Ver Capítulo 1 em postagem anterior
Ela caminhou desanimada de volta para casa. Passou
por todos os pontos de ônibus que viu no trajeto e não esperou por nenhum.
Precisava espairecer, e caminhar a ajudaria. Quando chegou à praça central da
cidade, próxima do local onde trabalhava, sentou-se em um banco de pedra ao
redor da fonte.
Não conseguia, ainda, atinar com a trama que envolvia
sua vida. Havia apenas uma grande interrogação em sua mente. Sonhara por toda a
sua vida, e durante aquela semana, tivera certeza que encontraria seus pais,
desvendaria seu passado, veria na face de outro traços de si mesma e quiçá,
compreenderia sua razão de ser e estar no mundo. Mas então, uma reviravolta.
Uma maldição? Seu nascimento envolvia um sinal nefasto? Quando imaginava que
poderia de alguma forma ver o brilho de sua existência restituído, uma palavra
recheada de desgosto eclipsava sua esperança, e o medo penetrou nas vielas
penumbrosas de sua mente.
Viu seu projeto de construção de si mesma
abalar-se.
Talvez Madre Justiça estivesse certa. Ela precisava
esquecer as partes de sua história que eram insondáveis e ir em frente.
Levantou-se e decidiu ir para casa e mergulhar nos
livros de Direito. Tinha muito que estudar e seria uma forma de tirar seu foco
das experiências daquele dia. Os reflexos dourados do sol do fim de tarde
atravessavam as folhas das amendoeiras em flor e tocavam suavemente seu rosto.
A imagem da casa surgiu em sua mente, persistentemente, tentando criar raízes e
florar quimeras. Mas, a casa encantadora, onde ela podia ter dado seus
primeiros passos e balbuciado suas primeiras palavras diante de pais extasiados
com seu brilhantismo infantil, era mais um capítulo no livro de ausências de
sua vida. Entretanto, agora, dava um tom de morbidez a seu mistério.
Relanceou os olhos no prédio da Galeria de Arte da
cidade. Havia uma escadaria de uns quinze degraus, que sugeria monumentalidade
e abraçava sua fachada elevada, onde alguns jovens estavam displicentemente
sentados. Uns conversavam animadamente, outros liam e alguns poucos a usavam
unicamente como um descanso para esperar ônibus, cujo ponto ficava logo em
frente.
Instintivamente, atravessou a rua para ver no
quadro expositor os próximos eventos de arte. Subiu a cascata de degraus
lentamente e parou diante do retângulo de madeira envidraçada, onde estavam
destacados alguns eventos. Mas apenas um chamou sua atenção: Exposição de
Vitrais Antigos Restaurados, com curadoria de Mauro Cartaxo Leme. À partir de
sexta-feira (10 ) até dia 30.
A casa com seu primoroso vitral voltou a sua mente
com a velocidade da luz. Valeria à pena comparecer, decidiu. Por um motivo
incompreensível, uma leveza a envolveu. Os pensamentos que lhe toldavam a
mente, desanuviaram e ela voltou para sua residência mais sossegada.
Foi entretida por seu mais novo interesse durante
aquela semana.
Pegou emprestado um livro sobre vitrais de páginas
coloridas e atraentes na biblioteca, e o folheou avidamente, decidida a
conhecer aquela arte que até a pouco ignorava, ainda que no orfanato, duas
peças cobrissem as paredes do altar da capela. Contudo, naquela época, ela os
via simplesmente como uma forma de artistas religiosos contarem a história de
Cristo e seus milagres ou mesmo de algum dos santos da Igreja. Então, a casa,
despertou seu espírito para aqueles fragmentos coloridos de vidros e ela se deu
conta que havia um vitral em sua vida. Intimamente, desejou que contasse algo
sobre sua história, e mesmo que fosse apenas uma parte ínfima, queria que fosse
um fragmento de luz e não um conto de sombras.
Quando subiu os degraus da galeria para visitar a
exposição, não era mais tão inexperiente sobre o assunto. Na hora em que
chegou, correu os olhos pelo pavilhão e viu umas poucas pessoas. Vitrais que
variavam em tamanho estavam espalhados e cuidadosamente fixos sobre as paredes.
Pegou um folheto explicativo e caminhou até um deles, o mais distante da entrada,
pisando leve com sua mule, para que seus passos não ecoassem.
Os primeiros a considerar, tinham temas religiosos,
onde prevaleciam o azul cobalto. Percebeu um casal a uma pequena distância, e o
homem explicava em voz baixa os detalhes daquela arte para a mulher.
Discretamente, ela aproximou-se para tentar ouvir o que ele dizia. 'A beleza
dos vitrais não está só nas gravuras ou nas cores, mas na luz que refratam no
ambiente. Nas antigas catedrais, o intuito era, controlar a luz do espaço
exterior e criar um ambiente místico a fim de que os fiéis se voltassem apenas
para o sagrado.'
Ela os acompanhou disfarçadamente, enquanto o
homem, evidentemente um expert naquele assunto, os guiavam naquele passeio
cultural. Quando chegaram ao quinto vitral - uma peça em art nouveau -,
houve uma inflexão em sua voz, 'esta é uma representação dos profanos, se
é que assim podemos chamá-los, meus preferidos.'
Explicou com prazer, que na iminência da virada do
século, a art nouveau foi anunciada ao mundo por designers
franceses e ingleses, mas tinha em Tiffany, sua maior notoriedade. Sendo
um homem que buscava incansavelmente a beleza no mundo ao seu redor, as captava
e reproduzia em sua arte. Criou técnicas inovadoras. Foi um mestre na
manipulação de vidros. 'Seus vitrais são belíssimos', arrematou.
__O designer desse vitral é um integrante
dessa escola. Ele era genial. Vê? A riqueza de cores, as figuras geométricas e
os lírios estilizados? Para mim foi um dos melhores representantes da art
nouveau no Brasil. Ele acompanhou a geração dos anos 60 que redescobriu a
arte em vidros no mundo. Ressuscitaram a art nouveau, Tiffany e vitrais
góticos. Os lírios brancos duplos e sombreados com vidro opalescente âmbar, são
sua assinatura. Contudo, a maioria de seus poucos trabalhos foram exportados e
ele foi pouco conhecido. Um enigma envolve sua vida. Faleceu muito jovem... - deu um suspiro de desalento - parece ser a sina da maioria dos vocacionados
para a arte.
O casal adiantou-se para o exame minucioso do
próximo vitral. Mas ela permaneceu, sondando melhor os detalhes daquela obra.
Tentou enxergar a alma do artista. Ramos verdes subiam diagonalmente dos cantos
do vitral e contorciam-se, entremeando uma figura geométrica em forma estelar,
abraçada, em ambos os lados, pelos lírios brancos. O azul também estava
presente. Dependendo da posição em que este vitral fosse posicionado,
emitiria uma luz fantástica! Havia uma pequena placa de metal na base do
vitral com a identificação do artista: B. Bachman.
De onde estava ainda podia escutar a voz do homem,
agora era mais um cochicho, apenas para a mulher ao seu lado ouvir. Mas ela
ainda queria saber mais, então virou-se para alcançá-los. Foi quando o viu. A
uma pequena distância, atrás dela. O cliente da camisa azul-marinho, usando a
tal. Olhava para o mesmo vitral que ela, seu olhar circunspecto avaliando
os detalhes, e suas mãos nos bolsos da calça-jeans.
Ele também a reconheceu e cumprimentou com um
sorriso gentil.
Ela devolveu a cortesia.
Propositalmente, ele tocou na borda da camisa, como
se estivesse apontando a escolha que ela havia feito, e o gesto a desconcertou.
__ Que coincidência...- ela conseguiu dizer.
__ Não é.
__ Como?
__Não é coincidência... eu segui você - sussurrou
para que apenas ela ouvisse.
Os olhos dela arregalaram, 'ele só podia estar
brincando'. Ele sorriu e como se tivesse lido seus pensamentos disse:
__Brincadeirinha.
Então, como se quisesse diluir a tensão que se
instalara pelo encontro comentou:
__O processo de criação de um vitral é bem
interessante, não acha?
Ela colocou de lado a comoção causada pela
casualidade extraordinária e tentou seguir a linha de pensamento dele.
__É... Me parece um trabalho que exige não só um
senso estético bastante refinado, mas também uma sensibilidade espiritual,
mesmo quando não é um motivo litúrgico o objetivo. Penso que o artesão imerge
em um lugar intangível de onde ele nos traz esses sinais de luz em forma de
arte. E depois, o uso do fogo na técnica é como um batismo final da obra,
como que para impressionar os olhos terrenos.
A emoção em suas palavras eram tão profundas, que
ele permaneceu calado depois que ela terminou de falar, deixando-a constrangida
por ter colocado em palavras seus pensamentos idealistas. Creditou, seus
sentimentos enlevados, em parte, a sua mais recente experiência na casa.
Esperou que ele se afastasse discretamente dela
depois de se expor de forma tão arrebatada e ingênua.
__Nunca ouvi ninguém apresentar uma ideia sobre
arte de forma tão transcendente de sua natureza puramente humana. Honestamente,
nunca havia pensado dessa forma.
__Nossa...eu acho que me excedi um pouco.
__Claro que não, faz sentido o que falou.
Ana percebeu que o casal lançava um olhar de
censura a eles.
__Acho que falei mais alto que devia. Arte é para
ser contemplada em silêncio __sussurrou constrangida.
Ele olhou na direção de seus olhos e entendeu.
Passaram diante das outras obras em silêncio e deixaram a galeria juntos.
Quando iam descer o primeiro degrau, ele virou-se para ela buscando sua
atenção.
__Então, se vitrais são pequenos 'sinais de luz'
__disse usando suas palavras. __ são engastados em lugares onde sua mensagem
deve ser levada em cuidadosa consideração, não é isso?
O comentário fortuito e inesperado foi tão
oportuno, que se ele soubesse de sua história, não teria sido tão preciso no
alvo.
__Disse algo errado? __ perguntou diante do olhar
admirado dela.
__Não... é isso mesmo! Você conseguiu captar
isso de uma forma que eu não tinha alcançado.
__Só segui sua linha de pensamento...você começou
cantando a música e eu terminei...só isso - ela estava considerando o que ele
havia terminado de falar quando ele se ofereceu para levá-la em casa, '... se
quiser, é claro.'
__ Mora por aqui?
Ela permaneceu muda, e ele acreditou que por não
conhecê-lo hesitava.
__Não fomos formalmente apresentados, meu nome é
João.
E estendeu a mão para ela, como se aquilo fosse o
suficiente para dar-lhe crédito e ganhar-lhe a confiança.
__Ana.
Ela apertou sua mão timidamente, ainda hesitante.
__Seus pais não vão gostar de ver você no carro de
um estranho, não é mesmo? Entendo.
__Claro que não... meus pais... não moram aqui. Eu
vim para cá a fim de estudar. Universidade...você sabe.
__Não tem família na cidade?
__Tenho algumas tias, mas não moro mais com elas.
__Bem... já está ficando tarde. Posso te levar, se
for perto, te acompanho a pé, se quiser, é claro. Você tem razão, não é bom
entrar no carro de estranhos, mas eu não sou o tipo perigoso.
Ela olhou para o lado, como se estivesse decidindo
e finalmente refletiu em voz alta, 'acho que você é confiável'.
Eles desceram a escada devagar. Ela imersa em seus
pensamentos e ele isolado nos dele. Caminharam um ao lado do outro até que
chegaram ao Passat branco estacionado do outro lado da rua, ao lado da
praça. Ele abriu a porta para ela, e ela entrou. Devagar, Ana ia conhecendo os
códigos do mundo fora do orfanato. Geralmente, quando ficava muito desconfiada,
se esquivava, mas aquele não era o caso. Pediu a Deus que não estivesse
cometendo um erro.
__Se importa se eu ligar o rádio?
__Não. Gosto de música.
Ele girou o botão e sintonizou uma rádio. Oceano de
Djavan, um dos hits do momento estava tocando.
__Esse cara é fabuloso, quando você pensa que ele
já escreveu sua melhor música, ele te surpreende. Lembro que ainda
moleque, ouvi Samurai e fiquei super entusiasmado com o ritmo. Poxa... eu aqui
falando e nem sei se você gosta dele.
__Gosto sim, e essa música dele é minha favorita - disse ela, já que não conhecia nem uma outra.
__Oceano é perfeita. E está se tornando uma
unanimidade. Mas, acho que Samurai vai sempre ser minha preferida, por razões
sentimentais - ele riu. __Onde é mesmo que você mora?
Ela deu as direções e ele seguiu. Durante o
trajeto, perguntou qual curso ela frequentava. Informou que cursava o último
semestre de Engenharia Química, mas durante o turno diurno, por isso talvez não
se encontrassem muito frequentemente na faculdade, mas como parecia que eles
viviam se esbarrando pela cidade, não havia o perigo de não se verem nunca
mais.
Ana relaxou mais ao lado dele. Percebeu que não lhe
oferecia perigo e tinha que admitir, gostava muito de sua companhia. Quando ele
estacionou em frente ao prédio em que morava, ela suspirou em desalento, pela
rapidez com a qual o carro havia coberto a distância entre a galeria e sua
casa.
__Chegou sã e salva.
__Obrigada, João. Fiquei feliz em te conhecer
__disse com honestidade.
Ele olhou para ela sério.
__Isso quer dizer que vamos nos ver outras vezes?
__Por que não? Você pode ir quantas vezes quiser à
loja, que eu prometo escolher suas camisas - ela sorriu provocativa.
Ele não sorriu: 'Isso é uma promessa?', perguntou.
Ana sentiu que a atmosfera mudou e o olhar dele era
intenso. 'Sim', ela respondeu sentindo o coração acelerar. Ele aproximou-se
dela e beijou-a na bochecha, devagar com o intuito de sentir a maciez da pele e
a fragrância de seu perfume. A impressão da rebarba dele arranhando o rosto
dela evocou sensações que desconhecia.
Quando ele se afastou, foi como se o velho
sentimento de orfandade a tivesse envolvido mais fortemente. Ele abriu a porta
do carro e saiu, deixando-a lá dentro com a respiração suspensa. Foi só quando
ele abriu a porta e ela sentiu a brisa soprar em seu cabelos, que acordou
daquele momento. Saiu do carro e o pegou com seu costumeiro hábito de colocar
as mãos no bolso.
__Queria vê-la novamente...fora de seu lugar de
trabalho. Posso?
__Amanhã é domingo, um dos dias que posso cultivar
o ócio. À tarde... pode vir à tarde.
__Eu volto amanhã, então.
Nenhum comentário:
Postar um comentário