domingo, 3 de abril de 2016

AS AVENTURAS DE LADY BEATRIX - parte 1

Decidiu passar a noite fora do vilarejo e partir no dia seguinte.
Durante o percurso escutou um barulho estranho dentro da própria carroça. Parou-a, pensando, que talvez, algum animal houvesse invadido seu carroção, talvez até um rato. Lady Beatrix detestava aqueles animais. Algo que seu falecido pai a ensinara foi a manter a limpeza meticulosa e desta forma evitar aquelas criaturas sujas e provocadoras de doenças.
Pegou uma vassoura e foi atrás do invasor.  Qual não foi sua surpresa ao perceber que não havia rato nenhum, mas sim um moço. Ao ser descoberto, não se fez de rogado, deu um sorriso maroto e ergueu-se diante de Lady Beatrix.
A moça assustada deu um salto para trás e caiu por cima das tranqueiras do pai.
O rapaz apressou-se em socorrê-la e colocá-la de pé.
“Está bem, senhorita?”
 Ela o encarou sem nenhuma simpatia. Ao perceber isto, ele colocou as mãos na cintura e estufou o peito.
—Quem é você?
—Oh! Billie, ao seu dispor, madame.
Ela não gostou do tom de gracejo.
—O que está fazendo em minha propriedade? — perguntou exasperada.
— Ah... bem resolvi pegar uma carona — disse com ar distraído.
Havia um brilho sagaz nos olhos verdes e um lampejo passou pela mente de Lady Beatrix. Ele era o larapio da vila e estava fugindo as suas custas! Ela colocou-se de pé diante dele, que talvez fosse apenas uma ou duas polegadas mais alto que ela e cruzou os braços diante do corpo.
—Você é o ladrão da vila — acusou.
Uma sombra cobriu os olhos dele, e por um motivo desconhecido Lady Beatrix arrependeu-se de suas duras palavras.
Ele virou-se sem nada dizer e procurou a saída do carroção.
— Espere! — ela disse.
Mas ele não virou-se ou obedeceu. Afastou o tecido de cor que fechava a entrada do carroção e pulou ao chão.  Beatrix seguiu-o, sentindo-se cada vez mais culpada.
—Desculpe-me, não quis dizer isso, Billie! — quase estranhou a intimidade ao usar o nome de batismo de alguém que havia acabado de conhecer.
Ele virou-se para ela e o rosto sardento estava rubro.
—Quis dizer isso, sim! Não sou ladrão!
—Desculpe-me...
Então, ouviu um ronco estranho e quando entendeu de onde se originava ficou constrangida. Billie mais ainda. Ele baixou a vista e virou-se para ir embora.
—Para onde pensa em ir? Vou até a próxima vila, posso levá-lo ate lá... se ainda quiser.
—Vamos, suba no carroção. Vou montar acampamento até amanhã, acender uma fogueira e fazer um cozido de coelho.
Lady Beatrix ouviu o ronco novamente.
Billie olhou para ela orgulhoso.
—Troco comida por trabalho, madame.
Foi até a frente da carroça e subiu no banco de madeira do condutor. Lady Beatrix sentou-se a seu lado, pegou a rédeas e colocou os dois pangarés para andar.
O carroção seguiu pelo caminho da floresta que circundava a vila até parar em uma clareira. As primeiras estrelas já estavam no céu e Bee, tratou de acender logo o lampião. Viu Billie adiantar-se para fazer uma fogueira e logo depois se embrenhou no emaranhado sombrio de árvores altas. A moça achou a atitude tenebrosa, já que ele podia perder-se na escuridão e não mais encontrar o caminho. Mas, em poucos instantes Billie estava de volta com água. Saciou os animais e usou um pouco matar a própria sede. Pelo visto, ele conhecia bem aquele caminho, ela pensou.
Bee tratou de colocar o jantar sobre a fogueira e ficou a esperar o fogo fazer seu trabalho. Olhava para o rapaz de soslaio. Perguntou-se se era mais novo, ou mais velho que ela. O que fazia da vida, onde estava sua família e se era ele, o ladrão dos dois pães da padaria.
Quando o cheiro do ensopado começou a dar-lhe água na boca, pegou um prato de bronze  amassado encheu-o com o caldo e entregou-o para ele. Ele não fez uso do talher que ela havia dado a ele. Pegou a carne com a mão e engoliu-a de um bocado só. Ela teve medo que se engasgasse e lhe causasse transtornos. Então ele percebeu que ao invés de comer ela o observava. Não se fez de rogado, deu as costas para ela e continuou a comer com sofreguidão. Ao terminar, virou-se para ela com o prato vazio, e começou a observá-la enquanto comia. Ela pode perceber seus olhos torturados. Ela abandonou seu prato, pegou uma concha cheia de dentro da panela e olhou para ele.
—Você pode repetir!
E assim foi até que a panela ficou vazia.
—Eu trabalhava para Monsieur Pierre — ele declarou de repente. — Eu e minha irmã, fomos trocados por dois pares de sapato.
Bee olhou para ele aturdida, mas acreditou que não havia entendido bem suas palavras, ou talvez fosse algum costume exótico daquele povoado.
—Desculpe, não entendi. O que quer dizer com ‘trocados por pares de sapatos’?
—Nosso antigo dono nos trocou por sapatos.
—Sapatos?
Ele olhou-a sério.
—Eram dos bons. Couro bom, sabe. Não sapatos ordinários.
Ela não soube o que dizer.
—Mas ele não era bom pagador. Tinha que nos pagar por nosso trabalho. O justo! Sempre trabalhamos por nosso alimento e pouso. Toda manhã acendíamos a fornalha e preparávamos a massa, e depois de assada, recebíamos nossa porção. Mas com o passar do tempo ele foi ficando mesquinho. Quando a massa ia para a fornalha ele nos mandava cuidar dos animais. Tive que entrar em questão com ele. Ele passou a nos dar apenas metade do sustento que nos devia. Frances foi ficando fraca, até que adoeceu. E mês passado se foi.  Ontem apenas tomei o que era meu. Estava partindo. Não devo mais nada para ele. Ele enfureceu-se comigo, disse que não iria perder mais um empregado e me acusou diante da cidade. Não está certo sabe? — ele moveu a cabeça de um lado para o outro. — Isso não é certo, e eles sabem.
— Eu sinto muito, Billie.
Ele a olhou encabulado por suas palavras cheias de sentimento. Fez um aceno curto com a cabeça.
—Amanhã partiremos, e quem sabe na próxima cidade não tenha mais sorte?  
—Sorte...não posso dizer que tenho sorte, madame. Mas tenho dois braços e muita disposição.

Bee entregou-lhe um cobertor de retalhos coloridos e ele foi até o banco de madeira do carroção e pegou no sono quase que imediatamente. Ela entrou no carroção e deitou-se na cama estreita que se apertava no pequeno espaço entulhado de coisas. Dormiu até a metade da segunda vigília, quando ouviu gritos e um clarão alaranjado que se infiltrava pelas brechas do tecido grosso do carroção. Com o coração aos pulos, olhou por uma fresta e viu pessoas rodeando sua casa com tochas na mão. Com um puxão violento a entrada do carroção foi aberta, e ela viu o prefeito, Conde Pauli.






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