—O NOME DELA É BERINJELA GONÇALVES.
O dia de meu batismo brindou-me
com um de meus maiores desgostos, que só perdeu para a descoberta de que eu era
feia. Foi Dona Letízia, comadre de minha mãe, que me fez saber que meu nariz
criava uma ‘certa desarmonia’ ao desenho de meu rosto. Eu era apenas uma menina
de sete anos, mas compreendi ‘por associação reversa’ ao ouvir a conversa das duas.
—Cacau é tão linda — declarou Dona
Letízia, com admiração manifesta em seu semblante de assombro diante do
maravilhoso a respeito de minha prima. —Parece que teve o rosto desenhado a mão
pelo próprio Criador.
Apurei os ouvidos para tentar
escutar algo semelhante sobre mim e qual não foi minha decepção quando ela
atirou friamente aquela verdade sobre a ‘desarmonia’ de meu nariz. Não haviam
palavras bonitas que suavizassem o contexto daquele momento. Minha mãe olhou-me
com sua serenidade habitual e sem tentar corrigir o estrago da outra, — talvez por
imaginar desnecessário — replicou:
—Ela deve ter puxado a algum
antepassado. Não me lembro de ninguém em minha família ou na de Afonso com este
nariz.
Foi o suficiente para que eu
saísse correndo da sala e me trancasse no quarto para que não enxergassem
minhas lágrimas. Pouco tempo depois minha mãe bateu na porta do quarto e pediu-me
que a abrisse. Quando obedeci, ouvi dela palavras que deveriam ser de consolo,
mas tinham mais um ar de repreensão. ‘Não deve se envergonhar de sua aparência.
Deus sabe o que faz. Todos viemos ao mundo para contar uma história. Levante a cabeça e orgulhe-se de si mesma. ’
Soube naquele momento que Deus
queria contar uma história de princesa sobre Cacau, mas eu não gostava da
história que Ele tentava contar usando minha aparência. Meu nariz e meu nome. Não
adiantaram as tentativas para me levantar o moral, pois todas as vezes que
olhava no espelho me lembrava que Deus tinha desenhado, pacientemente, a face
de anjo de Cacau e perdido a mão drasticamente comigo. Nem se dera ao trabalho
de me refazer. Corrigir o erro antes de enviar-me ao mundo. Aquilo era no
mínimo injusto.
Minha mãe repetia, ‘este seu nariz
é atávico’. O que quer que aquilo significasse. Anos depois descobri que era
algo tipo, ‘desenterrar uma particularidade, de preferência medonha, da árvore
genealógica da família com o propósito de te envergonhar ou acertar as contas. ’
Foi também Dona Letízia, figura contraditória
em minha infância e adolescência, que me fez conhecedora das várias lendas
sobre a escolha de meu nome, que variavam de acordo com a meteorologia e seu
humor. ‘Você nasceu com duas voltas de cordão no pescoço, tava tão roxinha.
Parecia uma pequena berinjela. ’ De
outra sorte, quando ela e minha mãe voltavam de um sábado de feira disse: —sua
mãe teve muito desejo por berinjela durante a gestação, mas não era tempo. Sua
revolta foi tanta que te batizou de Berinjela.
Daquela vez, por suas palavras
perniciosas, quase que a amizade de décadas das duas ia para Marte. Mamãe que
era sempre um rio calmo, tornou-se em mar possesso de fúria. Mas de alguma
forma o comentário maldoso teve um resultado positivo, pois ela decidiu
esclarecer-me que não havia sido nenhum imbróglio pós-gestacional que havia inspirado
meu nome, mas uma de suas antepassadas, daquelas que de tão longínquas, não se
tem nem como contar na árvore da família, mas que permaneceu notória através
dos tempos.
—Seu nome nada tem de vulgar. É
bem especial... — acrescentou em tom enigmático, coisa que detestei.
Minha mãe amava dar um tom
misterioso as histórias, mas eu não acreditava que ela tinha o direito de
guardar segredos de mim, afinal quem carregava aquela pecha era eu. Queria
saber quem fora a outra Berinjela. Queria conectar-me a ela através de sua agonia
e vergonha para ter alguém com quem compartilhar aquela jornada solitária. Mas eu era criança e era mamãe quem decidia o
que eu devia ou não saber. Por hora, deveria saber que não era a única
Berinjela fora do mundo vegetal a passar pelo mundo, e que acreditasse ou não,
em outros tempos aquele havia sido um nome bem popular. Hã??! Ela queria que eu
me contentasse com aquela migalha? Mas foi assim. Sem outras explicações.
Cheguei à conclusão que o
universo conspirava contra mim e meus pais eram os executores daquela trama
aviltante.
Mas a despeito das caçoadas na
escola, eu fui me deixando ‘ser Berinjela’. Talvez, conformação seja a palavra
mais apropriada. Serenei por um tempo, até ‘aquele dia’ em que voltava da
escola. Ah, aquele dia...
O caminhão da mudança estava do
outro lado da minha calçada. Uma nova família chegava a vizinhança. De longe,
eu o vi. Ele era a epítome da beleza. Uma perfeição da natureza. Seus cabelos
negros encaracolados caiam de forma sedosa sobre a pele alva dando-lhe a
aparência de um querubim, e os olhos tinham a cor e o conforto de um chocolate quente
salpicado com canela em um dia frio.
Sentindo-se observado, Otávio (inevitavelmente,
soube seu nome depois) encontrou meus olhos e sorriu. Com a espontaneidade de
um cão que vem até o seu dono, caminhou em minha direção. O sorriso atraente me
desmanchou. Olhei para os lados, incerta sobre o alvo daquela preciosidade.
Fiquei a imaginar se o fato de ser novo na vizinhança e a necessidade de fazer
amigos o tinha levado aquele passo sacrificial. Quando se aproximou,
esquivei-me para casa, com medo de ouvir comentários sobre meu nariz. E de ser
obrigada a apresentar-me.
Assim, mais um capítulo de minha
tumultuada existência começava.
Anos se passaram e minha
paixonite reprimida por Otávio me impediam, até mesmo, de passar por sua
calçada, pois o furacão que causava em minhas emoções me desestabilizava. Passaram-se
anos sem que nem ao menos trocasse com ele duas palavras. Sequer um aceno. Eu o admirava de longe e vi uma de minhas colegas o fisgar. Não era de admirar. Era
bonita e extrovertida.
Testemunha de toda aquela aflição
juvenil recolhida, meu pai um dia acordou-me do feitiço que paralisava minhas emoções com uma de suas pérolas:
— Você tem que subir a montanha
se quiser apreciar a vista, Berinjela.
Não entendia ao certo como as
palavras de meu pai destrancavam calabouços dentro de mim, o que sabia era que elas
eram mais encantadas que meus desencantos. Um antídoto miraculoso.
Foi em um dia nublado que enfrentei minha timidez e pisei na calçada de Otávio. Ele estava sentado no muro
baixo. Os cabelos rebeldes caiam sobre a testa dando-lhe um ar descontraído. A
moto atravessada na calçada fez com que me sentisse tentada a passar pelo meio fio, mas busquei vestígios de coragem e me dirigi ao estreito espaço entre a moto
e as pernas longas penduradas contra a parede do muro.
Tive a nítida impressão de sentir
o calor que emanava dele envolver-me.
—Olá, Berinjela!
Ele sabia o meu nome? Meu coração
falhou uma batida, mas ao invés de correr, paralisei com barítono
de sua voz. Ora! Mas quem não sabia o meu nome? Aquele nome insólito, vegetal,
telúrico, anormal e bizarro. Todos na rua, na escola, e quiçá na cidade sabiam
do gosto excêntrico de meus pais.
Devagar mirei o rosto
sorridente e milagrosamente não derreti. Havia me enganado durante todos
aqueles anos, seus olhos eram mais semelhantes a uma boa xícara de café. Energética
e estimulante num dia frio. Fumegava. Soube que teria coragem de aceitar um
convite para dar uma volta com ele naquela moto. Se ele a convidasse...
—Olá, Otávio Sérgio! — numa
ousadia inimaginável a minha timidez, fiz questão de deixar claro que conhecia
aquele conceito binomial que era seu nome. Não apenas Otávio, mas Otávio Sérgio. — Como está? — de repente tornei-me falante.
Percebi um brilho em seu
olhar, talvez fosse espanto por me ouvir falar. Ouvi-o responder que estava
bem, mas que não era muito fã daqueles dias nublados. O deixavam ‘meio para
baixo’. Ah, o tempo... era a deixa perfeita!
— Estes são meus dias preferidos
— repliquei.
Falei de todos os meus motivos
para gostar daqueles dias nublados, com chuva ou sem chuva, de frio ou apenas
de fantasia. Falei pelos cotovelos sobre como os dias nublados eram os dias dos
livros, do chá, do café, da reflexão, da música que embala a alma, dos pássaros
que se recolhiam em sua janela. ’
—Da solidão — ele acrescentou
meio provocador, meio que tentando sabotar minha teoria sobre os dias nublados.
—Do aconchego — o corrigi,
insubordinada, diante de sua tentativa de fazer dos dias nublados cinzas de
emoção.
Ele sorriu e ela soube que o
havia convencido de que os dias nublados não eram tão ruins assim. ‘Aquele dia’
não era tão ruim assim.
—Então quer dizer que este é o
dia propício para um café?
—Isso mesmo! — ela devolveu.
Ele desceu do murinho e ficou
diante dela com um olhar misterioso.
—Eu conheço uma cafeteria bem
legal aqui perto. Você me acompanha?
Hã???!
—Como? Quero dizer? Agora? — só
então percebeu o quanto fora persuasiva em seu ponto de vista.
Ele pegou um capacete e entregou
a ela enquanto colocava o outro.
—Agora, Berinjela. Antes que o
tempo mude e... bem vamos comprovar esta sua teoria está bem?
Ele subiu e esperou que ela
fizesse o mesmo. Como a percebeu estranha à situação, ajudou-a a colocar o
capacete e explicou como subir naquele veículo ‘selvagem’.
Quando enlaçou os braços ao redor
da cintura de Otávio Sérgio, Berinjela comprovou que os dias nublados eram
mesmo mágicos.