quarta-feira, 7 de junho de 2017

BERINJELA

—O NOME DELA É BERINJELA GONÇALVES.

O dia de meu batismo brindou-me com um de meus maiores desgostos, que só perdeu para a descoberta de que eu era feia. Foi Dona Letízia, comadre de minha mãe, que me fez saber que meu nariz criava uma ‘certa desarmonia’ ao desenho de meu rosto. Eu era apenas uma menina de sete anos, mas compreendi ‘por associação reversa’ ao ouvir a conversa das duas. 

—Cacau é tão linda — declarou Dona Letízia, com admiração manifesta em seu semblante de assombro diante do maravilhoso a respeito de minha prima. —Parece que teve o rosto desenhado a mão pelo próprio Criador.

Apurei os ouvidos para tentar escutar algo semelhante sobre mim e qual não foi minha decepção quando ela atirou friamente aquela verdade sobre a ‘desarmonia’ de meu nariz. Não haviam palavras bonitas que suavizassem o contexto daquele momento. Minha mãe olhou-me com sua serenidade habitual e sem tentar corrigir o estrago da outra, — talvez por imaginar desnecessário — replicou:

—Ela deve ter puxado a algum antepassado. Não me lembro de ninguém em minha família ou na de Afonso com este nariz.

Foi o suficiente para que eu saísse correndo da sala e me trancasse no quarto para que não enxergassem minhas lágrimas. Pouco tempo depois minha mãe bateu na porta do quarto e pediu-me que a abrisse. Quando obedeci, ouvi dela palavras que deveriam ser de consolo, mas tinham mais um ar de repreensão. ‘Não deve se envergonhar de sua aparência. Deus sabe o que faz. Todos viemos ao mundo para contar uma história.  Levante a cabeça e orgulhe-se de si mesma. ’

Soube naquele momento que Deus queria contar uma história de princesa sobre Cacau, mas eu não gostava da história que Ele tentava contar usando minha aparência. Meu nariz e meu nome. Não adiantaram as tentativas para me levantar o moral, pois todas as vezes que olhava no espelho me lembrava que Deus tinha desenhado, pacientemente, a face de anjo de Cacau e perdido a mão drasticamente comigo. Nem se dera ao trabalho de me refazer. Corrigir o erro antes de enviar-me ao mundo. Aquilo era no mínimo injusto.

Minha mãe repetia, ‘este seu nariz é atávico’. O que quer que aquilo significasse. Anos depois descobri que era algo tipo, ‘desenterrar uma particularidade, de preferência medonha, da árvore genealógica da família com o propósito de te envergonhar ou acertar as contas. ’

Foi também Dona Letízia, figura contraditória em minha infância e adolescência, que me fez conhecedora das várias lendas sobre a escolha de meu nome, que variavam de acordo com a meteorologia e seu humor. ‘Você nasceu com duas voltas de cordão no pescoço, tava tão roxinha. Parecia uma pequena berinjela. ’  De outra sorte, quando ela e minha mãe voltavam de um sábado de feira disse: —sua mãe teve muito desejo por berinjela durante a gestação, mas não era tempo. Sua revolta foi tanta que te batizou de Berinjela.

Daquela vez, por suas palavras perniciosas, quase que a amizade de décadas das duas ia para Marte. Mamãe que era sempre um rio calmo, tornou-se em mar possesso de fúria. Mas de alguma forma o comentário maldoso teve um resultado positivo, pois ela decidiu esclarecer-me que não havia sido nenhum imbróglio pós-gestacional que havia inspirado meu nome, mas uma de suas antepassadas, daquelas que de tão longínquas, não se tem nem como contar na árvore da família, mas que permaneceu notória através dos tempos.

—Seu nome nada tem de vulgar. É bem especial... — acrescentou em tom enigmático, coisa que detestei.

Minha mãe amava dar um tom misterioso as histórias, mas eu não acreditava que ela tinha o direito de guardar segredos de mim, afinal quem carregava aquela pecha era eu. Queria saber quem fora a outra Berinjela. Queria conectar-me a ela através de sua agonia e vergonha para ter alguém com quem compartilhar aquela jornada solitária.  Mas eu era criança e era mamãe quem decidia o que eu devia ou não saber. Por hora, deveria saber que não era a única Berinjela fora do mundo vegetal a passar pelo mundo, e que acreditasse ou não, em outros tempos aquele havia sido um nome bem popular. Hã??! Ela queria que eu me contentasse com aquela migalha? Mas foi assim. Sem outras explicações.

Cheguei à conclusão que o universo conspirava contra mim e meus pais eram os executores daquela trama aviltante.

Mas a despeito das caçoadas na escola, eu fui me deixando ‘ser Berinjela’. Talvez, conformação seja a palavra mais apropriada. Serenei por um tempo, até ‘aquele dia’ em que voltava da escola. Ah, aquele dia...

O caminhão da mudança estava do outro lado da minha calçada. Uma nova família chegava a vizinhança. De longe, eu o vi. Ele era a epítome da beleza. Uma perfeição da natureza. Seus cabelos negros encaracolados caiam de forma sedosa sobre a pele alva dando-lhe a aparência de um querubim, e os olhos tinham a cor e o conforto de um chocolate quente salpicado com canela em um dia frio.

Sentindo-se observado, Otávio (inevitavelmente, soube seu nome depois) encontrou meus olhos e sorriu. Com a espontaneidade de um cão que vem até o seu dono, caminhou em minha direção. O sorriso atraente me desmanchou. Olhei para os lados, incerta sobre o alvo daquela preciosidade. Fiquei a imaginar se o fato de ser novo na vizinhança e a necessidade de fazer amigos o tinha levado aquele passo sacrificial. Quando se aproximou, esquivei-me para casa, com medo de ouvir comentários sobre meu nariz. E de ser obrigada a apresentar-me.

Assim, mais um capítulo de minha tumultuada existência começava.

Anos se passaram e minha paixonite reprimida por Otávio me impediam, até mesmo, de passar por sua calçada, pois o furacão que causava em minhas emoções me desestabilizava. Passaram-se anos sem que nem ao menos trocasse com ele duas palavras. Sequer um aceno. Eu o admirava de longe e vi uma de minhas colegas o fisgar. Não era de admirar. Era bonita e extrovertida. 

Testemunha de toda aquela aflição juvenil recolhida, meu pai um dia acordou-me do feitiço que paralisava minhas emoções com uma de suas pérolas:

— Você tem que subir a montanha se quiser apreciar a vista, Berinjela.

Não entendia ao certo como as palavras de meu pai destrancavam calabouços dentro de mim, o que sabia era que elas eram mais encantadas que meus desencantos. Um antídoto miraculoso.

Foi em um dia nublado que enfrentei minha timidez e pisei na calçada de Otávio. Ele estava sentado no muro baixo. Os cabelos rebeldes caiam sobre a testa dando-lhe um ar descontraído. A moto atravessada na calçada fez com que me sentisse tentada a passar pelo meio fio, mas busquei vestígios de coragem e me dirigi ao estreito espaço entre a moto e as pernas longas penduradas contra a parede do muro. 

Tive a nítida impressão de sentir o calor que emanava dele envolver-me.

—Olá, Berinjela!

Ele sabia o meu nome? Meu coração falhou uma batida, mas ao invés de correr, paralisei com barítono de sua voz. Ora! Mas quem não sabia o meu nome? Aquele nome insólito, vegetal, telúrico, anormal e bizarro. Todos na rua, na escola, e quiçá na cidade sabiam do gosto excêntrico de meus pais.

Devagar mirei o rosto sorridente e milagrosamente não derreti. Havia me enganado durante todos aqueles anos, seus olhos eram mais semelhantes a uma boa xícara de café. Energética e estimulante num dia frio. Fumegava. Soube que teria coragem de aceitar um convite para dar uma volta com ele naquela moto. Se ele a convidasse...

—Olá, Otávio Sérgio! — numa ousadia inimaginável a minha timidez, fiz questão de deixar claro que conhecia aquele conceito binomial que era seu nome. Não apenas Otávio, mas Otávio Sérgio. — Como está? — de repente tornei-me falante.

Percebi um brilho em seu olhar, talvez fosse espanto por me ouvir falar. Ouvi-o responder que estava bem, mas que não era muito fã daqueles dias nublados. O deixavam ‘meio para baixo’. Ah, o tempo... era a deixa perfeita!

— Estes são meus dias preferidos — repliquei.

Falei de todos os meus motivos para gostar daqueles dias nublados, com chuva ou sem chuva, de frio ou apenas de fantasia. Falei pelos cotovelos sobre como os dias nublados eram os dias dos livros, do chá, do café, da reflexão, da música que embala a alma, dos pássaros que se recolhiam em sua janela. ’

—Da solidão — ele acrescentou meio provocador, meio que tentando sabotar minha teoria sobre os dias nublados.

—Do aconchego — o corrigi, insubordinada, diante de sua tentativa de fazer dos dias nublados cinzas de emoção.

Ele sorriu e ela soube que o havia convencido de que os dias nublados não eram tão ruins assim. ‘Aquele dia’ não era tão ruim assim.

—Então quer dizer que este é o dia propício para um café?

—Isso mesmo! — ela devolveu.

Ele desceu do murinho e ficou diante dela com um olhar misterioso.

—Eu conheço uma cafeteria bem legal aqui perto. Você me acompanha?

Hã???!

—Como? Quero dizer? Agora? — só então percebeu o quanto fora persuasiva em seu ponto de vista.

Ele pegou um capacete e entregou a ela enquanto colocava o outro.

—Agora, Berinjela. Antes que o tempo mude e... bem vamos comprovar esta sua teoria está bem?

Ele subiu e esperou que ela fizesse o mesmo. Como a percebeu estranha à situação, ajudou-a a colocar o capacete e explicou como subir naquele veículo ‘selvagem’.


Quando enlaçou os braços ao redor da cintura de Otávio Sérgio, Berinjela comprovou que os dias nublados eram mesmo mágicos.



quinta-feira, 25 de maio de 2017

LICENÇA POÉTICA


Poema publicado no livro ALÉM DA TERRA ALÉM DO CÉU
ED. Chiado



DÁ LICENÇA POÉTICA

Gardenia Yud

Quando eu nasci
 Um anjo corso 
 Do Atlântico,
 Usando chapéu tricórnio, 
— exalando maresia veio me ver, 
Anunciou a contra gosto: 
Vai viver do mar! 
Impensável sina para mulher. 
Monstros, dragões e piratas Vai ter que enfrentar.
 Se resistir— mangou—, aconteceu! 

 Mas no mar, anjo não sabe,
 não se vive, sonha —,
 só mulher para saber.
 Mareada, dança com a morte,
 Tapeada, acha que é príncipe.
 Aí vem a coragem, 
Ilusão de invencibilidade. 
No mar, louros e estrelas, após vencida a batalha,
 Pois o azul reflete o zimbório do terceiro céu.
 Mar é de ninguém,
 é de quem vencer.
 As lágrimas vem em ondas
 Numa caudalosa mistura 
De procela e ouro. 
Não evaporam, pois tem peso de glória.
 Vertidas no tumulto das guerras de outrora,
 ‘Se, há mortos, vivos e os que ‘andam’ no mar, Platão. 
Mulher no mar, é o quê?’
 Pergunta para o anjo corso, 
 Que eu também quero escrever.



domingo, 23 de abril de 2017

A ESCADA DE JACÓ - WILLIAM BLAKE



Um dos sonhos mais fascinantes relatados pela literatura é sem dúvida o da Escada de Jacó, no qual o patriarca bíblico visualizou anjos descendo e subindo uma escada que deixava a terra e tinha o seu topo no céu. Vários foram os artistas que tentaram interpretar em tela esta epifania. E cada um alcançou em seu próprio espírito o entendimento para reproduzir em cores este mistério. Mas para mim, nenhum deles alcançou em tela este intento como William Blake, o poeta, visionário e pintor inglês, marginalizado e negligenciado em seu tempo por sua originalidade e genialidade considerada um tanto quanto bizarra. Até mesmo a técnica que ele utilizou na época foi inovadora. Por sua espiritualidade e visões de anjos (que ele contava abertamente sem medo de parecer infantil ou esquisito), acredito que ele conseguiu captar melhor o brilho, o etéreo e também a materialidade da visão de Jacó em sua obra.  Muito de seu trabalho assemelha-se, em minha opinião, ao de Khalil Gibran, talvez pelas pinceladas de espiritualidade nas obras de cada um.