu. Os pensamentos que lhe toldavam a mente, desanuviaram e ela voltou para sua residência mais sossegada.


Foi entretida por seu mais novo interesse durante aquela semana.
Pegou emprestado um livro sobre vitrais de páginas coloridas e atraentes na biblioteca, e o folheou avidamente, decidida a conhecer aquela arte que até a pouco ignorava, ainda que no orfanato, duas peças cobrissem as paredes do altar da capela. Contudo, naquela época, ela os via simplesmente como uma forma de artistas religiosos contarem a história de Cristo e seus milagres ou mesmo de algum dos santos da Igreja. Então, a casa, despertou seu espírito para aqueles fragmentos coloridos de vidros e ela se deu conta que havia um vitral em sua vida. Intimamente, desejou que contasse algo sobre sua história, e mesmo que fosse apenas uma parte ínfima, queria que fosse um fragmento de luz e não um conto de sombras.
Quando subiu os degraus da galeria para visitar a exposição, não era mais tão inexperiente sobre o assunto. Na hora em que chegou, correu os olhos pelo pavilhão e viu umas poucas pessoas. Vitrais que variavam em tamanho estavam espalhados e cuidadosamente fixos sobre as paredes. Pegou um folheto explicativo e caminhou até um deles, o mais distante da entrada, pisando leve com sua mule, para que seus passos não ecoassem.
Os primeiros a considerar, tinham temas religiosos, onde prevaleciam o azul cobalto. Percebeu um casal a uma pequena distância, e o homem explicava em voz baixa os detalhes daquela arte para a mulher. Discretamente, ela aproximou-se para tentar ouvir o que ele dizia. 'A beleza dos vitrais não está só nas gravuras ou nas cores, mas na luz que refratam no ambiente. Nas antigas catedrais, o intuito era, controlar a luz do espaço exterior e criar um ambiente místico a fim de que os fiéis se voltassem apenas para o sagrado.'  
Ela os acompanhou disfarçadamente, enquanto o homem, evidentemente um expert naquele assunto, os guiavam naquele passeio cultural.  Quando chegaram ao quinto vitral - uma peça em art nouveau -, houve uma inflexão em sua voz, 'esta é uma representação dos profanos, se é que assim podemos chamá-los, meus preferidos.'  
Explicou com prazer, que na iminência da virada do século, a art nouveau foi anunciada ao mundo por designers  franceses e ingleses, mas tinha em Tiffany, sua maior notoriedade. Sendo um homem que buscava incansavelmente a beleza no mundo ao seu redor, as captava e reproduzia em sua arte. Criou técnicas inovadoras. Foi um mestre na manipulação de vidros. 'Seus vitrais são belíssimos', arrematou.
__O designer desse vitral é um integrante dessa escola. Ele era genial. Vê? A riqueza de cores, as figuras geométricas e os lírios estilizados? Para mim foi um dos melhores representantes da art nouveau no Brasil. Ele acompanhou a geração dos anos 60 que redescobriu a arte em vidros no mundo. Ressuscitaram a art nouveau, Tiffany e vitrais góticos. Os lírios brancos duplos e sombreados com vidro opalescente âmbar, são sua assinatura. Contudo, a maioria de seus poucos trabalhos foram exportados e ele foi pouco conhecido. Um enigma envolve sua vida. Faleceu muito jovem... - deu um suspiro de desalento - parece ser a sina da maioria dos vocacionados para a arte.
O casal adiantou-se para o exame minucioso do próximo vitral. Mas ela permaneceu, sondando melhor os detalhes daquela obra. Tentou enxergar a alma do artista. Ramos verdes subiam diagonalmente dos cantos do vitral e contorciam-se, entremeando uma figura geométrica em forma estelar, abraçada, em ambos os lados, pelos lírios brancos. O azul também estava presente.  Dependendo da posição em que este vitral fosse posicionado, emitiria uma luz fantástica!  Havia uma pequena placa de metal na base do vitral com a identificação do artista: B. Bachman.
De onde estava ainda podia escutar a voz do homem, agora era mais um cochicho, apenas para a mulher ao seu lado ouvir. Mas ela ainda queria saber mais, então virou-se para alcançá-los. Foi quando o viu. A uma pequena distância, atrás dela. O cliente da camisa azul-marinho, usando a tal. Olhava para o mesmo vitral que ela, seu olhar circunspecto avaliando os detalhes, e suas mãos nos bolsos da calça-jeans.
Ele também a reconheceu e cumprimentou com um sorriso gentil.
Ela devolveu a cortesia.
Propositalmente, ele tocou na borda da camisa, como se estivesse apontando a escolha que ela havia feito, e o gesto a desconcertou.
__ Que coincidência...- ela conseguiu dizer.
__ Não é.
__ Como?
__Não é coincidência... eu segui você - sussurrou para que apenas ela ouvisse.
Os olhos dela arregalaram, 'ele só podia estar brincando'. Ele sorriu e como se tivesse lido seus pensamentos disse:
__Brincadeirinha.
Então, como se quisesse diluir a tensão que se instalara pelo encontro comentou:
__O processo de criação de um vitral é bem interessante, não acha?
Ela colocou de lado a comoção causada pela casualidade extraordinária e tentou seguir a linha de pensamento dele.
__É... Me parece um trabalho que exige não só um senso estético bastante refinado, mas também uma sensibilidade espiritual, mesmo quando não é um motivo litúrgico o objetivo. Penso que o artesão imerge em um lugar intangível de onde ele nos traz esses sinais de luz em forma de arte.  E depois, o uso do fogo na técnica é como um batismo final da obra, como que para impressionar os olhos terrenos.
A emoção em suas palavras eram tão profundas, que ele permaneceu calado depois que ela terminou de falar, deixando-a constrangida por ter colocado em palavras seus pensamentos idealistas. Creditou, seus sentimentos enlevados, em parte, a sua mais recente experiência na casa.
Esperou que ele se afastasse discretamente dela depois de se expor de forma tão arrebatada e ingênua.
__Nunca ouvi ninguém apresentar uma ideia sobre arte de forma tão transcendente de sua natureza puramente humana. Honestamente, nunca havia pensado dessa forma. 
__Nossa...eu acho que me excedi um pouco.
__Claro que não, faz sentido o que falou.
Ana percebeu que o casal lançava um olhar de censura a eles.
__Acho que falei mais alto que devia. Arte é para ser contemplada em silêncio __sussurrou constrangida.
Ele olhou na direção de seus olhos e entendeu. Passaram diante das outras obras em silêncio e deixaram a galeria juntos. Quando iam descer o primeiro degrau, ele virou-se para ela buscando sua atenção.
__Então, se vitrais são pequenos 'sinais de luz' __disse usando suas palavras. __ são engastados em lugares onde sua mensagem deve ser levada em cuidadosa consideração, não é isso?  
O comentário fortuito e inesperado foi tão oportuno, que se ele soubesse de sua história, não teria sido tão preciso no alvo.
__Disse algo errado? __ perguntou diante do olhar admirado dela.
__Não... é isso mesmo!  Você conseguiu captar isso de uma forma que eu não tinha alcançado.
__Só segui sua linha de pensamento...você começou cantando a música e eu terminei...só isso - ela estava considerando o que ele havia terminado de falar quando ele se ofereceu para levá-la em casa, '... se quiser, é claro.'
__ Mora por aqui?
Ela permaneceu muda, e ele acreditou que por não conhecê-lo hesitava.
__Não fomos formalmente apresentados, meu nome é João.
E estendeu a mão para ela, como se aquilo fosse o suficiente para dar-lhe crédito e ganhar-lhe a confiança.
__Ana.
Ela apertou sua mão timidamente, ainda hesitante.
__Seus pais não vão gostar de ver você no carro de um estranho, não é mesmo? Entendo.
__Claro que não... meus pais... não moram aqui. Eu vim para cá a fim de estudar. Universidade...você sabe.
__Não tem família na cidade?
__Tenho algumas tias, mas não moro mais com elas.
__Bem... já está ficando tarde. Posso te levar, se for perto, te acompanho a pé, se quiser, é claro. Você tem razão, não é bom entrar no carro de estranhos, mas eu não sou o tipo perigoso.
Ela olhou para o lado, como se estivesse decidindo e finalmente refletiu em voz alta, 'acho que você é confiável'.
Eles desceram a escada devagar. Ela imersa em seus pensamentos e ele isolado nos dele. Caminharam um ao lado do outro até que chegaram ao Passat branco estacionado do outro lado da rua, ao lado da praça. Ele abriu a porta para ela, e ela entrou. Devagar, Ana ia conhecendo os códigos do mundo fora do orfanato. Geralmente, quando ficava muito desconfiada, se esquivava, mas aquele não era o caso. Pediu a Deus que não estivesse cometendo um erro.
__Se importa se eu ligar o rádio?
__Não. Gosto de música.
Ele girou o botão e sintonizou uma rádio. Oceano de Djavan, um dos hits do momento estava tocando.
__Esse cara é fabuloso, quando você pensa que ele já escreveu sua melhor música, ele te surpreende.  Lembro que ainda moleque, ouvi Samurai e fiquei super entusiasmado com o ritmo. Poxa... eu aqui falando e nem sei se você gosta dele.
__Gosto sim, e essa música dele é minha favorita - disse ela, já que não conhecia nem uma outra.
__Oceano é perfeita. E está se tornando uma unanimidade. Mas, acho que Samurai vai sempre ser minha preferida, por razões sentimentais - ele riu. __Onde é mesmo que você mora?
Ela deu as direções e ele seguiu. Durante o trajeto, perguntou qual curso ela frequentava. Informou que cursava o último semestre de Engenharia Química, mas durante o turno diurno, por isso talvez não se encontrassem muito frequentemente na faculdade, mas como parecia que eles viviam se esbarrando pela cidade, não havia o perigo de não se verem nunca mais.
Ana relaxou mais ao lado dele. Percebeu que não lhe oferecia perigo e tinha que admitir, gostava muito de sua companhia. Quando ele estacionou em frente ao prédio em que morava, ela suspirou em desalento, pela rapidez com a qual o carro havia coberto a distância entre a galeria e sua casa.
__Chegou sã e salva.
__Obrigada, João. Fiquei feliz em te conhecer __disse com honestidade.
Ele olhou para ela sério.
__Isso quer dizer que vamos nos ver outras vezes?
__Por que não? Você pode ir quantas vezes quiser à loja, que eu prometo escolher suas camisas - ela sorriu provocativa.
Ele não sorriu: 'Isso é uma promessa?', perguntou.
Ana sentiu que a atmosfera mudou e o olhar dele era intenso. 'Sim', ela respondeu sentindo o coração acelerar. Ele aproximou-se dela e beijou-a na bochecha, devagar com o intuito de sentir a maciez da pele e a fragrância de seu perfume. A impressão da rebarba dele arranhando o rosto dela evocou sensações que desconhecia.
Quando ele se afastou, foi como se o velho sentimento de orfandade a tivesse envolvido mais fortemente. Ele abriu a porta do carro e saiu, deixando-a lá dentro com a respiração suspensa. Foi só quando ele abriu a porta e ela sentiu a brisa soprar em seu cabelos, que acordou daquele momento. Saiu do carro e o pegou com seu costumeiro hábito de colocar as mãos no bolso.
__Queria vê-la novamente...fora de seu lugar de trabalho. Posso?
__Amanhã é domingo, um dos dias que posso cultivar o ócio. À tarde... pode vir à tarde.

__Eu volto amanhã, então.

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domingo, 10 de maio de 2015

A CASA - CAPÍTULO 1

Ver o prólogo em postagem anterior.



Uma brisa forte soprava sobre seus cabelos claros e ela afastou uma mecha que caia sobre a testa.
Pegou o papel que estava dentro da bolsa e leu mais uma vez seu conteúdo. Um sentimento de esperança brotou em seu coração. 'Então, era assim que se sentiam as pessoas que tinham um futuro,' pensou. Nunca sentira vontade de pular e dançar antes na vida, olhou para os lados e não viu ninguém, então levantou os braços como se estivesse diante de um parceiro invisível e deu seu primeiro passo. Dançou na calçada da rua vazia, por trás do orfanato, de tão entusiasmada que estava pela sua vitória.
Riu, chorou e rodopiou ao som da música que só ela podia ouvir e que enlevava seu espírito. Os cachos dourados de seus cabelos balançavam de um lado para o outro, também alegres por realizarem aquele movimento inédito.
Repentinamente, ela parou. Sentiu-se observada. Deu fim aquela manifestação quase insana. Se recompôs e olhou para os lados, a fim de descobrir a quem pertenciam os olhos que invadiam seu momento tão íntimo de desvairada alegria. Não viu ninguém.
Apertou o papel na mão como se fosse ouro e pôs-se a andar. Agora sabia para onde ir.


****

Se dependesse dela, teria ido naquele mesmo dia ao endereço que tinha em mãos. Mas algumas nuvens escuras surgiram no horizonte prenunciando tempestade e ela resolveu ir para casa. Nos dias que se seguiam, também não poderia ir, estaria muito ocupada. Trabalhava em uma loja de departamentos e assim que largava o expediente ia para a universidade onde cursava Direito. Mal tinha tempo para respirar. Mas no sábado à tarde, com certeza encontraria aquele endereço e aquelas pessoas.
Assim que chegou em seu apartamento, removeu os sapatos e foi tomar uma ducha para refrescar-se e colocar suas emoções em ordem.
Estava acostumada a comer a vida pelas beiradas, mas aquele tipo de ansiedade era nova para ela. Queria correr até lá, nem que fosse no meio da noite, bater na porta 'daquelas' pessoas e dizer... dizer... Deu-se conta que não sabia o que dizer. 'Oi, sou a filha que vocês abandonaram no orfanato' soava um tanto confrontador e não queria que parecesse nada disso. 'Então... de acordo com as informações desse endereço, meus pais vivem aqui'. Tsi, tsi, tsi... pavoroso.
Então, algo lhe ocorreu... Se seus pais tinham um lar, por que a haviam abandonado em um orfanato? Estava tão acostumada com a falta de nomes e faces, que nem percebera que a única coisa que conseguira de bem fundamentado, fora um endereço e não nomes.
Sua alegria foi dando espaço a suas velhas companheiras - apreensão e melancolia. 'Talvez, a decisão de abandoná-la não tenha sido tão difícil assim. Talvez, eles não passassem de pessoas egoístas, que se livraram de um fardo que se interpunha em suas vidas idílicas e despreocupadas. Será que viveriam ainda nessa casa?'
Seu humor mudou quase que completamente. Ela fechou a torneira que permitia à água descer por seus cabelos. 'Era uma estúpida, como não pensara nisso antes?'
Saiu do banho, vestiu-se, estourou pipocas no micro-ondas e foi checar se passava algum filme na TV àquela hora. Tentou não pensar mais nos pais que ela tanto fantasiava. Não iria procurá-los mais. Iria empurrar aqueles fantasmas para um canto da memória, de onde não saíssem mais. Porém, aquele era um exercício novo para ela, e não tão fácil assim, já que por toda sua vida gravitara em torno daquela ideia.
'Melhor', disse a si mesma, 'vou confrontá-los por sua atitude desumana. É isso, vou fazê-los ver, o que fizeram a mim. E depois vão saber que apesar de tudo sobrevivi.'


****


A semana se arrastou, e como ela imaginou, foi difícil conter a ansiedade. Realizou as tarefas no trabalho de forma descuidada e ignorou seu dever de ser gentil e sorridente para com os clientes. Esqueceu o, 'em que posso ajudá-lo?', não abordou ninguém com um 'você pode comprar a prestação, em 3 vezes' ou 'usa cheques? pode dividir... e se endividar sem saber se poderá pagar'.
Sua supervisora a observava e em certo ponto aproximou-se dela, com um sorriso artificial.
__Você não está acreditando que porque é uma pequena órfã terá regalias e tratamento especial aqui, não é mesmo? Tem uma fila lá fora querendo o seu lugar - espetou cruelmente.
Ana nunca chegou a saber quem havia vazado sua história na empresa. Acreditava que talvez tivesse sido alguém do RH, já que as solicitações de pedidos de emprego para os adolescentes que deixavam o orfanato iam diretamente para eles. No segundo mês em que começara a trabalhar ali, já havia se tornado uma referência: a órfã. Uma colega tentando ser legal a abordou:
__Olha, se precisar de alguma coisa, pode contar comigo, tá?
No início ela não entendeu a gentileza, só depois é que veio a explicação: sua história já havia se espalhado, pelo menos, parte dela.
Particularmente, para ela não havia sido um problema, até aquele momento, pois não se lembrava de ter alguma vez usado a sua situação super vantajosa para realizar tráfico de influência em sua vida, muito menos ali. Engoliu o sentimento de humilhação, afinal precisava do emprego e disse:
__ Eu vou prestar mais atenção.
__ É bom mesmo.
Pegou uma sacola de plástico, colocou um sorriso nos lábios e saiu à caça de clientes distraídos e com cara de presas do consumo.
Viu um homem diante de um cabide de roupas masculinas e cortesmente perguntou se precisava de ajuda. Ele parou o que fazia, meio irritado por ter sido interrompido e voltou sua atenção à ela com o intuito de dispensá-la com um gesto de cabeça ou um resmungo, mas se deteve no instante em que a viu.
__Precisa de ajuda... ou sacola? - perguntou novamente com seu sorriso congelado.
__Preciso, sim...
Ela estendeu a sacola para ele.
__Não... de ajuda.
Ela o observou melhor e percebeu que era mais jovem do que havia imaginado. Atraente. Parecia meio triste - ela reconheceria aquele sentimento onde quer que o visse - mas ainda assim, sorriu para ela.
__Que cor, acha que devo levar?
Ela começou a avaliar as opções que tinha diante de si e depois voltava o olhar analítico para ele a fim de avaliar melhor suas cores e traços, e assim poder dar a sugestão mais adequada. Então, ela percebeu que também era alvo de análise e sentiu-se desconfortável.
__Azul marinho - respondeu ao mesmo tempo em que removia a camisa do cabide e entregava a ele.
Ele sorriu.
__Você é a primeira mulher que escolhe roupa para mim... além de minha mãe, é claro.
As bochechas dela incendiaram, e como se estivesse se defendendo de uma acusação grave, respondeu quase em um sussurro:
__Mas foi você quem pediu...
Foi a vez dele sentir-se desconfortável com o mal entendido.
__Não... quero dizer, claro que foi. Poxa, que confusão eu fiz. Me desculpe, é que por um momento achei que... te conhecia de algum lugar.
__ Acho que não...
__Foi impressão minha... me desculpe. Vou provar a camisa. Obrigado.
Ele deu as costas para ela e foi em direção ao provador. Assim que o viu afastar-se, ela se arrependeu por não ter estendido a conversa. Que tola! Quase não conversava com ninguém e quando tinha a oportunidade, de trocar ao menos algumas palavras com alguém, agia como se não tivesse nem um pingo de traquejo social.
Pensou em ir na direção do provador masculino, esbarrar nele sem querer, perguntar se havia gostado da camisa, mas então, encontrou os olhos críticos de sua supervisora. Seu pequeno interlúdio fora tão leve e lúdico que até esquecera dos sentimentos negativos que haviam sido provocados instantes antes por ela. Uma outra cliente lhe foi apontada com seu olhar azedo, e Ana se dirigiu até lá, obedientemente.
Não viu mais o cliente da camisa azul marinho. E acabou voltando a atenção para o pensamento que a corroía: seus pais.

****


O sábado amanheceu com um colorido especial. O céu azul não tinha nenhuma nuvem. O tempo estava agradável e ela poderia usar um vestido. Amarelo - sua cor favorita. Era alegre, bem diferente dela. Tinha uns detalhes em verde e lilás. A combinação de cores dava a ele um ar primaveril.
Coloriu bem de leve suas bochechas e passou um batom rosa claro.
Seria um dia crucial em sua vida, para o bem ou para o mal. Não era exatamente o que esperava depois de tantos anos. A sua fantasia de criança havia sofrido um baque e tanto. Desmoronara diante dela em apenas uma semana. Se antes, idealizara pais sorridentes, radiantes por vê-la e talvez até, carregando um pouquinho de sentimento de culpa, por a terem deixado, agora a imagem era quase monstruosa: não passavam de pessoas más e indiferentes, incapazes de sentir empatia com o próprio sangue, e pior, a tinham abandonado em um orfanato na mesma cidade em que viviam e que talvez fosse a apenas alguns minutos de sua casa.
'Quantas vezes haviam passado diante do orfanato com indiferença? Será que já a haviam visto? Como podiam ser tão frios?'
As perguntas a torturavam e a falta de respostas mais ainda. Queria gritá-las ao rosto deles, e chacoalha-los até que respondessem. Mas naquele dia, teria suas repostas.
Olhou mais uma vez o endereço que havia anotado. Já havia se informado com algumas pessoas da provável localização e não erraria.
Pegou um ônibus que ia para um bairro a leste da cidade, que nem era tão longe dali, mas não queria ir à pé e acabar suando. Desceu do ônibus, e foi informada que teria que andar um quarteirão e virar à direita, então encontraria a rua que procurava. Seu coração batia aceleradamente. Podia sentir seu pulso enlouquecido em sua garganta. Entrou à direita, onde foi previamente orientada e se deparou com uma rua bem arborizada e tranquila. Seus olhos puderam alcançar o fim da rua. Era sem saída. Lembrava-se bem do número, mas tirou o papel da bolsinha para se certificar. O papel tremia em suas mãos. Ela parou e virou-se para ir embora. 'O que estava fazendo afinal? Aquelas pessoas a haviam rejeitado.' Voltou-se novamente em direção a casa e tomou um susto ao fazê-lo. Havia um gato de pelos malhados parado bem em sua frente em posição de contemplação felina. Ele a encarava sem medo e sem rodeios.
Ela deu um suspiro. Parecia que até o vento iria assustá-la naquele dia. Desviou do bichano e seguiu em frente, já não tão certa do que fazia.
Se aproximou do número 22. Ofegava. Mas continuou em frente. Não tinha palavras ensaiadas. Decidiu deixar que o momento ditasse a fala e os sentimentos.
Então, parou diante do portão de ferro, baixo e artisticamente trabalhado. Bonito... sim era um portão bonito. Simbolizava a entrada para um lar de sonhos. Havia alguns ramos de plantas entrelaçadas em suas hastes cor de bronze e enferrujadas. Observando melhor, era um portão velho, com duas bandas que se fechavam no centro. Não devia ter manutenção a anos pois suas bandas desencontravam. Só se mantinham juntas e fechadas pois havia uma fita branca que dava voltas e voltas amarrando as duas hastes das bandas opostas juntas.
Olhou novamente o número, quase esmaecido no murinho. 22. 'Era esse o endereço, era essa a casa.' Voltou sua atenção para a construção que se erguia dentro dos limites da propriedade. Uma casa com arquitetura mais rebuscada, não era moderna, mas ela não soube precisar o estilo. Talvez art deco. Não era uma casa grande, mas parecia ser o suficientemente espaçosa para acolher uma pequena família. Havia uma janela na lateral da casa com um belo vitral estilizado com flores que davam-lhe um charme todo especial. Uma cor clara havia coberto sua fachada descascada, mas agora estava quase branca. O mato alto dava a impressão de descuido, mas ainda assim, o conjunto era bonito. Transmitia alegria.
Porém, soube, com certeza, e isso ela diria sem errar: ninguém morava ali.
Então ela ouviu.
Um miado... O gato que ela havia visto no início da rua estava ali, mirando nela seu olhar misterioso. Passou o corpo macio e flexível em sua perna e depois se espremeu entre as hastes do portão. Se colocou novamente em sua posição de contemplação felina de frente para ela, além dos limites que ela podia alcançar e a encarou como se ele fosse o dono e senhor daquela casa.
'É... quem não tem cão, caça com gatos.'
Sentiu uma grande vontade de entrar e poder olhar de perto cada detalhe. Se aquela casa continha parte de sua história, ela queria...não! Precisava conhecê-la.
'Será que seus pais estavam mortos? Haviam se mudado?'
Ouviu um ruído de portão se abrindo, que vinha do outro lado da rua. Virou-se e viu uma mulher, talvez na meia idade. Vestia um conjunto vinho, bem alinhado e segurava uma bolsinha preta. Ela a encarou por um instante e depois começou a caminhar rapidamente pela calçada. Ana decidiu questioná-la. Deveria saber algo, se morava ali.
Andou rapidamente em seu encalço e a chamou:
__Senhora, por favor...
Ela não parou.
__Senhora...
Alcançou-a e tocou seu braço.
A mulher a olhou sem simpatia em seus olhos claros. Parou por obrigação.
__Só uma informação...Os moradores daquela casa. A senhora os conhece?
__Fique longe daquele lugar... é amaldiçoado.
Então virou-se e foi embora sem mais explicações.
Ana sentiu-se fria, de repente.

Uma palavra tão forte e negativa ser usada para um lugar que havia lhe inspirado sentimentos tão bons...ou estaria errada? Será que aquela casa tão acolhedora e graciosa tinha uma história funesta em suas paredes? Voltou-se para a casa e ia caminhar até ela, mas um sentimento lúgubre a envolveu. Lugar amaldiçoado... Deu as costas e foi embora.

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