REMINISCÊNCIAS DE UM GATO EM SUA SÉTIMA VIDA
Avistei com pesar o pequeno séquito real se afastando pelo caminho tortuoso rente a um dos chifres que ladeiam meu pequeno domínio.
Por um breve instante quis correr atrás do colo amoroso daquela a quem elegi como minha segunda dona. Sentiria falta dos afagos de suas mãos gentis, mas percebi que por mais que me doesse o coração e uma lágrima quisesse correr em minha face pela sua ausência eu presava demais aquelas ruas feitas de pedras imemoriais onde eu havia me esgueirado por anos. Muitos anos.
O novo não era mais para mim.
Queria que meus ossos cansados deitassem ali, naquela terra em meu último e derradeiro suspiro. Não era mais parte de mim atravessar o grande canal de águas azuis e salgadas que separava os dois mundos. Um canal de nascimento.
Nascer de novo?
Sete longas vidas, me bastavam. O tempo pesava sobre mim.
Nunca pensei que o Criador ainda me permitiria ver este mistério. De minha sétima vida nada mais esperava. Mas esta foi coroada de um senso de propósito. Minha primeira vida havia sido de grande aflição, quando passei do Paraíso onde me alimentava dos frutos do Éden pelas mãos do meu primeiro pai para o ultraje de comer os ratos de uma terra condenada.
Sendo o animal mais sábio do paraíso, vi com grande desgosto meus conselhos serem negligenciados pela primeira mãe. Meus rogos e apelos caíram em ouvidos anestesiados pelo engano da serpente que usou de argumentos pífios, ainda que exitosos.
Caí vertiginosamente junto com a primeira família e me vi atrelado a apetites e instintos asquerosos.
Mas ainda assim o Criador viu em mim méritos e me concedeu sete vidas. Longas vidas que me deram muitas oportunidades de mudanças. Pude criar várias versões de mim mesmo mas que apenas se tornaram cansativas e vãs.
Me exilei neste vale entre os dois chifres. Um lugar muito distante de onde eu comecei.
Excesso de tempo me tornaram entediado, contudo aperfeiçoei minha percepção sobre os humanos, e percebi que jamais mudam em suas pobres escolhas. Tenho culpa de desprezá-los? De manter-me distante? Aprendi ainda a conhecer as nuances do tempo e saber o ponto exato em que eles mudam. Gosto da ociosidade e reflexão. E foi em um de meus momentos de reflexão que vi aquela comitiva aproximando-se de meu domínio. Meu instinto percebeu neles algo de peculiar. Divinamente peculiar.
Uma aura de mistério os envolvia.
Aproximei-me deles e quis perguntar do alto de minha autoridade de dono daquela terra que missão os trazia ali. Porém perdi a habilidade da fala. Mas meus ossos felinos vibraram em uma epifania.
Um ancião com seu bordão e uma jovem que carregava em seu sangue uma dinastia real. Um profeta guardião do ramo cortado do alto de um soberbo cedro. Um homem destinado a dura missão de arrancar e derrubar uma nação com seus pronunciamentos proféticos e que tinha também encargo de replantá-la. Um homem que chorava a luz do dia devido a sua pesada missão mas que carregava consigo o remanescente. Sua vida era uma história de tragédia e esperança. Uma esperança de recomeço.
Eram fugitivos. Primeiro da escravidão, segundo da espada e terceiro do conforto do velho Egito.
A jovem princesa tinha um olhar austero, desconfiado. Havia sofrido eventos traumáticos nos poucos anos de sua vida. Nossa conexão foi instantânea. Rocei meu corpo macio em seu tornozelo e ela prontamente aceitou o conforto, pegando-me em seu colo.
Olhou em meus olhos iridescentes e me batizou com um nome que guardo em sigilo. Segredo apenas nosso.
O profeta foi indulgente com minha presença.
Por dias que se tornaram anos eles permaneceram exilados aqui. Em meu pequeno domínio. A espera de Shiloh. Pintando as paredes de sua casa com o azul dos céus de verão da terra de onde foram desarraigados. O azul que adornou meu descanso.
Até que um dia, em uma de suas visões, o profeta entendeu que tinha que atravessar a estreita abertura do útero do mar em direção ao novo mundo.
Meu coração estava partido.
Eu amava minha pequena princesa mas não queria renascer. Estava farto de dias.
Decidi ficar. E consolo meus últimos dias contemplando as paredes azuis do meu mundo que miraculosamente jamais empalidecem.
Nenhum comentário:
Postar um comentário