domingo, 10 de maio de 2015

A CASA - CAPÍTULO 1

Ver o prólogo em postagem anterior.



Uma brisa forte soprava sobre seus cabelos claros e ela afastou uma mecha que caia sobre a testa.
Pegou o papel que estava dentro da bolsa e leu mais uma vez seu conteúdo. Um sentimento de esperança brotou em seu coração. 'Então, era assim que se sentiam as pessoas que tinham um futuro,' pensou. Nunca sentira vontade de pular e dançar antes na vida, olhou para os lados e não viu ninguém, então levantou os braços como se estivesse diante de um parceiro invisível e deu seu primeiro passo. Dançou na calçada da rua vazia, por trás do orfanato, de tão entusiasmada que estava pela sua vitória.
Riu, chorou e rodopiou ao som da música que só ela podia ouvir e que enlevava seu espírito. Os cachos dourados de seus cabelos balançavam de um lado para o outro, também alegres por realizarem aquele movimento inédito.
Repentinamente, ela parou. Sentiu-se observada. Deu fim aquela manifestação quase insana. Se recompôs e olhou para os lados, a fim de descobrir a quem pertenciam os olhos que invadiam seu momento tão íntimo de desvairada alegria. Não viu ninguém.
Apertou o papel na mão como se fosse ouro e pôs-se a andar. Agora sabia para onde ir.


****

Se dependesse dela, teria ido naquele mesmo dia ao endereço que tinha em mãos. Mas algumas nuvens escuras surgiram no horizonte prenunciando tempestade e ela resolveu ir para casa. Nos dias que se seguiam, também não poderia ir, estaria muito ocupada. Trabalhava em uma loja de departamentos e assim que largava o expediente ia para a universidade onde cursava Direito. Mal tinha tempo para respirar. Mas no sábado à tarde, com certeza encontraria aquele endereço e aquelas pessoas.
Assim que chegou em seu apartamento, removeu os sapatos e foi tomar uma ducha para refrescar-se e colocar suas emoções em ordem.
Estava acostumada a comer a vida pelas beiradas, mas aquele tipo de ansiedade era nova para ela. Queria correr até lá, nem que fosse no meio da noite, bater na porta 'daquelas' pessoas e dizer... dizer... Deu-se conta que não sabia o que dizer. 'Oi, sou a filha que vocês abandonaram no orfanato' soava um tanto confrontador e não queria que parecesse nada disso. 'Então... de acordo com as informações desse endereço, meus pais vivem aqui'. Tsi, tsi, tsi... pavoroso.
Então, algo lhe ocorreu... Se seus pais tinham um lar, por que a haviam abandonado em um orfanato? Estava tão acostumada com a falta de nomes e faces, que nem percebera que a única coisa que conseguira de bem fundamentado, fora um endereço e não nomes.
Sua alegria foi dando espaço a suas velhas companheiras - apreensão e melancolia. 'Talvez, a decisão de abandoná-la não tenha sido tão difícil assim. Talvez, eles não passassem de pessoas egoístas, que se livraram de um fardo que se interpunha em suas vidas idílicas e despreocupadas. Será que viveriam ainda nessa casa?'
Seu humor mudou quase que completamente. Ela fechou a torneira que permitia à água descer por seus cabelos. 'Era uma estúpida, como não pensara nisso antes?'
Saiu do banho, vestiu-se, estourou pipocas no micro-ondas e foi checar se passava algum filme na TV àquela hora. Tentou não pensar mais nos pais que ela tanto fantasiava. Não iria procurá-los mais. Iria empurrar aqueles fantasmas para um canto da memória, de onde não saíssem mais. Porém, aquele era um exercício novo para ela, e não tão fácil assim, já que por toda sua vida gravitara em torno daquela ideia.
'Melhor', disse a si mesma, 'vou confrontá-los por sua atitude desumana. É isso, vou fazê-los ver, o que fizeram a mim. E depois vão saber que apesar de tudo sobrevivi.'


****


A semana se arrastou, e como ela imaginou, foi difícil conter a ansiedade. Realizou as tarefas no trabalho de forma descuidada e ignorou seu dever de ser gentil e sorridente para com os clientes. Esqueceu o, 'em que posso ajudá-lo?', não abordou ninguém com um 'você pode comprar a prestação, em 3 vezes' ou 'usa cheques? pode dividir... e se endividar sem saber se poderá pagar'.
Sua supervisora a observava e em certo ponto aproximou-se dela, com um sorriso artificial.
__Você não está acreditando que porque é uma pequena órfã terá regalias e tratamento especial aqui, não é mesmo? Tem uma fila lá fora querendo o seu lugar - espetou cruelmente.
Ana nunca chegou a saber quem havia vazado sua história na empresa. Acreditava que talvez tivesse sido alguém do RH, já que as solicitações de pedidos de emprego para os adolescentes que deixavam o orfanato iam diretamente para eles. No segundo mês em que começara a trabalhar ali, já havia se tornado uma referência: a órfã. Uma colega tentando ser legal a abordou:
__Olha, se precisar de alguma coisa, pode contar comigo, tá?
No início ela não entendeu a gentileza, só depois é que veio a explicação: sua história já havia se espalhado, pelo menos, parte dela.
Particularmente, para ela não havia sido um problema, até aquele momento, pois não se lembrava de ter alguma vez usado a sua situação super vantajosa para realizar tráfico de influência em sua vida, muito menos ali. Engoliu o sentimento de humilhação, afinal precisava do emprego e disse:
__ Eu vou prestar mais atenção.
__ É bom mesmo.
Pegou uma sacola de plástico, colocou um sorriso nos lábios e saiu à caça de clientes distraídos e com cara de presas do consumo.
Viu um homem diante de um cabide de roupas masculinas e cortesmente perguntou se precisava de ajuda. Ele parou o que fazia, meio irritado por ter sido interrompido e voltou sua atenção à ela com o intuito de dispensá-la com um gesto de cabeça ou um resmungo, mas se deteve no instante em que a viu.
__Precisa de ajuda... ou sacola? - perguntou novamente com seu sorriso congelado.
__Preciso, sim...
Ela estendeu a sacola para ele.
__Não... de ajuda.
Ela o observou melhor e percebeu que era mais jovem do que havia imaginado. Atraente. Parecia meio triste - ela reconheceria aquele sentimento onde quer que o visse - mas ainda assim, sorriu para ela.
__Que cor, acha que devo levar?
Ela começou a avaliar as opções que tinha diante de si e depois voltava o olhar analítico para ele a fim de avaliar melhor suas cores e traços, e assim poder dar a sugestão mais adequada. Então, ela percebeu que também era alvo de análise e sentiu-se desconfortável.
__Azul marinho - respondeu ao mesmo tempo em que removia a camisa do cabide e entregava a ele.
Ele sorriu.
__Você é a primeira mulher que escolhe roupa para mim... além de minha mãe, é claro.
As bochechas dela incendiaram, e como se estivesse se defendendo de uma acusação grave, respondeu quase em um sussurro:
__Mas foi você quem pediu...
Foi a vez dele sentir-se desconfortável com o mal entendido.
__Não... quero dizer, claro que foi. Poxa, que confusão eu fiz. Me desculpe, é que por um momento achei que... te conhecia de algum lugar.
__ Acho que não...
__Foi impressão minha... me desculpe. Vou provar a camisa. Obrigado.
Ele deu as costas para ela e foi em direção ao provador. Assim que o viu afastar-se, ela se arrependeu por não ter estendido a conversa. Que tola! Quase não conversava com ninguém e quando tinha a oportunidade, de trocar ao menos algumas palavras com alguém, agia como se não tivesse nem um pingo de traquejo social.
Pensou em ir na direção do provador masculino, esbarrar nele sem querer, perguntar se havia gostado da camisa, mas então, encontrou os olhos críticos de sua supervisora. Seu pequeno interlúdio fora tão leve e lúdico que até esquecera dos sentimentos negativos que haviam sido provocados instantes antes por ela. Uma outra cliente lhe foi apontada com seu olhar azedo, e Ana se dirigiu até lá, obedientemente.
Não viu mais o cliente da camisa azul marinho. E acabou voltando a atenção para o pensamento que a corroía: seus pais.

****


O sábado amanheceu com um colorido especial. O céu azul não tinha nenhuma nuvem. O tempo estava agradável e ela poderia usar um vestido. Amarelo - sua cor favorita. Era alegre, bem diferente dela. Tinha uns detalhes em verde e lilás. A combinação de cores dava a ele um ar primaveril.
Coloriu bem de leve suas bochechas e passou um batom rosa claro.
Seria um dia crucial em sua vida, para o bem ou para o mal. Não era exatamente o que esperava depois de tantos anos. A sua fantasia de criança havia sofrido um baque e tanto. Desmoronara diante dela em apenas uma semana. Se antes, idealizara pais sorridentes, radiantes por vê-la e talvez até, carregando um pouquinho de sentimento de culpa, por a terem deixado, agora a imagem era quase monstruosa: não passavam de pessoas más e indiferentes, incapazes de sentir empatia com o próprio sangue, e pior, a tinham abandonado em um orfanato na mesma cidade em que viviam e que talvez fosse a apenas alguns minutos de sua casa.
'Quantas vezes haviam passado diante do orfanato com indiferença? Será que já a haviam visto? Como podiam ser tão frios?'
As perguntas a torturavam e a falta de respostas mais ainda. Queria gritá-las ao rosto deles, e chacoalha-los até que respondessem. Mas naquele dia, teria suas repostas.
Olhou mais uma vez o endereço que havia anotado. Já havia se informado com algumas pessoas da provável localização e não erraria.
Pegou um ônibus que ia para um bairro a leste da cidade, que nem era tão longe dali, mas não queria ir à pé e acabar suando. Desceu do ônibus, e foi informada que teria que andar um quarteirão e virar à direita, então encontraria a rua que procurava. Seu coração batia aceleradamente. Podia sentir seu pulso enlouquecido em sua garganta. Entrou à direita, onde foi previamente orientada e se deparou com uma rua bem arborizada e tranquila. Seus olhos puderam alcançar o fim da rua. Era sem saída. Lembrava-se bem do número, mas tirou o papel da bolsinha para se certificar. O papel tremia em suas mãos. Ela parou e virou-se para ir embora. 'O que estava fazendo afinal? Aquelas pessoas a haviam rejeitado.' Voltou-se novamente em direção a casa e tomou um susto ao fazê-lo. Havia um gato de pelos malhados parado bem em sua frente em posição de contemplação felina. Ele a encarava sem medo e sem rodeios.
Ela deu um suspiro. Parecia que até o vento iria assustá-la naquele dia. Desviou do bichano e seguiu em frente, já não tão certa do que fazia.
Se aproximou do número 22. Ofegava. Mas continuou em frente. Não tinha palavras ensaiadas. Decidiu deixar que o momento ditasse a fala e os sentimentos.
Então, parou diante do portão de ferro, baixo e artisticamente trabalhado. Bonito... sim era um portão bonito. Simbolizava a entrada para um lar de sonhos. Havia alguns ramos de plantas entrelaçadas em suas hastes cor de bronze e enferrujadas. Observando melhor, era um portão velho, com duas bandas que se fechavam no centro. Não devia ter manutenção a anos pois suas bandas desencontravam. Só se mantinham juntas e fechadas pois havia uma fita branca que dava voltas e voltas amarrando as duas hastes das bandas opostas juntas.
Olhou novamente o número, quase esmaecido no murinho. 22. 'Era esse o endereço, era essa a casa.' Voltou sua atenção para a construção que se erguia dentro dos limites da propriedade. Uma casa com arquitetura mais rebuscada, não era moderna, mas ela não soube precisar o estilo. Talvez art deco. Não era uma casa grande, mas parecia ser o suficientemente espaçosa para acolher uma pequena família. Havia uma janela na lateral da casa com um belo vitral estilizado com flores que davam-lhe um charme todo especial. Uma cor clara havia coberto sua fachada descascada, mas agora estava quase branca. O mato alto dava a impressão de descuido, mas ainda assim, o conjunto era bonito. Transmitia alegria.
Porém, soube, com certeza, e isso ela diria sem errar: ninguém morava ali.
Então ela ouviu.
Um miado... O gato que ela havia visto no início da rua estava ali, mirando nela seu olhar misterioso. Passou o corpo macio e flexível em sua perna e depois se espremeu entre as hastes do portão. Se colocou novamente em sua posição de contemplação felina de frente para ela, além dos limites que ela podia alcançar e a encarou como se ele fosse o dono e senhor daquela casa.
'É... quem não tem cão, caça com gatos.'
Sentiu uma grande vontade de entrar e poder olhar de perto cada detalhe. Se aquela casa continha parte de sua história, ela queria...não! Precisava conhecê-la.
'Será que seus pais estavam mortos? Haviam se mudado?'
Ouviu um ruído de portão se abrindo, que vinha do outro lado da rua. Virou-se e viu uma mulher, talvez na meia idade. Vestia um conjunto vinho, bem alinhado e segurava uma bolsinha preta. Ela a encarou por um instante e depois começou a caminhar rapidamente pela calçada. Ana decidiu questioná-la. Deveria saber algo, se morava ali.
Andou rapidamente em seu encalço e a chamou:
__Senhora, por favor...
Ela não parou.
__Senhora...
Alcançou-a e tocou seu braço.
A mulher a olhou sem simpatia em seus olhos claros. Parou por obrigação.
__Só uma informação...Os moradores daquela casa. A senhora os conhece?
__Fique longe daquele lugar... é amaldiçoado.
Então virou-se e foi embora sem mais explicações.
Ana sentiu-se fria, de repente.

Uma palavra tão forte e negativa ser usada para um lugar que havia lhe inspirado sentimentos tão bons...ou estaria errada? Será que aquela casa tão acolhedora e graciosa tinha uma história funesta em suas paredes? Voltou-se para a casa e ia caminhar até ela, mas um sentimento lúgubre a envolveu. Lugar amaldiçoado... Deu as costas e foi embora.

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sábado, 9 de maio de 2015

AUSÊNCIA

Eu havia deixado a porta aberta.

Mas, isso, havia sido a tantos anos atrás. Talvez, ela estivesse esperando por alguém. Um outro alguém, não eu.

Não alertei sobre minha chegada. Entrei ressabiado, sem saber, o que encontraria, ou quem. Quais sentimentos estavam à minha espera. Estava preparado para recebê-los. Passo a passo fui trilhando palmos de meu passado. O azul da parede da sala, já esmaecido, precisando de uma nova pintura. As mesmas fotos penduradas, numa linha horizontal reta. Como sempre. Apenas a poeira sobre os móveis, era incomum.

Senti o aroma de rosas de seu perfume espalhado no ar. Sútil, mas evidente. Ela estava próxima, embora não a visse. Caminhei até seu quarto, que havia sido nosso. O mesmo lençol sobre a cama. O vestido que teria sido usado naquela noite, para a festa na praça, para a qual não fomos, estava em um cabide, e dançava só, ao sabor do vento, diante da janela.

Lembrou-se das últimas palavras que saíram de sua boca, duras e sem sentimentos. De seus passos resolutos em direção a saída.

Ouviu um, ‘não vá’, que agora, lhe doía na alma.

Tudo era como naquele dia, só ela não estava lá. Apenas encontrou a solidão, que havia deixado para trás.


A CASA


Madre Justiça olhou-a através das lentes grossas que deixavam seus pequeninos olhos castanhos maiores do que realmente eram. Depois de anos, a expressão no rosto da freira era a mesma com a qual ela crescera: um compadecimento que não encontrava saídas em suas ações. Não era, que a mulher idosa e de cabelos prateados a sua frente não fosse bondosa, mas estava atada pelo sistema que regia a Instituição e o respeitava rigorosamente. Era mulher sábia, conhecedora das leis divinas e humanas, mas nem sempre lhe era permitido honrar seu próprio nome, quando os fatos vinham à tona e as cartas da verdade eram colocadas sobre a mesa. 'As forças, ah, as forças!', dizia ela abatida por aquelas forças invisíveis das quais sempre se queixara, e que deixavam Ana enfurecida, frustrada e muda, desde que adquirira consciência que era um ser criado.

A luz, a verdade e a justiça, sempre estavam em desvantagem, sempre perdiam e Ana chegara a pensar, ainda criança, em mudar de lado para ganhar ao menos uma vez. No final ela se resignava, assim como a Madre, com o que não podia ser mudado e aquietava-se em seu mundo sem respostas. 'No mundo vindouro o bem é vencedor, querida', a mulher dizia compassiva, só para piorar mais ainda a situação, e deixá-la mais revoltada. Ela não queria esperar pelo mundo vindouro para ter uma vida como a das crianças normais, como eram designadas as crianças que tinham família pelas do orfanato.

Ana viu as outras crianças irem embora, serem adotadas, escolhidas, e ela cresceu e ficou para trás.

Um dia antes de fazer dezoito anos e ter que deixar o orfanato, pediu, mais uma vez em tantas, para ter uma conversa séria com a Madre. Desde os seis anos, quando em sua observação e perspicácia descobrira, que a expressão 'conversa séria', tinha peso e deixava as pessoas empertigadas e atentas, decidiu usá-la em seu favor para obter respostas, que para ela eram de extrema importância. Bateu levemente na porta austera de madeira escura e compacta da Madre. Quando ela abriu a porta e olhou para baixo com uma expressão inquisidora, em direção a criança miúda que atrevidamente batia a sua porta, ouviu a declaração tímida:

__Madre, preciso ter uma conversa séria com a senhora __ e a pergunta que veio a seguir enterneceu a face dura da mulher. __ Eu tenho mãe?

Depois daquele dia, foram muitas as vezes e as tentativas de tirar uma palavra, uma pista apenas, que a levasse à pessoa responsável por deixá-la ali. E muitas mais foram as conversas para que ela descobrisse e entendesse que não era uma pessoa, a responsável por estar ali, mas... 'circunstâncias'. Bem parecidas com as 'forças', que impediam Madre Justiça de dizer a ela o que ela queria ouvir, ou de intervir para que fosse adotada ou ainda que as permitissem sair mais do orfanato para momentos de lazer pela cidade. Algumas vezes as crianças eram levadas para passear, quer para irem a algum circo novo que havia chegado, para uma apresentação de teatro ou à piqueniques em uma área de recreação da cidade onde havia um lago cheio de patos, que elas se divertiam ao alimentá-los com sobras de pão. Nesses momentos, Ana fantasiava que seus pais a veriam passeando na rua, a reconheceriam e a achariam a criança mais linda do mundo. Então, se arrependeriam por tê-la deixado, e voltariam para buscá-la.

Quando isso não acontecia ela voltava entristecida para o orfanato e depois insistia com as freiras para que saíssem mais, assim, pensava ela, aumentaria suas chances e oportunidades para o encontro de seus sonhos. Mas não podia ser como ela queria. 'Não podemos sair todos os dias, Ana. Vivemos em um mundo com regras'. Ela não entendia nem se convencia. Corria até o grande portão, olhava por suas brechas e chorava até não poder mais.

Maria, uma das freiras, a vigiava de longe e permitia que ela ficasse ali, até perceber que havia se acalmado. Aproximava-se devagar e tocava suas bochechas úmidas pelas lágrimas com uma margarida, então a tomava pela mão e a levava de volta para perto das outras crianças.

As mesmas respostas ela obteve ao deixar o orfanato. Reticências, desculpas, omissões que para ela tinham o mesmo peso de uma mentira. Ao atravessar o portão do lugar que havia sido seu refúgio na infância, disse a si mesma que jamais retornaria. Construiria uma vida e não olharia para trás.

Porém, sua introdução no mundo não foi agradável. Não foi recebida de braços abertos e foram muitas as dificuldades e obstáculos, fazendo-a sentir-se só. O velho sonho de conhecer suas origens cresceu e ela decidiu voltar ao orfanato. Só que agora era diferente. Dois anos depois, ela era uma pessoa obstinada, decidida a obter o que queria.

Ao ver Ana, a velha freira percebeu sua mudança. E sabia que ela não estava ali apenas para visitá-la. A criança que fora abandonada estava de mãos dadas com a mulher que queria respostas. De repente, a freira sentiu-se cansada. Todas aquelas vidas eram deixadas ali a seu encargo e ela tentava fazer o melhor, mas sabia que não havia o que fizesse, nada substituiria o que elas acreditavam que haviam perdido. Cresciam sentindo-se uma peça de jogo perdida no grande tabuleiro da vida.

__Madre, sua benção__ Ana cumprimentou, beijando-a afetuosamente na bochecha.

__Deus a abençoe minha querida. Como está?

__Bem __disse sem muita convicção.

Conversaram sobre trivialidades, de como ela estava se saindo em sua vida 'lá fora'. Ana percebeu que a saúde da mulher que a criara não ia bem. Estava mais magra, pálida.

__Pensa em casar e ter filhos? __ perguntou a freira com um sorriso fraco.

__Quero muito...mas não há nada que eu queira mais do que saber quem são meus pais.

A mulher idosa suspirou. 'Era sempre assim para aquelas crianças. A geração passada, era mais importante que a futura. Sem esse elo, poucos conseguiam ir adiante.'

__Não...por favor, Madre. Não me venha com aquela velha história... não sou mais criança. Eu tenho direito de saber, da mesma forma que eles tiveram o direito de decidirem sobre minha vida.

__Ana, esse não é o caso. Ninguém abandona um filho ou filha na minha porta, simplesmente porque acreditam que tem o 'direito'. Essa decisão nasce de uma necessidade e causa dor.

A moça virou o rosto para que a mulher não visse os fortes sentimentos que estampavam sua face. Então, levantou-se da cadeira dando as costas para a mulher. Depois, já mais calma, foi até a janela grande e larga e contemplou a paisagem do pátio do orfanato com seu jardim organizado e tranquilo e os banquinhos de pedra.

__E eu? E a minha dor? Não vou culpá-los. Sei das dificuldades que se enfrenta no mundo e que às vezes, não se enxerga uma saída.

Olhou diretamente nos olhos da mulher.

__Eu só quero saber quem são. De onde vim. Nada mais __disse suavemente.

__Você sempre foi determinada, não é mesmo? Era a mais esperta que tínhamos aqui.

__ Mas nunca fui adotada à despeito de minha esperteza __a criança dentro dela rebateu ressentida.

A freira moveu a cabeça de um lado para o outro, penalizada por seus sentimentos confusos.

__ Você nunca quis!

Ana olhou para a mulher chocada com suas palavras.

__ As pessoas chegavam aqui e amavam você... era uma criança tão doce. Muitos casais vieram aqui e quiseram levá-la para casa. Meu Deus, perdi a conta deles... mas era só você perceber, e ficava agressiva. Assustava as pessoas com sua mudança repentina. Se escondia pelos cantos do orfanato. Ninguém conseguia achá-la... no fundo você acreditava que seus pais voltariam para buscá-la.

__Isso não pode ser verdade...

Madre Justiça levantou-se da cadeira de espaldar alto e dirigiu-se até a porta. 'As forças, ah... as forças', Ana ouviu a mulher resmungar.

__Vou buscar um pouco de água para mim __olhou ao redor da sala de forma inquieta, deixando Ana confusa com sua atitude abrupta. Ela nunca a havia abandonado em meio a uma conversa, nunca a deixara no 'vácuo' antes, sem falar que havia água na jarra de cerâmica branca em sua mesa. Antes de sair pela porta a mulher olhou-a com a cabeça levemente inclinada. __Eu não posso dizer que sua ficha está na última gaveta, na pasta de número 32. Por favor, não mexa!



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Continuação em breve...