quinta-feira, 6 de agosto de 2015

ANA E JOÃO - ÚLTIMO CAPÍTULO ( A CASA ) - parte 1

parte 1

Uma mentira desfeita pode ser libertador. Ou enlouquecedor.

As cordas da fraude que controlam o fantoche são cortadas e o deixam sem vida. O louco abandona a batuta, sai de cena e expõe o signo e o toque da orquestra que ecoava, tão insana e harmoniosamente bem, um desconcerto sob sua regência e cuja tormenta só desinquietava os ouvidos mais sensíveis.

O tapete sacudido de debaixo de seus pés revelavam o esgoto onde pisava.

A fúria selvagem da verdade consumia a mentira que João vivia. Havia pressentido algo. Talvez soubesse, mas não acreditara na verdade. E sim na mentira.

Tinha avançado todos os passos que conseguiu, mas não alcançou o jardim. Parou no meio do caminho e ficou ali paralisado pelas lembranças, temendo seu papel naquela história sórdida.  Queria encontrar forças para levantar-se do chão e ir embora. Mas permaneceu esquivo e ouviu um encontro. Reconhecimento. E acabou por lembrar-se mais de si do que desejava.


****

—Eu abri o portão —João ouviu a voz envelhecida de Obedina. —Eu abri o portão e fui testemunha da fuga deles pela noite. Não me arrependi. Nem quando vi sua mãe fechar os olhos para este mundo. Benjamin deu a ela algo que jamais conheceria se não fosse por ele.

Obedina estava sentada no banco de pedras e Ana no degrau que levava a cozinha da casa. A cabeça entre as mãos. Acreditara que se soubesse toda a verdade se sentiria completa, não roubada. O coração estava pesado. Mas seus olhos mantinham-se secos. Era absolutamente incompreensível para ela como um ser humano sentia-se no direito de destruir o outro. Queria entender como pessoas se agrupavam e conspiravam para tirar a luz dos olhos de alguém que nunca lhes fizera mal. Seu pai apenas amara sua mãe, nada mais.

—Onde está ele, agora? O assassino de meu pai?

—Seu avô? — perguntou Obedina.

Ana levantou-se exasperada. Não queria pensar naquele homem como parente seu. Sua cabeça começou a doer.

—Ele morreu, Ana. Sua bisavó também. Mas ele foi primeiro.  Três anos após a morte de Clara, ele foi acometido por um câncer terrível. O poderoso Otho Braun definhou aos poucos. Tornou-se tão vulnerável diante da enfermidade. Em seus últimos dias vi algo em seu olhar que jamais imaginei que iria presenciar: medo. 

Não comentou com Ana que ele nunca se arrependeu de seu crime ou demonstrou qualquer remorso pela morte da filha. Simplesmente não falou mais em seu nome. Era como se ela não houvesse existido. Obedina ficou responsável por seu funeral. Nenhum dos conhecidos da família compareceu. 

—Sua bisavó faleceu um ano depois. Andava pela casa no meio da noite. Não dormia. Era uma mulher bastante atormentada. Uma manhã encontrei-a na biblioteca desacordada. O médico disse que foi um enfarto.

Ana olhou compadecida para Obedina. Uma mulher que havia carregado o peso de tantas vidas — belas e feias. Pareceu-lhe cansada pelo que havia visto e vivido.

—Foi você quem cuidou do jardim de meus pais?

Ela acenou com a cabeça.

Por muitos anos a casa havia ficado completamente abandonada. Passou alguns anos longe da cidade. Foi viver um tempo com sua família. Precisava sossegar o coração. Depois de dez anos afastada, voltou e passou a cuidar do jardim. Gostava de imaginar Clara em seus dias felizes. Era tão tênue antes de Benjamin e tornou-se tão vibrante com ele. O pai de Clara o odiara por cada sorriso que havia provocado nela, pela alegria que a filha passou a transbordar, pelo brilho, pelo olhar perdido em sonhos, pela resistência e por aprender a viver sem a ingerência brutal dele. Acima de tudo, Benjamin apagou cada impressão de Otho Braun em Clara. Ele não se via mais na filha. 

—Obedina, por que você nunca foi me visitar?

Ela olhou para Ana. Tão parecida com a mãe. Poderia até mesmo dizer que estava diante de Clara, ainda que a filha tivesse algo que faltava à mãe, e que talvez tivesse herdado do pai. Uma dureza necessária para sobreviver diante do caos. Clara mudou após conhecer Benjamin. De um frágil bibelô tornou-se uma moça determinada a largar o luxo e romper com a dominação paterna para viver algo que nunca experimentara na vida, amor. Mas nem de longe fora o que Ana havia se tornado, uma mulher capaz de ficar em pé sozinha. Porém, Clara teve seus elementos e Ana tinha os dela.

 —Me perdoe, Ana. Mas o orfanato tinha regras, e não podia burlá-las. Foi a exigência que me fizeram para manter nosso segredo. Eu a visitei nos primeiros anos, quando Dr. Otho ainda estava vivo, ainda que com muito medo que ele descobrisse algo sobre você. Nunca compreendi porque não foi adotada em seus primeiros anos de vida. Isso não era natural. Você era um bebê lindo e saudável. Todos, no orfanato, acreditavam que você seria adotada por uma boa família logo. A última vez que a vi, tinha cinco anos, mas nem mesmo assim perdemos a esperança. Nesta época você não imaginava quem eu era. Depois, eu saí da cidade e fui morar com uns parentes durante um tempo. Quando voltei, soube que você ainda estava no orfanato, mas logo o deixaria. Mesmo indo de encontro ao regulamento, deixei o endereço da casa com a Madre — suspirou— acreditava que ela poderia, quem sabe, por um toque da providência entregá-lo a você. No fundo eu sabia que este dia chegaria. Mas tinha que ser o momento certo.

—Eu sempre quis saber quem eram meus pais. Daria tudo no mundo para poder vê-los ou tocá-los.

O dia escurecia. Ana viu a primeira estrela surgir no céu. Precisava ir. Descobriu que Obedina morava a duas quadras dali. E que quase todos os dias estava na casa. Por puro acaso não se encontraram antes.

—Acredito que esteja na hora de mudar minha rotina — ela disse e enfiou a mão no bolso, removendo de lá uma chave que estendeu para Ana e que estava amarrada a uma fina fita de cetim azul. Um pouco amarelada nas bordas, mas era azul.

Ana pegou a chave e ficou olhando.

—Não que abrir a casa? Olhá-la por dentro? Conservei-a do mesmo jeito que seus pais a deixaram.

O coração de Ana falhou uma batida.

—Hoje não. Preciso me preparar para isso.

—Eu entendo.

Ana olhou para a mulher que demonstrou lealdade inabalável à história de seus pais, tomou sua mão e beijou-a, pegando Obedina de surpresa.

—Obrigada. Muito obrigada por tudo o que fez por nós.

—Só cumpri minha missão.

Começaram a caminhar em direção à frente da casa e Ana perguntou:

—O que aconteceu à mulher que levou meu pai até o Dr. Otho? Será que ela ainda vive na cidade?

Obedina suspirou.

—Sim, Ana. Mas é melhor esquecê-la.

Ana olhou nos olhos da mulher de forma questionadora.

—Esquecer? Não... ela foi responsável pela morte de meu pai assim como meu avô. Ela o levou para uma armadilha. Eu não entendo porque as pessoas desta cidade até hoje mantém esta história como um segredo a ser guardado. O todo-poderoso Otho Braun morreu. De que tem medo?

—Do mito, talvez. Passaram anos caladas e à medida que o tempo foi passando a verdade não importou mais. Mas não é apenas isso, Clara. Há pessoas inocentes envolvidas.

—Não existem inocentes em uma conspiração de assassinato. E no final, a verdade é sempre o melhor remédio.

—A verdade sim, mas cuidado com a vingança. Ela pode machucar a você também.

—O que eu tinha de ser machucada, já fui. Eu vou gritar aos quatro cantos desse mundo a verdade. Dizer quem matou meu pai e quem se beneficiou. Não vou me calar.

Obedina olhou-a preocupada.

Chegaram ao portão e o fecharam atrás de si.

João estava oculto nas sombras da casa. Quis saber qual o primeiro passo a dar em sua nova realidade, mas só conseguia sentir dor, frustração e raiva. Perdera a vida que acreditava ter e com ela. Ana se foi.


****


João abriu a porta de sua casa.

O pai e a mãe estavam em casa. Eduarda e seus pais os visitavam. A namorada abriu um sorriso ao vê-lo, mas este logo morreu em seus lábios ao perceber o estado de atordoamento em que se encontrava. 

—Nós o esperávamos para jantar, João. Esqueceu que tínhamos visita hoje?

Ele não respondeu, apenas a encarou. Havia algo em seu olhar que a deixou muda.

—João, não vai cumprimentar Eduarda? —perguntou o pai com sua habitual gentileza.

Ele continuava diante da mãe. Os lábios crispados e as mãos cerradas. Então, num acesso de fúria ele rompeu a tensão que estava sobre ele, agarrando um jarro da mãe e estilhaçando-o contra o espelho da sala.

Melissa colocou as mãos sobre a boca.

—O que é isso, João? — o pai pulou da cadeira e ficou entre ele e Melissa. —Filho, por que fez isso?

Melissa começou a chorar diante do pequeno grupo que os olhavam chocados.

—Foi com o dinheiro sujo de sangue que Otho Braun te deu que comprou todas essas coisas finas? — gritou descontrolado.

Ela se afastou dele e deu-lhe as costas.

—Calma, João — o pai tentou contê-lo, mas ele se afastou do pai e foi em direção à mãe.

— Nunca existiu nenhum Benjamin, não é mesmo? Eu o inventei, não foi? Você pretendia o quê? Me enlouquecer?  - perguntou descontrolado.

Ela se virou para ele com os olhos cheios de lágrimas.

—Eu queria te proteger, meu filho.

—Não! Não vem com esta história. Chega de suas mentiras.

Ao perceberem a seriedade do confronto no meio do qual foram pegos, Eduarda e os pais levantaram-se e despediram-se do pai de João.

—Qual é o nome que se dá ao que você fez? Me diz. Cúmplice de assassinato?

—Não é isso...você está exagerando... não foi assim.

—Chega, Melissa — o marido falou. — Está na hora de falar a verdade para ele. Que ele realmente presenciou um assassinato!

João caiu sentado na poltrona e escondeu o rosto nas mãos.

—O que você queria? Que eu dissesse a uma criança de cinco anos que ele havia sido testemunha de assassinato? Não. Ninguém faria isso em meu lugar. Ninguém. Você mesmo — apontou para o marido —, concordou comigo que o melhor era ficarmos calados. Agora não tente se esquivar da responsabilidade.

— E por que não entregou o assassino para a polícia? — perguntou João desolado querendo encontrar uma razão para a mãe ter se calado diante daquele mau.

Melissa riu histericamente.

—Otho era o dono da polícia! Ele era dono de tudo! Era o imperador desta cidade. Ah, meu filho você não sabe o que é maldade se não conheceu Otho Braun.

—Eu o conheci.

—Eu sabia... — ela murmurou. —Quando vi você conversando com aquela moça na praça, senti que havia algo de errado com ela... ela...só pode ter sido Obedina que mentiu para todos nós, todos esses anos.

João não podia conceber com o que estava ouvindo. Sua mãe via tudo tão distorcido, que por um instante temeu que não houvesse cura para seu mau.

—Por que se aproximou de Otho Braun se ele era pura maldade? Por que não foi embora? Por que se envolveu ao ponto de atrair tio Benjamin para a morte?

—Tio Benjamin? — Melissa debochou. — Por que eu me aproximei de Otho Braun? — ela bufou na cara dele. —Por que Benjamin se aproximou de Clara Braun? Por que não faz essa pergunta? Você era uma criança. Benjamin se aproximou de Clara por puro interesse! Porque ela era filha de um homem poderoso e influente.

—Não. Você é assim. Não ele. Ele a amava. Mas você nunca vai entender isso.

Ele abandonou a sala e subiu as escadas deixando os pais a sós.

Se olharam, mas não haviam palavras entre eles. Qualquer ponte de conexão havia desaparecido anos antes. Ele se dirigiu à cristaleira, removeu uma garrafa de scotch de lá e pegou um copo.

—Vai querer um drinque, Melissa? Acho que vai precisar — o tom irônico não lhe passou despercebido.

Ela cruzou os braços e quando ouviu que João descia as escadas aproximou-se. Ele carregava uma mala pequena.  Voltou-se para o marido em desespero e pediu.

—Faça alguma coisa, ele que ir embora.

—Não. Eu estou indo embora. — corrigiu-a João e sem se despedir atravessou a porta da frente.

Melissa o seguiu e enquanto ele colocava a mala no carro ela segurou o braço dele.

—Não faça isso!

Ele se desvencilhou dela e entrou no veículo. Deu partida no carro, sem mesmo olhar através da janela para a mãe em uma despedida e foi embora.

Ela permaneceu um tempo do lado de fora da casa, sentindo o frio da noite em seu rosto, depois voltou-se para entrar em casa. Ele voltaria. Quando subia as escadas, viu o marido descendo. Sua mala, sempre pronta para suas frequentes viagens, estava em sua mão. Ela enrugou a testa.

—Onde vai?

—João tem razão. Não há mais necessidade de vivermos uma mentira. Depois, envio alguém para pegar o resto de minhas coisas.


****


O Professor Mauro ainda tinha o olhar incrédulo. O relato de Ana parecia surreal. Sempre imaginara que Clara havia dado à luz a um bebê morto. Foram tantos os rumores naquela época, mas a única verdade era impronunciável. Nem os loucos se arriscavam. Nem mesmo foram engendrados poemas com versos camuflados sobre o amor de Clara e Benjamin. Ele havia tentado manter a arte de Ben viva como uma homenagem e celebração ao que ele havia sido e criado. Quando aquela jovem chegara em sua sala interessada nos vitrais de seu amigo ficara emocionado, mas agora que ela revelava que era a parte não contada daquela história, estava estarrecido.

—Sabe... — ele começou, mas sua voz embargou. Abriu a gaveta e retirou de lá uma caixa de lenços descartáveis. Colocou um deles sobre o rosto para conter as emoções.

Mais controlado disse à ela:

—Ele era meu amigo. Era simplesmente alucinado por sua mãe... Quando faleceu esse Campus ficou de luto. Puxa, como não imaginei que estava diante da filha de Benjamin.

Ana contou a ele sobre os vitrais que haviam nos jardins da casa e que um deles estava avariado. Também confidenciou-lhe que buscava um modo de expor a história dos pais. Queria que fosse um caso solucionado e não um crime que as pessoas esquecessem sem que a justiça tivesse sido feita. E a justiça naquele caso era expor o culpado, ainda que estivesse morto, ainda que não tivesse havido julgamento humano, testemunha ou veredito, acreditava que havia necessidade de um reconhecimento da verdade. Era o mínimo de reparação que seus pais mereciam.

—Vou te ajudar. E também vou à sua casa para dar uma olhada nos vitrais.

Sua casa.

Ela agora tinha uma casa. Aquilo era paradoxalmente reconfortante. Era uma casa ausente de família, mas ainda assim estava cheia de recordações. Boas. Sentia-se forte para abrir a porta e entrar.


****

Sentia-se desconcertada diante daquela casa. Sombria. Em estilo gótico, era altiva. As janelas pareciam olhos sinistros observando-a. Talvez, fossem como sua dona. Já havia passado algumas vezes diante dela, mas não imaginava o quanto estava conectada àquele lugar desconsolador.

O portão estava trancado e ela tocou a campainha. Olhou a rua deserta. Ninguém se aproximava. Acreditou ter visto uma pessoa a espiando da janela. A porta da frente abriu-se. Uma moça, que parecia empregada da casa aproximou-se.

—O que deseja?

—Falar com Melissa Monteiro.

—Dona Melissa?

—Sim.

—Um momento, por favor — deu-lhe as costas e foi saindo, mas Ana a impediu.

—Espere... ela já está me esperando. Abra o portão  exigiu autoritária.

A moça pareceu indecisa.

—Posso te garantir que ela está me esperando. Abra.

Ela fez como Ana a mandou e caminharam juntas através da aleia de arbustos. Entraram no hall da mansão e ela pediu que Ana sentasse.  O luxo estava em cada canto da casa. Mas era opressor. Uma súbita sensação de que era observada fez com que Ana se virasse. Então, ela a viu. E lhe era familiar. Impossível não reconhecê-la. Chocou-se com a descoberta. A mulher também não estava tranquila diante dela.

—O que faz em minha casa?

Ana se recompôs, pensaria depois, nos desdobramentos daquela nova descoberta.

—Não imagina o que vim fazer em sua casa, Dona Melissa?

—Nem mesmo a conheço. Vou chamar meu motorista para colocá-la para fora.

—Me conhece sim. Para que fingir. Desde a primeira vez que me viu soube quem eu era, ou ao menos suspeitou. Mas deixe-me apenas confirmar suas suspeitas: sou a filha de sua ‘amiga’. A que você traiu. Sou a filha do homem que você atraiu para a morte — Ana a olhou agressiva. — Que maldita influência Otho Braun tinha sobre você para que tenha cometido algo tão repulsivo? Dinheiro? Poder? Foi por isso que você se vendeu?

Melissa estreitou o olhar. E numa voz vagarosa e profunda devolveu.

—Realmente era uma maldita influência que a sua família tinha sobre mim e os meus — Melissa aproximou-se dela —Até hoje. Vocês são insidiosos. Seu avô destruiu a vida de muita gente, Benjamin foi só mais um. A desgraça dele foi conhecer Clara Braun. Como a de meu filho foi conhecer você — o sopro gélido sobre sua alma causou-lhe arrepios. — Atraí-lo fez parte de um plano maligno para me atingir? É mais uma manifestação do poder perverso dos Braun, que destrói a tudo quanto toca?

As palavras de Melissa abalaram Ana e ela teve dificuldade de reencontrar seu raciocínio. 

—Dr. Otho tinha uma forma invulgar de se infiltrar na vida das pessoas, encantava com seu poder e depois as aprisionava. Sufocava devagar, como uma cobra que se enrosca em você e vai te espremendo. Não permitia que ninguém respirasse quando estava próximo. Você puxou a seu avó. Ardilosa, veio à minha casa, sem meu convite. Mentiu com o intuito de invadi-la. Quer se impor sobre mim, pois já o fez a meu filho, envolvendo-o nesta sua teia macabra. Colocou-o contra mim. Ele não sabe lidar com os Braun, mas eu sei.

Ana sentiu como se as trevas que envolviam aquela casa estivessem se infiltrando por seus poros. Sentia-se desarranjada. Sua respiração estava presa. Não encontrava ar.

—Você nunca imaginou, não é mesmo? Não sobrou ninguém de sua família para te contar, mas eu farei isso para você.  Você é a neta de seu avô — olhou bem dentro dos olhos perturbados de Ana. — Você é o retorno daquele velho maligno.

Um soco em seu rosto não surtiria um efeito pior em Ana que aquelas palavras. Fechou os olhos, numa tentativa de suportar aquele horror.

—Você é Ana Braun! Tão pérfida quanto seu avô!

—É mentira, Ana.

Uma voz masculina soou por trás dela, rompendo com os transe no qual se encontrava, e trazendo-a de volta do pesadelo onde havia mergulhado. Sua mãos suavam. Seus pés não conseguiam dar nenhum passo e o que mais queria era ir embora daquele lugar.

—Você voltou para casa mais rápido do que eu imaginava, meu filho — Melissa falou em tom de deboche. — Mas eu não estou revelando nenhum mentira, você não o conhecia como eu, querido. Eu reconheci Otho nela assim que a vi. Sangue é um legado inevitável — apontou calma, ignorando o ímpeto do filho ao intrometer-se na conversa.

—Pare com isso!

João se aproximou de Ana e ficou diante dela.

—Você se parece com Clara, Ana. Com exceção de seus olhos — a voz dele era morna. —Você tem o olhar de seu pai. Benjamin. Eu os conheci. Você não tem nada de Otho Braun. Clara não tinha nada do pai. E foi por isso que quando encontrou alguém com coragem para livrá-la das garras dele, não hesitou. Infelizmente, eu tive que permanecer sob seu domínio por tempo demais.

Olhou para a mãe magoado.

Ana respirou fundo e finalmente conseguiu sair da paralisia em que se encontrava. Angustiada procurou a porta de saída e dirigiu-se até lá. Abriu-a, saiu e correu até o portão, mas para seu desespero ele estava fechado. Nem quando estava no orfanato sentira-se tão desnorteada. Talvez precisasse chamar a empregada, virou-se e viu João. Sério, ele não disse nada, apenas abriu o portão para ela.

Ana saiu e não olhou para ele. Não queria que visse o quanto estava assustada com o que havia acabado de experimentar. Andou rapidamente pela calçada sem olhar para trás até sair daquela rua. Queria estar longe daquela casa. Daquela influência. 

₢Gardenia Yud

OBS: Para aqueles que desejarem ler, todo o conto ' A CASA ' já encontra-se neste blog. 






domingo, 2 de agosto de 2015

CLARA E BENJAMIN - CAPÍTULO 11 ( A CASA ) - parte 3

PARTE 3 

1970


Clara caminhou até o portão da frente para receber Melissa e João.

Percebeu que o menino ficou espantado com sua barriga. Caminharam em silêncio até o jardim e sentaram-se diante da estufa.

—Onde está tio Benjamin?

—Ele precisou sair para trabalhar, João. Mas, vê? O quebra-cabeça já ficou pronto. Ele estava ansioso para você voltar e ver o resultado.

—Eu falei para minha mãe me trazer — disse zangado. —Queria ter ajudado a terminar.

Melissa fez um muxoxo com os lábios.

Eles haviam voltado uma vez mais depois da primeira, mas Melissa e Clara discutiram e ela evitou voltar.

—O que aconteceu com a sua barriga? — perguntou João.

—Tem um presente aqui.

Ele riu.

—Não, tia Clara comeu muito.

Clara gargalhou.

—Tem um bebê aqui.

—Um bebê?

—Isso.

Ele pousou a mão no ventre de Clara.

—Não toque na barriga dela, João!

—Não seja dramática, Melissa.

—Pode ser uma princesinha, João. Você quer vê-la?

Ele inclinou a cabeça de lado e ficou olhando para o ventre de Clara, depois deu de ombros e correu para a estufa.

—Já sabe para quando é?

—Dezembro.

—Que horas Benjamin chega?

—Por que?

—Não acho bom você ficar aqui sozinha neste estado.

—Estou bem.

Clara tinha medo de sentir as dores e Benjamin não estar ali a seu lado, mas não compartilhava aquilo com ele, e menos ainda com Melissa. Não tinha a mínima ideia de como comportar-se na hora do parto. Procurara ler alguma coisa sobre o assunto, mas os livros que tinham à disposição eram mais técnicos. Ajudaram-na pouco.

—Posso falar com sua avó. Quem sabe ela não se oferece para receber você lá até o nascimento do bebê?

Clara enrugou a testa.

—Quantas vezes tenho que te dizer que jamais voltarei para aquela casa? Prefiro a morte!

Exaltou-se de tal forma que João a ouviu e olhou-a assombrado com suas palavras. Clara logo se arrependeu por causa do bebê. Acariciou a barriga num instinto protetor e sussurrou palavras de conforto para o ser que ainda ia chegar.

—Não quero que fale mais sobre esse assunto, está bem?

Melissa anuiu.

****

—Dr. Otho quer falar com você Benjamin.

Ele olhou para o lado, viu o motorista esperando-a dentro do carro e depois voltou-se para ela. Seu olhar era sombrio.

O papel de Melissa na família de Clara sempre lhe parecera um tanto grotesco. Ela parecia uma mistura de espiã, lambe-botas e tinha lá suas suspeitas de outras atribuições. Mas aquilo já era demais. Esperar que chegasse do trabalho e sorrateiramente abordá-lo na esquina de casa, trancando seu carro era demais.

—Preciso falar-lhe longe de Clara, para não aborrecê-la.

Ao ver que ele continuava de cenho fechado, ela insistiu.

—É para o bem dela. Ele quer uma trégua.

Benjamin deu um sorriso irônico.

—Duvido!

—Dê uma chance a ele, Benjamin. Por Clara e por essa criança que está por chegar. Eu percebo que ela está bastante ansiosa. Não é bom para ela.

Ele suspirou.

—Onde?


****


—Mamãe, onde vai? Deixe eu ir? Não quero ficar em casa só!

Ela foi até ele, que já estava de pijamas.

—Meu amor, já devia estar dormindo.

Virou-se para a babá.

—Conte uma história para ele dormir e coloque-o na cama.

—Já o fiz Dona Melissa, pensei que ele já dormia.

—Conte outra história e outra e quantas forem necessárias até que ele durma — exasperou-se.

—Sim, senhora!

—Quero o papai!

—Seu pai está viajando, já te disse isso.

—Quando chega?

—Semana que vem?

—Quanto tempo é semana que vem?

Ela se virou em direção a porta impaciente.

—Deixa eu ir, mãe?

A babá o tomou pela mão e levou-o escada acima.

Melissa entrou no carro, mas então lembrou-se que havia esquecido algo. Desceu, entrou na casa e foi em direção a seu quarto. Ao vê-la entrar o motorista saiu do carro por um instante e esgueirou-se pelas árvores da alameda. Ela o mataria se soubesse daquilo, mas estava apertado e não daria tempo de ir ao banheiro.

João ouviu os passos da mãe subindo as escadas. A babá apenas o colocara na cama de forma impaciente, ordenando-o que dormisse após ameaçar chamar o lobisomem se ele não a obedecesse. Apagou a luz e saiu de seu quarto.

Ele saiu da cama e viu através da brecha da porta entreaberta quando a mãe entrou no quarto. Desceu as escadas, saiu pela porta da frente e viu a porta traseira do carro aberta. Entrou no veículo e esgueirou-se pelo compartimento da bagagem. Permaneceu calado e quando percebeu que a porta abria-se prendeu a respiração. 

Ouviu a voz da mãe.

—Aqui! Vá até este local.

Ela ia visitar tia Clara e tio Benjamin.


****


Ao chegar no local, Melissa viu Benjamin encostado no fusca.

Ele foi até ela.

—Logo ele estará aqui. Vocês resolvem isso e fica tudo bem.

Ele abaixou a cabeça e depois levantou-a, olhando para o lado. Melissa percebeu que ele aparentava impaciência.

O terceiro carro chegou e o pai de Clara desceu. O motorista manteve os faróis acesos enquanto Otho Braun caminhava em direção a eles.

O pai de Clara se aproximou, olhou para Benjamin e deu um sorriso cínico.

—Sabe, você apareceu bastante às minha custas, não foi? Entrou na minha casa, levou minha filha. E agora fico imaginando o que vai querer depois.

Benjamin olhou para Melissa confuso.

—Não quero nada do senhor. Estou aqui por causa de Clara.

—É meu dinheiro, não é? Foi isso que você desejou desde o início.

Benjamin o olhou sarcástico.

—Eu não preciso de seu dinheiro. Nem eu nem Clara.

—Nem sua cria!  O que quer que seja não vai ver um centavo meu. Tá pensando que vou aceitar meu sangue misturado ao seu?

Benjamin ficou sério, de repente, um temor cresceu em seu peito por seu filho... ou filha.

—Não se preocupe. Não o procuraremos, jamais.

—Não me procurarão mesmo. Bem... minha filha eu quero de volta. Não a criei para dá-la a um ser abjeto como você.

Benjamin estreitou os olhos e virou a face, suas mãos estavam no bolso. Então, ele olhou para o sogro e disse:

—Clara é minha esposa, minha família.

 Passou por ele e foi em direção à seu veículo.

Foi quando ouviu um clique metálico. Benjamin voltou-se para ele e viu a arma apontada em sua direção.

—Dr. Braun, o senhor ainda não falou da proposta que tem para ele. Ofereça-o dinheiro. Clara voltará para casa — Melissa pediu.

—Jamais aceitarei um centavo dele, Melissa.

Foi então que ouviram a voz infantil e Melissa sentiu-se esmorecer.

—Mamãe!

—João!? João, volte para o carro.

—Tio Benjamin!

Ele correu em direção ao grupo sem dar ouvidos a voz da mãe. Foi quando um estampido soou na noite. Melissa voltou-se para Benjamin e cobriu a boca com a mão ao vê-lo estendido no chão, com uma mancha vermelha espalhando-se sobre sua camisa branca.

Otho Braun guardou a arma em seu bolso e caminhou calmamente em direção ao carro. Ao chegar diante da criança que estava paralisada sem entender ainda a realidade que estava diante de si, afagou seus cabelos. Agachou-se diante de João e falou, para que apenas ele ouvisse:

—Esse será nosso segredinho, campeão.

João encarou o dono da mansão escura. O homem que ele temia, e sua mãe o mandava chamar de senhor. O homem que ela dizia ser bom, mas ele sabia que não era. Começou a tremer e desejou que seu pai estivesse ali.

Viu ele olhar em direção à sua mãe e colocar o dedo indicador diante dos lábios.

Melissa não sabia o que fazer: socorrer Benjamin ou pegar o filho e fugir dali? Optou pela segunda alternativa. Foi até João pegou-o no colo e esquivou-se para dentro de seu carro.

—Vá! — ordenou ao motorista.

Já no carro, ela abraçou o menino que estava trêmulo. Depois levantou o queixo do menino e olhou-o bem dentro dos olhos castanhos. As pupilas ainda estavam hipnotizadas pelo cenário diante dele. Ela respirou fundo e sorriu:

—Meu querido, o que você viu... foi só uma brincadeirinha. Não foi real.

Acariciou o rosto dele.

—Vamos... coloque um sorriso no rosto, está bem. Você já é um homenzinho.

—Tio Benjamim...— ele conseguiu balbuciar.

Ela olhou-o sério e disse.

—Não fale mais nesse nome.


****


Clara andava de um lado para outro. Sentia-se angustiada.

Por que ele demorava? Será que o carro havia quebrado novamente? Oh, meu Deus! Ela olhou para o relógio. 1:30 h da madrugada.

Foi em direção a porta e saiu da casa. Foi até a calçada. A rua escura estava deserta. ‘Oh, Benjamin, onde você está?’

Ela levou a mão à barriga e depois ao coração.

Voltou para dentro de casa. Tentou se acalmar. Se ele chegasse e ela estivesse nervosa, ficaria zangado. Sentou-se no sofá e adormeceu.

Ele sentou-se a seu lado e sorriu. ‘Já disse para você não se preocupar, eu sei me cuidar.’

Ela acordou com uma batida na porta. Olhou para o relógio. 6:15 h.

Por que ele estava batendo na porta?

Foi até lá e abriu-a. Um policial estava à porta. O coração dela disparou. Ele olhou para a barriga dela e pareceu incomodado.

—Bom dia, senhora. Não quero que se preocupe, mas precisa nos acompanhar até o hospital, seu marido sofreu um acidente.

Clara levou a mão ao coração e começou a respirar com dificuldade.

—Está tudo bem! A senhora só tem que vir conosco até o hospital.

—Ele o mandou aqui?

—Sim.

Ela o acompanhou exatamente como estava e entrou no banco de trás do veículo. Ao chegar ao hospital ele saiu e pediu:

—Espere só um momento.

Clara o viu caminhar até a recepção e falar com uma enfermeira que olhou em direção ao veículo. Ela fez um aceno com a cabeça e desapareceu pelos corredores hospital. Alguns minutos depois voltou à recepção e acompanhou o policial até o carro.

Ele abriu o carro para que ela saísse.

—Venha, senhora.

Clara saiu e se dirigiu a enfermeira.

—Meu marido está bem?

—Venha, minha querida. Vamos entrar.

Ajudou-a a entrar no hospital e pediu que sentasse.

—Até logo, senhora — despediu-se o policial.

—Até logo. Obrigada.

Ele a olhou pela última vez e se foi.

A enfermeira sentou-se ao lado de Clara e tomou a mão dela. Um sentimento nefasto se apoderou dela, apenas de olhar para a mulher.

—Quero ver meu marido, agora — pediu com sua respiração acelerada — Por favor! Por favor!

—Eu sinto muito! Seu marido não está mais entre nós.


****


 Clara gritava diante das dores das contrações uterinas.

—Tente respirar de forma regular — uma voz calma falava ao seu lado.

Lágrimas rolavam sobre sua face ruborizada. Ela gritou novamente.

—Querida, vamos ajudar essa criança a vir ao mundo? Ela precisa de sua força.

Clara olhou para a mulher. Seus olhos estavam marejados de lágrimas e ela deu um soluço profundo, depois respirou fundo e murmurou:

—Está bem!

—Quando eu disser para fazer força, você faz. Do contrário apenas respire.

Então deu-lhe a mão.

Meia–hora depois ouviram o choro de um bebê.

—Parabéns, Clara. Você tem uma linda menininha.

Limparam a criança, trouxeram-na para Clara e a aconchegaram a seu peito. Ela chorava desconsolada. Então, quando a boca pequena e perfeita encontrou o seio, começou a sugá-lo.

Lágrimas desciam da face de Clara quando ela aconchegou a face sobre a cabecinha do bebê. Buscava conforto no pequeno ser.

Foi então que percebeu alguém entrar na enfermaria e parar próximo a seu leito. Ao levantar o olhar viu Obedina.

Ela não aguentou e começou a soluçar. A mulher colocou a bolsa sobre a mesinha ao lado do leito de Clara e foi até ela.

—Benjamin se foi!

—Eu sei minha querida. Eu sinto muito. 

O bebê soltou o seio e começou a chorar.

—Querida, você precisa ser forte por ele — olhando para o bebê.

Clara olhou para o bebê e disse:

—Ela. É uma menina.

****

Exausta Clara pegou no sono. Obedina olhou para a menina e comoveu-se. ‘O que será desta criança?’ O pai de Clara deixara claro que receberia  a filha. Caso ela tivesse um menino ele estaria disposto a recebê-lo, mas uma menina jamais.

Uma enfermeira entrou no quarto e pediu que Obedina a acompanhasse para assinar alguns papéis. O bebê dormia, então ela não se preocupou.

Clara dormia profundamente, mas acordou ao ouvir vozes. Parecia que sua companheira de enfermaria recebia visitas. Ela permaneceu com os olhos fechados e tentou conciliar o sono novamente.

—Essa aí é que é a mulher do homem que foi assassinado?

—Ela mesma. Coitada, teve que lidar com a dor da perda e a do parto. Pensei que não aguentaria.

Clara abriu os olhos. Assassinado? Benjamin não morrera em um acidente?

Ela olhou em direção as duas mulheres que se calaram.

—O que vocês estão falando sobre assassinato? Meu marido morreu em um acidente.

As mulheres se entreolharam e uma delas comentou.

—Desculpe-nos. Pensei que você era a mulher do homem que foi encontrado na ponte com um tiro no peito.

Os olhos de Clara se arregalaram. Ela removeu o lençol e levantou-se da cama. A visitante tentou impedi-la, mas não conseguiu.

Ela foi até a porta da enfermaria e olhou em direção a Obedina que voltava acompanhada da freira.

—Aquele assassino matou meu marido! — gritou histérica.

Obedina correu até ela.

—Calma, Clara!

—Assassino! Meu pai é um assassino! 

Como se não houvessem mais gestos para expressar sua angústia, rasgou a camisola e caiu de joelhos. A visitante ficou apavorada com o estado de Clara, sentia-se culpada por ter falado demais. O bebê começou a chorar. A freira e Obedina levantaram-na e a carregaram de volta ao leito.

—Por que aquele homem vil não nos deixou em paz?

—Minha filha, tenha calma. Você está assustando o bebê.

Então Obedina olhou apavorada para o lençol que se ensopava de sangue.

—Pare, Clara. Por favor! — implorou Obedina.

—Ele matou Benjamin! Por que?

A freira correu para chamar o médico. Ao chegar e olhar para os lençóis seu olhar tornou-se sombrio.

Obedina tentava acalmá-la enquanto o médico e as enfermeiras realizavam procedimentos para estancar a hemorragia. A respiração de Clara foi se tornando cada vez mais fraca. Obedina segurava suas mãos frias e tentava transmitir-lhe um pouco de calor vital. Clara aquietou-se e olhou para a filha, depois para Obedina.

—Não o deixe chegar perto dela.

—Por favor, pare.

—Não o deixe chegar perto dela.

Ela fechou os olhos.


****


Obedina chegou a mansão e foi ver Edwina.

A mulher olhou-a de forma dura.

—Onde está ela?

—Sinto muito, senhora. Sua neta faleceu.

A mulher levantou o queixo.

—E o bebê?

—O bebê também não sobreviveu.


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