terça-feira, 12 de maio de 2015

A CASA - CAPÍTULO 2

Ver Capítulo 1 em postagem anterior

Ela caminhou desanimada de volta para casa. Passou por todos os pontos de ônibus que viu no trajeto e não esperou por nenhum. Precisava espairecer, e caminhar a ajudaria. Quando chegou à praça central da cidade, próxima do local onde trabalhava, sentou-se em um banco de pedra ao redor da fonte.
Não conseguia, ainda, atinar com a trama que envolvia sua vida. Havia apenas uma grande interrogação em sua mente. Sonhara por toda a sua vida, e durante aquela semana, tivera certeza que encontraria seus pais, desvendaria seu passado, veria na face de outro traços de si mesma e quiçá, compreenderia sua razão de ser e estar no mundo. Mas então, uma reviravolta. Uma maldição? Seu nascimento envolvia um sinal nefasto? Quando imaginava que poderia de alguma forma ver o brilho de sua existência restituído, uma palavra recheada de desgosto eclipsava sua esperança, e o medo penetrou nas vielas penumbrosas de sua mente.
Viu seu projeto de construção de si mesma abalar-se.
Talvez Madre Justiça estivesse certa. Ela precisava esquecer as partes de sua história que eram insondáveis e ir em frente.
Levantou-se e decidiu ir para casa e mergulhar nos livros de Direito. Tinha muito que estudar e seria uma forma de tirar seu foco das experiências daquele dia. Os reflexos dourados do sol do fim de tarde atravessavam as folhas das amendoeiras em flor e tocavam suavemente seu rosto. A imagem da casa surgiu em sua mente, persistentemente, tentando criar raízes e florar quimeras.  Mas, a casa encantadora, onde ela podia ter dado seus primeiros passos e balbuciado suas primeiras palavras diante de pais extasiados com seu brilhantismo infantil, era mais um capítulo no livro de ausências de sua vida. Entretanto, agora, dava um tom de morbidez a seu mistério.
Relanceou os olhos no prédio da Galeria de Arte da cidade. Havia uma escadaria de uns quinze degraus, que sugeria monumentalidade e abraçava sua fachada elevada, onde alguns jovens estavam displicentemente sentados. Uns conversavam animadamente, outros liam e alguns poucos a usavam unicamente como um descanso para esperar ônibus, cujo ponto ficava logo em frente.  
Instintivamente, atravessou a rua para ver no quadro expositor os próximos eventos de arte. Subiu a cascata de degraus lentamente e parou diante do retângulo de madeira envidraçada, onde estavam destacados alguns eventos. Mas apenas um chamou sua atenção: Exposição de Vitrais Antigos Restaurados, com curadoria de Mauro Cartaxo Leme. À partir de sexta-feira (10 ) até dia 30.
A casa com seu primoroso vitral voltou a sua mente com a velocidade da luz. Valeria à pena comparecer, decidiu. Por um motivo incompreensível, uma leveza a envolveu. Os pensamentos que lhe toldavam a mente, desanuviaram e ela voltou para sua residência mais sossegada.


Foi entretida por seu mais novo interesse durante aquela semana.
Pegou emprestado um livro sobre vitrais de páginas coloridas e atraentes na biblioteca, e o folheou avidamente, decidida a conhecer aquela arte que até a pouco ignorava, ainda que no orfanato, duas peças cobrissem as paredes do altar da capela. Contudo, naquela época, ela os via simplesmente como uma forma de artistas religiosos contarem a história de Cristo e seus milagres ou mesmo de algum dos santos da Igreja. Então, a casa, despertou seu espírito para aqueles fragmentos coloridos de vidros e ela se deu conta que havia um vitral em sua vida. Intimamente, desejou que contasse algo sobre sua história, e mesmo que fosse apenas uma parte ínfima, queria que fosse um fragmento de luz e não um conto de sombras.
Quando subiu os degraus da galeria para visitar a exposição, não era mais tão inexperiente sobre o assunto. Na hora em que chegou, correu os olhos pelo pavilhão e viu umas poucas pessoas. Vitrais que variavam em tamanho estavam espalhados e cuidadosamente fixos sobre as paredes. Pegou um folheto explicativo e caminhou até um deles, o mais distante da entrada, pisando leve com sua mule, para que seus passos não ecoassem.
Os primeiros a considerar, tinham temas religiosos, onde prevaleciam o azul cobalto. Percebeu um casal a uma pequena distância, e o homem explicava em voz baixa os detalhes daquela arte para a mulher. Discretamente, ela aproximou-se para tentar ouvir o que ele dizia. 'A beleza dos vitrais não está só nas gravuras ou nas cores, mas na luz que refratam no ambiente. Nas antigas catedrais, o intuito era, controlar a luz do espaço exterior e criar um ambiente místico a fim de que os fiéis se voltassem apenas para o sagrado.'  
Ela os acompanhou disfarçadamente, enquanto o homem, evidentemente um expert naquele assunto, os guiavam naquele passeio cultural.  Quando chegaram ao quinto vitral - uma peça em art nouveau -, houve uma inflexão em sua voz, 'esta é uma representação dos profanos, se é que assim podemos chamá-los, meus preferidos.'  
Explicou com prazer, que na iminência da virada do século, a art nouveau foi anunciada ao mundo por designers  franceses e ingleses, mas tinha em Tiffany, sua maior notoriedade. Sendo um homem que buscava incansavelmente a beleza no mundo ao seu redor, as captava e reproduzia em sua arte. Criou técnicas inovadoras. Foi um mestre na manipulação de vidros. 'Seus vitrais são belíssimos', arrematou.
__O designer desse vitral é um integrante dessa escola. Ele era genial. Vê? A riqueza de cores, as figuras geométricas e os lírios estilizados? Para mim foi um dos melhores representantes da art nouveau no Brasil. Ele acompanhou a geração dos anos 60 que redescobriu a arte em vidros no mundo. Ressuscitaram a art nouveau, Tiffany e vitrais góticos. Os lírios brancos duplos e sombreados com vidro opalescente âmbar, são sua assinatura. Contudo, a maioria de seus poucos trabalhos foram exportados e ele foi pouco conhecido. Um enigma envolve sua vida. Faleceu muito jovem... - deu um suspiro de desalento - parece ser a sina da maioria dos vocacionados para a arte.
O casal adiantou-se para o exame minucioso do próximo vitral. Mas ela permaneceu, sondando melhor os detalhes daquela obra. Tentou enxergar a alma do artista. Ramos verdes subiam diagonalmente dos cantos do vitral e contorciam-se, entremeando uma figura geométrica em forma estelar, abraçada, em ambos os lados, pelos lírios brancos. O azul também estava presente.  Dependendo da posição em que este vitral fosse posicionado, emitiria uma luz fantástica!  Havia uma pequena placa de metal na base do vitral com a identificação do artista: B. Bachman.
De onde estava ainda podia escutar a voz do homem, agora era mais um cochicho, apenas para a mulher ao seu lado ouvir. Mas ela ainda queria saber mais, então virou-se para alcançá-los. Foi quando o viu. A uma pequena distância, atrás dela. O cliente da camisa azul-marinho, usando a tal. Olhava para o mesmo vitral que ela, seu olhar circunspecto avaliando os detalhes, e suas mãos nos bolsos da calça-jeans.
Ele também a reconheceu e cumprimentou com um sorriso gentil.
Ela devolveu a cortesia.
Propositalmente, ele tocou na borda da camisa, como se estivesse apontando a escolha que ela havia feito, e o gesto a desconcertou.
__ Que coincidência...- ela conseguiu dizer.
__ Não é.
__ Como?
__Não é coincidência... eu segui você - sussurrou para que apenas ela ouvisse.
Os olhos dela arregalaram, 'ele só podia estar brincando'. Ele sorriu e como se tivesse lido seus pensamentos disse:
__Brincadeirinha.
Então, como se quisesse diluir a tensão que se instalara pelo encontro comentou:
__O processo de criação de um vitral é bem interessante, não acha?
Ela colocou de lado a comoção causada pela casualidade extraordinária e tentou seguir a linha de pensamento dele.
__É... Me parece um trabalho que exige não só um senso estético bastante refinado, mas também uma sensibilidade espiritual, mesmo quando não é um motivo litúrgico o objetivo. Penso que o artesão imerge em um lugar intangível de onde ele nos traz esses sinais de luz em forma de arte.  E depois, o uso do fogo na técnica é como um batismo final da obra, como que para impressionar os olhos terrenos.
A emoção em suas palavras eram tão profundas, que ele permaneceu calado depois que ela terminou de falar, deixando-a constrangida por ter colocado em palavras seus pensamentos idealistas. Creditou, seus sentimentos enlevados, em parte, a sua mais recente experiência na casa.
Esperou que ele se afastasse discretamente dela depois de se expor de forma tão arrebatada e ingênua.
__Nunca ouvi ninguém apresentar uma ideia sobre arte de forma tão transcendente de sua natureza puramente humana. Honestamente, nunca havia pensado dessa forma. 
__Nossa...eu acho que me excedi um pouco.
__Claro que não, faz sentido o que falou.
Ana percebeu que o casal lançava um olhar de censura a eles.
__Acho que falei mais alto que devia. Arte é para ser contemplada em silêncio __sussurrou constrangida.
Ele olhou na direção de seus olhos e entendeu. Passaram diante das outras obras em silêncio e deixaram a galeria juntos. Quando iam descer o primeiro degrau, ele virou-se para ela buscando sua atenção.
__Então, se vitrais são pequenos 'sinais de luz' __disse usando suas palavras. __ são engastados em lugares onde sua mensagem deve ser levada em cuidadosa consideração, não é isso?  
O comentário fortuito e inesperado foi tão oportuno, que se ele soubesse de sua história, não teria sido tão preciso no alvo.
__Disse algo errado? __ perguntou diante do olhar admirado dela.
__Não... é isso mesmo!  Você conseguiu captar isso de uma forma que eu não tinha alcançado.
__Só segui sua linha de pensamento...você começou cantando a música e eu terminei...só isso - ela estava considerando o que ele havia terminado de falar quando ele se ofereceu para levá-la em casa, '... se quiser, é claro.'
__ Mora por aqui?
Ela permaneceu muda, e ele acreditou que por não conhecê-lo hesitava.
__Não fomos formalmente apresentados, meu nome é João.
E estendeu a mão para ela, como se aquilo fosse o suficiente para dar-lhe crédito e ganhar-lhe a confiança.
__Ana.
Ela apertou sua mão timidamente, ainda hesitante.
__Seus pais não vão gostar de ver você no carro de um estranho, não é mesmo? Entendo.
__Claro que não... meus pais... não moram aqui. Eu vim para cá a fim de estudar. Universidade...você sabe.
__Não tem família na cidade?
__Tenho algumas tias, mas não moro mais com elas.
__Bem... já está ficando tarde. Posso te levar, se for perto, te acompanho a pé, se quiser, é claro. Você tem razão, não é bom entrar no carro de estranhos, mas eu não sou o tipo perigoso.
Ela olhou para o lado, como se estivesse decidindo e finalmente refletiu em voz alta, 'acho que você é confiável'.
Eles desceram a escada devagar. Ela imersa em seus pensamentos e ele isolado nos dele. Caminharam um ao lado do outro até que chegaram ao Passat branco estacionado do outro lado da rua, ao lado da praça. Ele abriu a porta para ela, e ela entrou. Devagar, Ana ia conhecendo os códigos do mundo fora do orfanato. Geralmente, quando ficava muito desconfiada, se esquivava, mas aquele não era o caso. Pediu a Deus que não estivesse cometendo um erro.
__Se importa se eu ligar o rádio?
__Não. Gosto de música.
Ele girou o botão e sintonizou uma rádio. Oceano de Djavan, um dos hits do momento estava tocando.
__Esse cara é fabuloso, quando você pensa que ele já escreveu sua melhor música, ele te surpreende.  Lembro que ainda moleque, ouvi Samurai e fiquei super entusiasmado com o ritmo. Poxa... eu aqui falando e nem sei se você gosta dele.
__Gosto sim, e essa música dele é minha favorita - disse ela, já que não conhecia nem uma outra.
__Oceano é perfeita. E está se tornando uma unanimidade. Mas, acho que Samurai vai sempre ser minha preferida, por razões sentimentais - ele riu. __Onde é mesmo que você mora?
Ela deu as direções e ele seguiu. Durante o trajeto, perguntou qual curso ela frequentava. Informou que cursava o último semestre de Engenharia Química, mas durante o turno diurno, por isso talvez não se encontrassem muito frequentemente na faculdade, mas como parecia que eles viviam se esbarrando pela cidade, não havia o perigo de não se verem nunca mais.
Ana relaxou mais ao lado dele. Percebeu que não lhe oferecia perigo e tinha que admitir, gostava muito de sua companhia. Quando ele estacionou em frente ao prédio em que morava, ela suspirou em desalento, pela rapidez com a qual o carro havia coberto a distância entre a galeria e sua casa.
__Chegou sã e salva.
__Obrigada, João. Fiquei feliz em te conhecer __disse com honestidade.
Ele olhou para ela sério.
__Isso quer dizer que vamos nos ver outras vezes?
__Por que não? Você pode ir quantas vezes quiser à loja, que eu prometo escolher suas camisas - ela sorriu provocativa.
Ele não sorriu: 'Isso é uma promessa?', perguntou.
Ana sentiu que a atmosfera mudou e o olhar dele era intenso. 'Sim', ela respondeu sentindo o coração acelerar. Ele aproximou-se dela e beijou-a na bochecha, devagar com o intuito de sentir a maciez da pele e a fragrância de seu perfume. A impressão da rebarba dele arranhando o rosto dela evocou sensações que desconhecia.
Quando ele se afastou, foi como se o velho sentimento de orfandade a tivesse envolvido mais fortemente. Ele abriu a porta do carro e saiu, deixando-a lá dentro com a respiração suspensa. Foi só quando ele abriu a porta e ela sentiu a brisa soprar em seu cabelos, que acordou daquele momento. Saiu do carro e o pegou com seu costumeiro hábito de colocar as mãos no bolso.
__Queria vê-la novamente...fora de seu lugar de trabalho. Posso?
__Amanhã é domingo, um dos dias que posso cultivar o ócio. À tarde... pode vir à tarde.

__Eu volto amanhã, então.

₢gardeniadreams

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