João notou que Ana estava
distante.
Saíram do cinema e ela pouco
falou. Dava respostas monossilábicas às suas tentativas de iniciar um diálogo,
deixando-o inquieto.
─Aconteceu alguma coisa, Ana?
─Não...desculpe-me. Acho que
estou um pouco preocupada.
─Com o quê?
─Com a prova que vou ter amanhã ─
mentiu.
Ele segurou sua mão e entrelaçou
os dedos nos dela.
─Você vai se sair bem, sabe
disso. Mas se tiver algum outro problema sabe que pode contar comigo, não é?
Ela sorriu e acariciou seu rosto.
─Não fui uma boa companhia para
você hoje, não é? Me perdoe.
─Você é sempre uma boa companhia.
Ele deixou-a em casa, e
combinaram de se ver na terça-feira, pois na segunda passava o dia na
Universidade com seu orientador, resolvendo os últimos detalhes de sua monografia.
A casa, - o que havia visto e
sentido nela -, consumia a mente de Ana. Mal se concentrava em seus afazeres, e
sentiu-se culpada por não ter dado a João a atenção que ele merecia. Sem falar
que outra ansiedade surgia em sua vida com aquele relacionamento. Não conseguia
dizer a ele a verdade a seu respeito.
As mentiras que lhe contava
pareciam se acumular. E se perguntava o que aconteceria quando elas
viessem à tona. O que ele diria quando soubesse que sua namorada
crescera em um orfanato? Que não tinha família ou nome? Que em sua identidade
não havia nome de pai ou mãe? E que seu sobrenome, era igual à da maioria dos
órfãos, que deixavam o orfanato Menino Jesus?
Trindade.
Por mais que fosse uma homenagem
ao Criador e ao mistério que envolve Sua Pessoa, tinha dificuldades em
aceitá-lo. Os órfãos o tinham como um estigma de que haviam sido abandonados
pela família nas portas do Senhor. Algo como, o Senhor o deu, o Senhor o tome de volta.
Ana Trindade, era este seu nome.
Um nome escolhido pelas freiras na pia batismal às pressas e que denotava certa
falta de criatividade, já que haviam outras três meninas com nome igual ao
dela. Mais um punhado de Marias, e outras tantas Isabéis.
Para nomear os meninos era mais
fácil, já que Cristo tivera doze discípulos, embora só usassem o nome de dez,
pois quando Judas Iscariotes cometeu o grande pecado, difamou o nome do outro
Judas, o Tadeu. Uma das freiras disse que uma vez ousaram chamar um dos meninos
Judas Tadeu, mas as outras crianças o chamavam apenas de Judas, e quando queriam irritá-lo, Judas Iscariotes. Ao perceberem o erro, trataram de mudá-lo e
permitiram que ele o escolhesse, já que o haviam impingido - sem querer -, um
peso, que podia até denegrir, futuramente, seu caráter.
Ele escolheu o nome de Roberto.
Elas bem que tentaram negociar, influenciá-lo a escolher um nome bíblico. Até o
apresentaram com uma lista de 50 nomes do Antigo Testamento, que estava fora do
cânone de nomes escolhidos no Orfanato, que sempre dava prioridade ao Novo
Testamento, repetindo-os quantas vezes fosse necessário - pensava-se até que
era alguma promessa feita pelos padres e freiras fundadores, mas nunca
comprovou-se o fato. Porém, não teve quem o demovesse de sua decisão. Ele
queria ser Roberto e assim ficou.
Sua vida no orfanato não havia
sido ruim. Tinha boas lembranças. As freiras eram pacientes com ela, e as
crianças, com algumas exceções, foram suas amigas e confidentes. Eles, afinal
compartilhavam de uma mesma tristeza. O abandono.
Quando deixavam o orfanato e
imergiam na sociedade, havia todo o tipo de reação. E não sabia, qual seria a de João.
Naquela noite, seu sono foi
inquieto. Ao amanhecer, decidiu que voltaria à galeria de arte, e tentaria
falar com um de seus organizadores. Quem sabe não tinham mais informações sobre
aquele designer, cujos vitrais estavam nos fundos da casa de seus pais? Talvez,
aquela informação fosse mais um elo, para ajudá-la a decifrar sua história.
Ela subiu as escadarias da
galeria e caminhou até a administração. No meio do caminho, encontrou um
funcionário.
─Bom dia, posso ajudá-la?
─Sim, eu gostaria de uma
informação. Vim à uma exposição de vitrais à algumas semanas atrás, e gostaria
de entrar em contato com o seu curador, Mauro Cartaxo Leme. Estou realizando um
estudo sobre vitrais e preciso de algumas informações sobre um dos artistas que
foram expostos.
─Ah, o Professor Mauro trabalha
na Universidade. Ele é Coordenador do Departamento de História da Arte. Não
será difícil encontrá-lo.
─Obrigada.
Ela deixou a galeria para voltar
às pressas para o trabalho. Caminhou pela calçada e viu o carro de João parado
diante do sinal. Adiantou o passo para acenar para ele. E congelou na ação. Ele
conversava animado com uma moça, sentada no banco do passageiro. Entretido,
não a viu.
Ana a reconheceu. Era cliente esporádica da loja, pois na verdade o
tipo de roupa que usava era de um estilo mais clássico e elegante. Eduarda
Bellini de Alcântara. Nas raras vezes em que buscava algo mais casual para
vestir, era rodeada pelas funcionárias, que não lhe poupavam elogios pela
beleza e educação.
Seu coração afundou. Virou-se e
caminhou apressada até a loja. Tristeza e suspeitas começaram a povoar seus
pensamentos. Estava apaixonada por João. Mas, imaginava, se ele, ao menos,
gostava dela. Ele havia mentido ao dizer que estaria com seu coordenador. Ela podia
mentir, mas era genuína em relação aos seus sentimentos.
Estava tão atordoada com o que
havia visto que ao chegar na loja, Jeane, uma de suas colegas a abordou.
─Algo errado?
─Não. Só um pouco de dor de
cabeça.
─Tenho remédio para dor de cabeça
em minha bolsa.
─Obrigada, Jeane.
─E, se precisar de um ouvido
amigo, pode contar comigo também.
Ela sentou-se em uma cadeira e
suspirou.
─Vi meu namorado com outra pessoa.
─Sinto muito! O que ele disse
quando você o viu.
─Ele não me viu.
─Humm... você deve falar com ele.
─Não quero nem vê-lo, agora. Não
sei se quero vê-lo mais.
─Entendo. Quando estiver mais calma,
talvez.
─Obrigada por me ouvir, Jeane.
Na quarta-feira, Ana pediu para
ser dispensada pela manhã do trabalho a fim de resolver algumas questões pessoais.
Planejava ir ao Departamento de Arte. Precisava falar com Professor Mauro.
No dia seguinte, saiu logo cedo
para a Universidade e procurou pelo Professor Mauro no Departamento de Arte.
Foi mais fácil que imaginava. Alto, corpulento, cabelo amarrado em um rabo de
cavalo e de barba encanecida e bem aparada, era um homem das artes. Até em sua
forma de vestir-se, instigava e provocava seu observador. Olhou-a de forma inquisidora
através das lentes de seus óculos.
─Está me procurando? ─ ecoou com
sua voz possante.
─Bom dia, Professor. Meu nome é
Ana e estou realizando uma pesquisa sobre vitrais. Fui à exposição que
organizou e fiquei interessada em um dos artistas em especial: B. Bachman.
Seu rosto manifestou surpresa com
o assunto.
─Que tipo de pesquisa? Você é
aluna do Curso de História da Arte?
Seu rosto enrubesceu.
─Na verdade, sou estudante de
Direito. Me considero uma entusiasta das artes, em especial dos vitrais.
Ele abriu um sorriso largo.
─A arte tem esse poder de entusiasmar
as pessoas, de fato. Mas fiquei curioso, por estar interessada justo em
Benjamin.
─Benjamin?
─Sim, foi aluno desta Universidade
anos atrás. Aluno de Arquitetura, mas era uma artista e designer brilhante. Uma
figura especial. Não havia muitos trabalhos dele a serem apresentados, mas tenho
fotos de outros trabalhos dele. Em preto e branco. Mas, ainda assim é possível
ver o desenho perfeito. Pode voltar outro dia? Trarei as fotos.
─Estudo aqui à noite, durante o
dia trabalho.
─Às quartas, estou aqui à noite.
─Perfeito!
Ana ficou satisfeita com sua
descoberta. Então, o seu artista chamava-se Benjamin. Agora queria entender
como ele estava relacionado a sua história, se é que estava. Chegou a loja e
Jeane à abordou.
─João à procurou.
Seu coração disparou ao ouvir
aquilo.
─Achou que você tinha estado
doente, pois disse que foi à sua casa e você não respondeu a campainha. Ele te
esperou em frente à loja nos últimos dias e também não te viu.
─Saí pelo estacionamento.
─Ele parecia preocupado. Por que não
fala com ele e tira esta história à limpo?
─Vou pensar.